InterrogatórioPor aí

Interrogando Sandro Ka

Imagem: A Razão, 2016. Plástico e madeira, 10 x 9 x 16 cm. Foto: Filipe Conde.

 

Interrogamos Sandro Ka, artista e pesquisador natural de Porto Alegre-RS. Nossa conversa passou pelo uso do bom-humor nas artes, pela ironia, e pela importância da pesquisa acadêmica para os artistas. Saiba o que ele acha sobre tudo isso e conheça seu fantástico trabalho!


 

“A Arte não tem função certa, mas tem esse papel: quebrar o fluxo contínuo das coisas, provocar pausas e ser reposicionamentos, enxergar de outras formas.”

 

♦ Como, onde, quando e por quê.

Sempre tive fascínio pelas práticas e linguagens artísticas. Sem exageros, é um mundo que me interessa desde a infância, sobretudo as brincadeiras de desenhar. Acredito que boa parte disso esteja ligada a estímulos de uma família de desenhistas – minha mãe sempre teve paixão por desenho e, consequentemente, eu e meu irmão fomos sempre estimulados para esse caminho. Creio que a presença constante desse hábito, mesmo que como brincadeira – não gostava muito de esportes, era mais chegado a jogos imaginativos e faz de conta, tenha auxiliado na definição dos percursos a seguir. Bem mais adiante, nos primeiros encaminhamentos profissionais, me dirigi à Educação e, em virtude disso, para o trabalho com ilustração infantil e design gráfico. Consequentemente, vi na área das Artes Visuais um caminho interessante, passando a entender as possibilidades de ir da paixão a uma área de atuação, a uma área de conhecimento. Desde então, segui os passos formativos desde a graduação até o doutorado – que curso atualmente – em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A formação acadêmica possibilitou entender meu papel enquanto agente do campo artístico e perceber o funcionamento do sistema artístico, definindo minha escolha em atuar profissionalmente como artista visual. Na prática, considero o ano de 2003, ano de minha primeira exposição individual, como um marcador.

 

♦ Uma pergunta gentil para seguirmos: o que é Arte?

 Penso em Arte como um conjunto de práticas e posicionamentos no mundo de forma criativa que se propõem a causar rupturas e tensionamentos, a provocar o establishment, a sacudir o status quo. A Arte não tem função certa, mas tem esse papel: quebrar o fluxo contínuo das coisas, provocar pausas e ser reposicionamentos, enxergar de outras formas.

 

♦ É possível fazer arte séria com bom humor?

 Não sei o que significa arte séria. Se for a arte inserida no Sistema das Artes, que consegue ser percebida e ser acessada por diferentes e maiores públicos, considero o bom humor estratégico. Sobretudo a ironia que, como figura de linguagem, possibilita dizer tanta coisa sem ser explícita, sem ser fechada. Digamos que, pela via da ironia, é possível discutir temáticas “sérias” e áridas, como política, religiosidade, gênero e sexualidade, entre outros assuntos que me movem.

1. Distópico, 2017. Gesso e plástico, 33 x 16 x 14 cm. Foto: Filipe Conde.
2. David, 2017. Gesso e plástico, 40 x 21 x 17 cm. Foto: Filipe Conde.

 

♦ Você acha que a presença da “alegria” nas diferentes artes tornou-se uma ideia antiquada, principalmente ao longo do século XX?

 Mais do que antiquada, parece algo malvisto, de menor valor. Na maior parte da minha pesquisa, a valorização por características de familiaridade, de diversão, de deboche, assim como o referencial do cotidiano, são entendidos como elementos constitutivos de uma poética. Quando me valho dessas estratégias de aproximação com o público e como figuras de linguagem, nunca penso que se tratam de caminhos mais simples de comunicar minhas intenções artísticas, meu discurso e as questões que me movem. Ao contrário, penso nas possibilidades de jogo com essas imagens e objetos já tão assimilados, desgastados em sua significação, para a articulação de novos sentidos. É um desafio que se traveste de algo leve, como uma fácil simplicidade. Além disso, como também apreciador de arte, me incomoda obras e poéticas artísticas restritas a questões estritamente formais e pessoais, que parecem estar de costas para o espectador. Compreendo-as, entendo a lógica de determinadas pesquisas, mas não gosto. E podemos não gostar de algumas coisas. Ainda.

