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“Um filme, um sentimento”: Asas do Desejo, Wim Wenders (1987)

Continuando a série “um filme, um sentimento”, nossa colunista argentina Ayelen Lago apresenta e comenta a obra-prima de Wim Wenders, Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987)


 

“Quando a criança era uma criança”

O anjo Damiel disse: “Quando a criança era uma criança, era o momento das seguintes perguntas: por que sou eu e não tu? Por que estou aqui e não lá? Quando começou o tempo, e onde se acaba o espaço? A vida debaixo do sol é apenas um sonho? O que vejo, ouço e cheiro é só a aparência de um mundo anterior ao mundo? Existe realmente o mal e pessoas que são realmente más? Como pode ser que eu, que sou eu, antes de chegar a ser, não era? E que eu, que sou eu, algum dia já não serei mais o que sou?”

Enquanto vemos a cidade de Berlim a partir de um ponto de vista subjetivo e zenital, os anjos Damiel e Cassiel observam e anotam todos os pensamentos, conclusões, reflexões, remordimentos e lembranças dos humanos. Nesse passeio etéreo pela cidade, a condição humana vista pela esfera divina parece ser uma maquinaria de mentes que nunca se calam.

É nesse maravilhoso encontro entre divindades e seres terrenos que nos situa o fantástico cineasta Wim Wenders, criador de grandiosos road movies, que neste caso é uma viagem interior pelas curiosidades e reflexões de um anjo que quer compreender e passar uma experiência humana. Com atuações extraordinárias de Bruno Ganz, Otto Sander, Solveig Dommartin e Peter Falk, e um roteiro incrível do próprio Wim Wenders, com Peter Handke e Richard Reitinger, Der Himmel Über Berlin converte-se num memorável e belo encontro entre o divino e o secular.

Nas complexidades da cidade de Berlim do pós-guerra, com um muro que ainda dividia as vidas e os sentimentos dos cidadãos, soma-se o encontro de duas dimensões separadas que se entrelaçam: o etéreo, eterno e divino com o terreno, finito e confuso.

Em certo sentido viajamos e flutuamos junto às imagens do céu e da cidade, e observamos o mundo em preto e branco junto com os anjos, sempre imparciais, inexpressivos mas ainda assim empáticos, sempre testemunhas de tudo o que ocorre com os humanos, sempre como únicos vestígios do passado e do presente, tal como os edifícios históricos, agora ruínas dos bombardeios da segunda guerra, símbolos do passado, da destruição e da nostalgia.

Continuamos o recorrido entrando junto com os anjos nas casas, na biblioteca estatal de Berlim, nas praças, nas mentes incansáveis e aturdidas de perguntas e reflexões sem respostas. Os personagens humanos, pessoas com sentimentos e reflexões envolventes, são, como tudo racionalizados, não sobra nenhum sentimento, emoção ou circunstância sem ser examinado pela mente. Como se o sentir e o experienciar a realidade da vida fossem uma questão de um ato explicativo, descritivo. Um diálogo interno constante que aliena à sociedade, ao indivíduo. Talvez um costume ou um ato falido da solidão, de incompreensão ou de egocentrismo. Só encontramos a paz nos silêncios sórdidos do anjos contemplativos, que acompanham e, às vezes, consolam aos mortais enquanto a história, a guerra e a solidão infiltram-se no relato.

Em um momento nos perguntamos, tal como o faz o anjo Cassiel: por que Damiel quer ser humano? Vista a partir dos olhos de um anjo, e mesmo por seus diálogos, a condição terrena é como um absurdo contante. Mas Damiel nos lembra de que a eternidade também pode chegar a ser insossa. Os desejos, sentidos e sentimentos se adentram pouco a pouco no anjo. Sua curiosidade o aproxima das obscuridades, da tristeza, da depressão, da paixão, e, finalmente, do amor em sua máxima expressão.

A câmera segue flutuando em subjetivas de planos, de segmentos, e somos os olhos do celestial num mundo monocromático, frio e triste. Mas, de repente, rajadas de cor se apresentam, o incompreensível mundo terreno assombrosamente possui cores quando visto a partir da humanidade. Por momentos também escutamos sirenes de ambulâncias e da polícia nas ruas, rodeados por harpas mágicas e pensamentos falantes. Temos a impressão de que apenas as crianças podem se conectar com o belo e etéreo, e os adultos apenas languidescem-se em preocupações e banalidades. De repente um cineasta americano, Colombo, nos surpreende tomando um café enquanto fala direto a Damiel: “não posso te ver mas posso intuir que você está aqui… Companheiro!”, e o encontro entre ambos os mundos se estreita no saudar das mãos dos dois. Estende-se, assim, a representação do vínculo do cinema imerso no cinema, do cinema imerso na própria vida. Para Colombo, que é um ex-anjo, a vida é uma aventura por ser descoberta, e ele incita a Damiel para que continue por si só. A arrasadora incerteza e a imensidão do mundo emociona a Damiel, faz que ele sorria, e talvez essas coisas sejam os primeiros vislumbres de experimentar a vida como os humanos a conhecem.

