Literatura

Carta a Adrienne Rich

imagem: Abdul Rahman Katanani – Wave (2016)

 

A coluna de Literatura deste mês traz a Carta a Adrienne Rich, texto de Julia Raiz (primeira parte) e de Sarah Valle (segunda parte) que apareceu pela primeira vez no projeto TERTÚLIA (2018), publicação independente em que poetas contemporâneas dialogam com autoras já mortas, com curadoria e organização de Larissa Vaz e Julia Medina. Confira abaixo!


adrienne, a rica,

 

estou com raiva.

não sei quase nada de você, mas tenho certeza que você sabe o que quero dizer.

ontem uma menina chamada brenda (você conheceu alguma brenda, adrienne?) me contou de uma escritora de portugal que escreveu um livro de cartas. uma morta escreve cartas para um homem vivo que não as recebe. um vivo escreve cartas para uma mulher morta que não as recebe. as cartas que se perdem, como se perde essa. então, não interessa que eu escreva em português, esse é um caso de tradução transdimensional.

sempre pensei que vocês mortas compartilhassem um segredo, é como se fossem iniciadas num ritual (li dois poemas seus com “like” hoje. traduzi o seu “like” para o meu “como”). não penso mais assim e não é sobre isso que quero escrever. uma amiga nossa morreu na segunda passada, não consigo imaginar vocês duas juntas. ela também amava outras mulheres. como a Sarah, como eu.

a Sarah também tem raiva, às vezes. ela chama seus poemas, adrienne, de “enfarpados”. eu quero te desenhar o que é uma malha de arame farpado com a qual você pode se cobrir:

 

 

você está atrás de mim, adrienne com dois enes (a Sarah não vai gostar dessa parte), um fantasma que saiu da califórnia pra chegar num quartinho nos fundos desse apartamento no brasil (o seu país fode com o nosso, dear. mas disso você já sabia). é muito difícil decepcionar alguém que a gente ama, gostaria de falar com você sobre isso. queria te fazer algumas perguntas se pudesse. como foi decepcionar seus três filhos? como foi decepcionar o homem que você amava? como foi decepcionar a mulher que você amava? como você sobreviveu e depois não sobreviveu a tudo isso? dói mais ou menos do que não poder escrever uma carta pra si mesma à mão e ter que batê-la à máquina? repetiria as mesmas perguntas se estivesse escrevendo pra patrícia pagu, ela sofreu às vezes como você, às vezes não. me importa muito que a pagu tenha sido brasileira, xuxu (chuchu é um legume com “ch” e com “x” um apelido carinhoso como “pumpkin”). vou te copiar aqui um pedacinho de poema que eu traduzi para a sua língua pra você saber do que pagu foi capaz:

nothing nothing nothing
nothing more than nothing
cause you want that nothing exists besides nothing
only the nothing exists
a child’s cry
a tear from a loose woman
that means nothing
a room kind of dark
with a broken lampshade
girls that danced
that talked
nothing

 

eu choro porque essa é uma carta sem resposta.

Sarah te traduziu dentro de um lento trem a vapor. eu não to com você, adrienne. eu to num trem rápido, vertiginoso que vai bater daqui a pouco e explodir. não somos heroínas, a Sarah te traduziu, acidentes acontecem como batidas de carro, batidas de trem. nós ainda não aprendemos a diferenciar a morte e o amor. estamos agora num futuro próximo, se você pode nos ver, me diga se é assim que você imaginou que seria quando era menina. WHAT KIND OF TIMES ARE THESE você nos perguntou. você foi uma menina, certo, right, adrienne? were you a girl ou nah? we all got to suffer the consequences, eu ouvia quando era menina, na sua língua. coloco um vídeo seu declamando poemas na wellesley college, pra me despedir de ti. 09’05’’ você fala de brecht de quem roubou WHAT KIND OF TIMES ARE THESE.

te espero hoje à noite na cozinha, passa pra me dar um alô na forma de um rato lento ou da sombra de um pássaro veloz que cruza a janela. o que querem nos dizer as velocidades?

nunca sua, mas rápida em direção à verdade,
julia.


 

Adrienne, my dear,

 

escrevo esse bilhete depois da Julia porque ela é mais desenvolta e menos séria que eu e teve a coragem de te perguntar algo que eu queria saber, mas que, imitando o seu próprio silêncio, contornei. É a Julia, menos tradicional, menos enfarpada, menos austera que nós duas, a mulher que nos coloca em contato. Você queria me ensinar a dialogar. E agora, quase no fim, sinto que escrevi essa dissertação te evitando, traduzi os poemas pelas bordas, sem te encarar nos olhos, porque eu não estava pronta. Faltam dias e por fim é verdadeira essa dissertação? Acho que eu não teria aprendido a traduzir (quase me sinto pronta) se você não tivesse me puxado para esse trem lento a vapor, onde nossas mãos inchavam. Eu queria pegar suas mãos e não as canetas, as teclas. Suas mãos pequenas, tão iguais às minhas. Eu via a palavra feminismo e a palavra mulher fazendo caretas, você já me deu vários banhos frios. Tudo o que me ensinou – fantasmagoria das mulheres, fantasmas por cidades fantasmas, fantasmas de livros não escritos, o gravador que não pegou nosso fantasma. Eu perguntei como eu ia viver o resto da minha vida. Depois vi aquela foto sua, suas mãos não eram pássaros, eram bulbos. E a dor não era minha, era das mulheres das colinas dos uivos, dos seus filhos, do homem que você amou (?), dos Estados Unidos da América. Eu vou dar um jeito, resistir à tentação de fazer uma carreira de estupor, caramelizar, evaporar, remediar as forças que alastraram contra e dentro de nós (foi a Julia que arranjou o verso). Graças a ela, que tem uma força de remexer as coisas e também não está aqui senão como uma voz, que você virá (você é a minha fantasma, não tem outra). Tomaríamos um chá (eu e você lentas, ela incendiária inquieta observando seu apartamento, com a caneta na mão enquanto eu sublimaria meus sentimentos no ar da sua integridade austera e inatingível, hibernando ao redor da serenidade de pedra que legitima os meus estranhos combates). Essa é só uma primeira carta. Queria tentar fazer você rir. Eu não gosto de falar inglês. Tenho que ir para a Escócia falar sobre seus poemas feministas e é uma boa hora para falar com você sobre a lacuna entre o que amo e esses países. Eu tenho algum medo da viagem. O poema que a Julia retraduziu hoje vai pro Arame Farpado, da Lisa. Você escreveu que sabia que eu lia seus poemas adivinhando algumas palavras enquanto outras me mantinham lendo e você queria saber quais eram essas. Não choro porque essa é uma carta sem resposta, mas porque essa abertura me dá um lugar para sentar. Você sabe que leio esse poema em busca de algo torcido entre a amargura e a esperança, lançada à tarefa que não posso recusar. Preciso lembrar as outras coisas que queria te perguntar.

Sigo aqui,

Sarah

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

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