 

 ♦ Diz o canadense Robertson Davies em seu romance The Cunning Man, de 1994: “Quando a ironia se faz presente pela primeira vez na vida de um jovem, isso pode parecer como a sua primeira embriaguez; ele acabou de conhecer uma coisa poderosa que ainda não sabe como controlar.” Fale sobre a importância da ironia no seu trabalho, e sobre como ela virou um ponto central na sua produção.

 A ironia, em minha pesquisa artística, é proposta como uma figura de linguagem, como um meio de contato com os públicos em minhas produções. Me interessa suas possibilidades de dizer algo sem dizer, de ativar outras vias da percepção e da linguagem. Me interessa essa possibilidade da obra aberta. Como uma espécie de chave de leitura – um convite ou uma aproximação inicial, a ironia funciona como um dispositivo que propõe armadilhas para o olhar e para os sentidos e, consequentemente, amplia sentidos.

 

3. Descaminho, 2017. Papel sobre base em acrílico, 60 x 80 cm. Foto: Filipe Conde.

4. Paisagem Comum, 2017. Instalação (detalhe). Papel. Dimensões variáveis. Foto: Sandro Ka.

 

♦ Conte-nos sobre o seu processo criativo.

Meu trabalho tem se estabelecido nas linguagens do desenho, da escultura objetual e de instalações. Um dos meus interesses constantes de pesquisa é o estabelecimento de novos sentidos e possibilidades de leitura por meio da associação de elementos de distintos contextos, funções e materialidades. Essa prática se estabelece através da prática da apropriação de imagens e objetos e em contextos distintos, tanto em espaços expositivos institucionalizados como no espaço público. Tendo o cruzamento de sentidos como interesse motor, busco linguagens e estratégias que mais se ajustam às minhas intenções e que melhor respondam à sua realização.

 

♦ Seus projetos são pensados com antecedência ou eles se formam durante o percurso? Conte sobre a concepção de Tanto barulho por nada e Deixa estar.

 Como todo o artista, sou um colecionador de imagens e referenciais. Não tenho muito ordenamento, nem disciplina no processo criativo, embora perceba alguns procedimentos recorrentes, tanto nos trabalhos de desenho, objeto e instalação. De modo geral, o primeiro passa pela escolha desses elementos que me interessam e que busco em lojas de R$ 1,99, bazares, feiras, etc. Não existe ordenamento muito certo desse fluxo de ideias, mas existem elementos norteadores da produção, como o repertório imagético advindo da cultura popular e da cultura de massa, a prática da apropriação como procedimento operatório central e a ironia como figura de linguagem. Quando visito ou me deparo com esses lugares, já tenho um olhar mais direcionado: logo de imediato percebo, por suas características formais ou significados, elementos possíveis de virar materiais de trabalho. Nisso vou juntando brinquedos, bibelôs, esculturas, entre outros artefatos. Alguns são buscados a partir de uma ideia inicial de montagem de trabalho ou composição – alguns trabalhos levam anos para serem finalizados, outros são criados a partir de experiências de ateliê.

 

A exposição Deixa Estar (MACRS, 2013) tinha como proposta curatorial apresentar uma ideia de panorama de pesquisa artística, com o objetivo de indicar certo fluxo de pensamento e interesses recorrentes em minha poética. Nesse contexto, foram apresentadas obras autorais em suportes como desenho e vídeo, além dos objetos. A curadoria realizada por Bianca Knaak (IA/UFRGS) também propunha situar o trabalho junto a obras do acervo articuladas tanto pela sua temática quanto por procedimentos de apropriação. Já na exposição Tanto barulho por nada (MARGS, 2017), com curadoria de Ana Albani de Carvalho (PPGAV/UFRGS), havia o interesse de apresentar trabalhos inéditos em objeto, elaborados entre 2013 e 2017, articulados à pesquisa recente do doutorado, a partir de quebra-cabeças. Tratava-se de uma apresentação de um conjunto de obras e, sobretudo, de uma apresentação do artista no principal museu público do estado do RS. Pensamos, assim, que o foco na produção dos objetos poderia ser mais interessante como uma espécie de síntese de uma poética, de um processo investigativo em arte.

