Ruído

Um afeto chamado ruído – Parte I

Imagem: Christian Marclay – Action (2015)

Juliana Bastos, estreando seu primeiro texto na R.Nott Magazine, traz a coluna Ruído à sua essência: o que é, afinal, o Ruído, esse fenômeno intangível que nos engloba? Garantimos que temos aqui mais perguntas que respostas.


 

“Aqui temos o primeiro ponto interessante. Ruído é realmente um problema ou nem ligamos pra ele?”

 

– Com o que você trabalha?

– Sou professora de música.

– Ai… Que lindo!

 

Assim se estabelece o rapport com 99% dos interlocutores. Recebo automaticamente uma coroa de flores imaginária e o que eu faço se torna tacitamente lindo. Mal sabe a pessoa se minha aula é uma hipocrisia ou se toco pandeiro mal pra caramba. Mas vamos simular por aí: sou professora de música e o que faço é lindo.

 

O mote deste artigo é tecer um paralelo sobre resíduos [sonoros]. Falando daqui, da minha ~linda~ posição de professora de música, te digo que o que me interessa é o estudo dos sons do mundo. Todos. Sons são um reflexo fiel da sociedade que os abriga. Nos mostram o que as pessoas que compõem aquele lugar entendem como digno de permanecer – como o sino de uma igreja, que por tanto tempo na história aglutinou fieis no horário exatinho para a celebração religiosa – e também o que pretendem eliminar – diga-me se aquela central de ar-condicionado firmeza que ruge bem na janela do teu quarto é um problema ou não.

 

Aqui temos o primeiro ponto interessante. Ruído é realmente um problema ou nem ligamos pra ele? Quantos incomodados são necessários para que um aparelho eletrônico seja fabricado para se ater sonoramente ao mínimo? O ar-condicionado resfria e ruge, o aquecedor aquece e ruge, o motor do carro dá força motriz e o quê? Ruge diante de nossa aceitação. Então, se não podemos batizar o ruído de forma simplista como “problema”, em que categoria de nossas vidas ele se encaixa? Livros de música ou de acústica pouco auxiliam, porque as definições de ruído que trazem são binárias – incomoda / não incomoda – mas, principalmente, porque ambos desconsideram nossa gama afetiva diante do som. Nela estão contidas nossas memórias, preferências, noções de conforto, bem-estar, mais-valia e custo-benefício. Se o ar-condicionado está resfriando, o ruído é o preço a ser pago, e eu o aceito de bom grado. Não é que evitemos essas questões, apenas não sabemos por onde começar a repensá-las, uma vez que estão intimamente conectadas ao nosso cotidiano e muita gente por aí não consegue nem começar a imaginar como seriam suas vidas sem aparatos afins. Podemos dizer que somos quase entusiastas do ruído em nome do conforto dos outros sentidos.

 

No entanto, e aqui vamos ao segundo ponto, os resíduos sonoros têm influência em nós. Metaforizando, imagine duas situações. (1) Um supermercado onde as pessoas, após colocarem suas compras na esteira do caixa, abandonam o carrinho no meio do caminho. Aliás, imagine ou constate. Têm lugares no Brasil onde isso de fato acontece. A presença dos bretes nos caixas dos supermercados indica que o cliente deve passar com o carrinho para deixá-lo onde o pegou. Se isto não acontece, aquele carrinho ficará ali até que alguém o retire. Talvez um funcionário do supermercado, mas, provavelmente, o próximo cliente, não exatamente muito feliz. Mas tem gente que nem reclama. Se acostumou. (2) Um shopping, onde se aplica o conceito de fast-food – corrijam-me se eu estiver errada, pessoas que estudaram esse conceito. É a ideia de você chegar, pegar, comer e ir embora. Tudo rápido. Pois bem. A pessoa chega, escolhe o restaurante, compra a comida, sai com sua bandeja na mão rumo a alguma mesa, senta-se e come. Tudo lindo. Considerando o fechamento da execução da ideia, entende-se que, ao final, ela levaria a bandeja de volta a algum local indicado. Todo shopping tem isso, aqueles balcões onde você a esvazia e a coloca na pilha, junto com as outras. Ultimamente, entretanto, há pessoas nas praças de alimentação que estão ali exclusivamente para limpar as mesas. Das outras pessoas. Que compraram na rede de fast-food e deixaram a última etapa do conceito ali, pra outro limpar.

 

Sem entrar no mérito de tirar o emprego de ninguém, gostaria de refletir com vocês sobre o que estas duas situações ilustram. Farei isso estabelecendo uma ponte com o aspecto sonoro que nos cerca.

 

Ações que nos competem, se não realizadas, terão de o ser por alguém. Carrinho, bandeja, som.

 

– Som?!…

 

Sim. Muitos deles são deixados por aí também.

 

No entanto, como ele não é palpável, a maioria de nós se enquadra em, pelo menos, um time: tem a turma que não se importa e tem a turma que se sente impotente diante deles. Qualquer que seja a opção, o destino, porém, é sempre o som deixado no ambiente, na nossa memória, em nós. Findada a fase acústica, começa a fase da memória sonora. É neste território que ficamos às vezes, quando uma música não sai da cabeça, ou quando apresentamos um quadro muito grande de alegria (após uma festa de formatura, talvez?) ou de estresse (contato sonoro com um gerador, uma britadeira ou o paredão de som da casa ao lado por tempos que variam de pessoa para pessoa).

 

O som não tem cheiro, não tem corpo, não tem gosto e não tem vontade. É amoral. Ele apenas existe e é intangível. São essas características – paradoxais, a princípio – que conferem a ele um poder imenso de usos. Podemos curar uma pessoa e matar outra com som. Memória, afeto, consciência e bom senso, não exatamente nessa ordem, são alguns dos elementos que darão a ele o poder de cura ou de maldição. Ou de nada. Musiquinhas de elevador que o digam.

 

Chegamos ao terceiro ponto: nossa autoconsciência sobre os sons que produzimos. Temos muitas opiniões sobre os sons que nos chegam. Sabemos dizer qual parente é mais barulhento e também a que horas passa na rua aquele carro do sonho com uma música que nos lembra da infância na casa da avó. Agora, qual é nosso grau de consciência sobre os sons que NÓS mesmos produzimos? Quem aqui sabe qual som faz quando escova os dentes? E quando se está num local público com amigos, quem sabe dizer se a projeção da sua voz alcança a mesa ao lado, talvez tão potente que se faça ouvir até mesmo por aquele senhor que está usando fones de ouvido?

 

E, uma vez conscientes, o que fazemos com os “carrinhos” e com as “bandejas” sonoras que vamos largando pelo caminho? Quem limpa nossa sujeira? Existe algo de proveitoso no som que produzimos? Ajuda quantas pessoas? Atua a nosso favor ou contra nós?

 

 

Perguntas demais, até mesmo para uma professora de música que dedica a vida a desvendar tais respostas.

Juliana Bastos
Etnomusicóloga e professora de Música da UFPB. Interessada no som que existe além da música, concentra seu olhar em pesquisas sobre música popular urbana, cultura quilombola, paisagem sonora e ética sonora. Curiosa sobre a potência que existe além do ruído, é aprendiz da audição holística e da produção de sons eficiente.

    You may also like

    1 Comment

    1. Muito bom! Um artigo fácil de entender e muito divertido. A tua cara!

    Leave a reply

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    More in Ruído