 

 ♦ Você está cursando atualmente uma pós-graduação a nível de doutorado. Você vê a formação acadêmica como importante para a consolidação da sua produção artística? Sua produção é necessariamente uma parte integrante da sua pesquisa?

 Sim, sobretudo no contexto de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Percebo a articulação da pesquisa artística autoral com ambientes de pesquisa muito oportuna, pois dá a possibilidade ao artista de realizar seu processo investigativo de forma compartilhada e sob orientação, o que ainda é bastante incomum na maioria das práticas individuais de ateliê. Entendo que dar visibilidade ao processo e articulá-lo ao sistema local são procedimentos fundamentais para quem se pensa como agente do campo artístico – ou artista de carreira. Em nosso contexto local, a academia e a produção intelectual tem uma base de atuação muito forte, vide a formação de pesquisadores-artistas, historiadores, teóricos e críticos.

 

5. Market, 2017. Plástico, metal e madeira, 33 x 23 x 17 cm. Foto: Filipe Conde.

 

♦ Fale um pouco sobre o cenário artístico de Porto Alegre e a sua posição dentro dele.

 Temos uma variedade interessante de equipamentos culturais, mas passamos por um processo bem complicado de gestão cultural, tanto nas instituições públicas quanto privadas. Cortes de verbas, equipes desqualificadas e enxutas, espaços expositivos sem estrutura alguma que, consequentemente, perdem sua credibilidade. São poucos os espaços que mantém uma programação de atividades relevantes. Junte a isso um circuito comercial muito tímido, com poucas galerias fortes, especialmente que promovem e difundem produções de Arte Contemporânea. Nesse contexto, a academia tem um papel bem forte no cenário artístico, e não por acaso chama a atenção de muitos artistas que nela percebem a oportunidade de dar continuidade a suas pesquisas de forma mais qualificada e sistemática.

 

Eu atuo como artista desde 2003, desde os primeiros anos de minha formação. Estar na academia me oportunizou entender o funcionamento do campo e me instrumentalizar. O que não me impediu de atravessar, ao longo desse tempo, fases de altos e baixos, com produções relevantes e outras nem tanto. Expus bastante nesses quinze anos de atuação, no Rio Grande do Sul e em outros estados para não perder a forma, pois acredito que só há sentido na produção quando ela é exibida, colocada em comunicação. Meu retorno à academia em 2013 para o curso de mestrado foi estratégico nesse sentido, com o objetivo de qualificar a pesquisa. Mas creio que só depois de uns dez anos consegui apresentar minha produção de forma qualificada e ampliar seu alcance de público. Isso implica em acessar espaços expositivos interessantes e os quais eu admiro com meu trabalho e integrar acervos importantes, tanto de instituições públicas quanto privadas. Penso, assim, numa forma de estar contribuindo com a produção artística local e inscrevendo algum tipo de marca que represente determinada produção cultural de um determinado período e contexto.

 

 ♦ Quem influencia diretamente o seu trabalho?

 Meus referenciais artísticos são amplos e diversos. Mas situo meus interesses e influências em artistas que, contemporâneos ou não, têm suas pesquisas atravessadas pela prática da apropriação e tomam o cotidiano com material de trabalho, especialmente em sua visualidade e disrupção de significados, como os brasileiros Lia Menna Barreto, Alfredo Nicolaiewsky, Nelson Leirner, Farnese de Andrade, Barrão, Leonilson e 3Nós3, entre outros nomes; as obras dos argentinos Liliana Porter e León Ferrari; e referenciais mais icônicos do Mundo da Arte, como Jeff Koons, Warhol e Duchamp.

 

 ♦ Qual obra de arte alheia você modificaria sem pestanejar?

 Nenhuma. Toda obra faz sentido contextualmente, no espaço e lugar onde foi concebida. Algumas até podem ser revistas, resinificadas, talvez. Mas não modificaria nenhuma. Entretanto, tem algumas que eu gostaria muito de ter feito, é claro…

 

 ♦ Heróis, ídolos e pessoas que você inveja.

 Tenho entendido cada vez mais o lugar e o papel dos meus pais na minha formação de caráter e trajetória de vida. Acho que vejo neles esse referencial de heroísmo. Meus ídolos vão além da arte e dos nomes citados anteriormente, como ativistas sociais, militantes, alguns pensadores e figuras políticas de esquerda. Sobre inveja, não tenho disso. Sou bastante vaidoso com as minhas coisas pra dar espaço pra isso, hehehe.

 

6 e 7 . Piscina, 2015. Instalação – ação de intervenção urbana, em Porto Alegre/RS. Foto: Ariane Laubin.

 

♦ Quais são os seus projetos futuros?

 Tenho como meta focar em minha pesquisa atual intitulada Paisagem Comum, tema de investigação doutoral. Trata-se de uma série de trabalhos elaborados como objetos e instalações site-specific, criados por meio de estratégias de montagem a partir de estampas de paisagens icônicas da cultura de massa, como peças de jogos quebra-cabeça. Ainda em fase inicial, a pesquisa tem me sugerido diferentes abordagens e outras possibilidades para meu trabalho. Parte dela será exibida no próximo mês na Galeria Mamute, em Porto Alegre/RS e em junho no Espacio de Arte Contemporanea – EAC, em Montevidéu.

 

 ♦ Fale aqui sobre o que você sempre quis falar, com toda a liberdade, ou responda aquilo que nunca te perguntaram.

 Tenho pensado cada vez mais no sentido de fazer arte e da importância da produção artística estar em comunicação, ser exibida, colocada em relação com os espectadores. Creio que seja sua única razão de existir. Um obra fora dessa relação talvez nem precisasse ter sido feita.

 



MINIBIOGRAFIA

SANDRO KA (Porto Alegre/RS, 1981). Vive e trabalha em Porto Alegre/RS. Artista visual, designer gráfico e agente cultural. Doutorando e mestre em Artes Visuais (PPGAV/UFRGS) e bacharel em Artes Plásticas (DAV/UFRGS). Professor de Gestão e Produção Cultural (IFRS). Desenvolve projetos nas linguagens de desenho, objeto e instalação. Em âmbito de pesquisa, se interessa pelas articulações entre Produção Cultural e Arte contemporânea, bem como nas relações entre Arte, Política e Sexualidade.

 

Desde 2003, participa de ações e mostras dentre as quais se destacam o projeto de intervenção urbana Piscina (Praça da Alfândega, Porto Alegre, RS, 2015), as exposições individuais Tanto Barulho por Nada (MARGS, Porto Alegre, RS, 2017), Deixa Estar (MACRS, Porto Alegre, RS, 2013) e Relações Ordinárias (Paço Municipal, Porto Alegre, RS, 2008); e as coletivas Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira (Santander Cultural, Porto Alegre, RS, 2017), 1º. Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea (Paço Municipal, Porto Alegre, RS, 2017), Mostra SESC Cariri de Culturas (Juazeiro do Norte, CE, 2014, 2015 e 2017), O Triunfo do Contemporâneo (Santander Cultural, Porto Alegre, RS, 2012), Labirintos da Iconografia (MARGS, Porto Alegre, RS, 2011), 18º Salão da Câmara (Câmara Municipal, Porto Alegre, RS, 2008), 19º Salão Jovem Artista (MARGS, Porto Alegre, RS, 2006), VIII Bienal do Recôncavo Baiano (Centro Cultural Dannemann, São Félix, BA, 2006) e Pequenos Diálogos (Museu da UFRGS, Porto Alegre, RS, 2005), entre outras.

 

Vencedor do 1º. Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea – 3º. lugar (2017) e do Prêmio Açorianos de Artes Plásticas – Destaque em Textos, Catálogos e Livros Publicados (2009), com indicações neste mesmo prêmio (2014, 2015 e 2018). Possui obras em coleções particulares e públicas como: Museu de Arte do Rio Grande do Sul  – MARGS (Porto Alegre, RS), Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul  – MACRS (Porto Alegre, RS), Pinacoteca Aldo Locatelli (Porto Alegre, RS), Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre  – UFCSPA (Porto Alegre, RS), Acervo Municipal de Artes Plásticas de Caxias do Sul  – AMARP (Caxias do Sul, RS), Museu de Artes Visuais Ruth Schneider  – MAVRS (Passo Fundo, RS), Fundação Vera Chaves Barcellos – FVCB (Viamão, RS) e Sesc Juazeiro (Juazeiro do Norte, CE).

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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