Na passagem do céu para a terra, as imagens são fugazes e rápidas, tal como em Um Homem com uma Câmera de Dziga Vertov. A passagem é caótica e rápida. É sensorial, confusa, talvez parecida ao ato de nascer neste plano. Nessa cidade símbolo da humanidade, enquanto as pessoas se cruzam, são expostos sentimentos como a desolação mais íntima, a solidão mais carnal, o famoso vazio existencial, enquanto os anjos contemplam fascinados e silenciosos o íntimo, o oculto, o próprio. A percepção do tempo não é exata, fluímos junto com a montagem em diferentes cenários e situações. Não sabemos, como num sonho eterno, se já passaram dias, horas, meses. Tudo se conecta harmonicamente num passeio pelas ruas de Berlim, pelas mentes imparáveis que expõem e explicam sem querer até a mais pequena intimidade e profundidade. Por que será que as expressões mundanas são impossíveis, são tabus, exposições não razoáveis para a sociedade, para os mesmos humanos comuns e mortais? “Quando a criança era uma criança.” O leitmotiv volta a soar em off e em sussurro. “Quando a criança era uma criança, era vergonhoso com os desconhecidos, e todavia segue sendo assim.”

Será que esta repreensão do sentir nos torna seres tão envolventes para Damiel e Cassiel?

É tão simples e ao mesmo tempo tão complexo ser humano. Nessa busca de sentimentos e emoções, Damiel nos mergulha no profundo e primordial numa eterna poesia, de indagação de sensações, do ser, da identidade mais verdadeira e profunda.

Prontamente, Damiel conhece no circo uma trapezista mais anjo que humana, Marion, e através dela ele se envolve no amor e na compreensão. Sua decisão de encarnar se converte numa convicção. O mundo tem, de repente, cores, cheiros, sabores. Na experiência de fusionar-se com o outro, por escolha, por decisão, como expressa Marion, o anjo transformado em mortal encontra, enfim, algo que nenhum outro anjo sabe. Com a sabedoria, entrega e sinceridade de Marion, a condição humana e a divina se unem, sentindo-se pela primeira vez o propósito da própria existência. O amor em sua expressão mais grandiosa ensina tanto ao eterno como ao finito o propósito fundamental.

“Quando a criança era uma criança”, nos lembra Damiel com sua doce voz, de modo que ressoe em nós, humanos, a sensação de que talvez também sejamos anjos caídos que buscam algo que está para o além.

 

 


 

Versión en español

 

“Cuando el niño era niño”

El ángel Damiel dijo: “Cuando el niño era niño, era el momento de las siguientes preguntas: ¿Por qué soy yo y no tú?;¿por qué estoy aquí y no allá?;¿Cuándo empezó el tiempo, y dónde se acaba el espacio?;¿La vida bajo el sol es sólo un sueño?;¿Lo que veo, oigo y huelo es sólo la apariencia de un mundo previo al mundo?;¿Existe realmente el mal y personas que de verdad son malas?;¿Cómo puede ser que yo, que soy yo, antes de llegar a ser, no fuera? y ¿que yo, que soy yo, algún día ya no seré más el que soy?”

Mientras vemos la ciudad de Berlín desde un punto de vista subjetivo y cenital, los ángeles Damiel y Cassiel observan y anotan todos los pensamientos, conclusiones, reflexiones, remordimientos y recuerdos de los humanos. En este paseo etéreo por la ciudad, la condición humana vista desde la divinidad parece ser una maquinaria de mentes que nunca callan.

En este maravilloso encuentro entre deidades y seres terrenales nos sitúa el fantástico cineasta Wim Wenders. Creador de grandiosos road movies, en esta ocasión un viaje interior desde las curiosidades y reflexiones de un ángel que quiere comprender y pasar una experiencia humana. Con actuaciones extraordinarias de Bruno Ganz, Otto Sander, Solveig Dommartin y Peter Falk y un guión increíble del mismo Wim Wenders, Peter Handke y Richard Reitinger, Der Himmel Über Berlin se convierte en un memorable y hermoso encuentro entre lo divino y lo secular.

En las complejidades de la ciudad de Berlín de la posguerra, con un muro que aún dividía las vidas y los sentimientos de los ciudadanos, se suma el encuentro de dos dimensiones separadas que se entrelazan: lo etéreo, eterno y divino con lo terrenal, finito y confuso.

En cierto sentido viajamos y flotamos junto a las imágenes del cielo y de la ciudad, y observamos el mundo en blanco y negro junto con los ángeles, siempre imparciales, inexpresivos pero a la vez empáticos, siempre testigos de todo lo que ocurre con los humanos, siempre como únicos vestigios del pasado y del presente, al igual que los edificios históricos, ahora ruinas de los bombardeos de la segunda guerra, símbolos del ayer, de la destrucción y la nostalgia.

Continuamos el recorrido, adentrándonos junto a los ángeles en las casas, en la biblioteca Estatal de Berlín, en las plazas, en las mentes incansables y aturdidas de preguntas y reflexiones sin respuestas. Los personajes humanos, personas con sentimientos y reflexiones atrapantes, todo lo racionalizan, no queda ni un sentimiento, emoción o circunstancia sin ser desmenuzado por la mente. Como si el sentir y experimentar la realidad de la vida fuera una cuestión de un acto explicativo, descriptivo. Un diálogo interno constante que aliena a la sociedad, al individuo. Quizás una costumbre o un acto fallido de la de soledad, de incomprensión o de egocentrismo. Sólo encontramos paz en los silencios sórdidos de los contemplativos ángeles, que acompañan y a veces consuelan a los mortales mientras la historia, la guerra y la soledad se filtran en el relato.

En un momento nos preguntamos al igual que el ángel Cassiel ¿por qué Damiel quiere ser humano? Visto desde los ojos de un ángel y entre sus mismos diálogos, la condición terrenal es como un absurdo constante. Pero Damiel nos recuerda que la eternidad también puede llegar a ser insulsa. Los deseos, sentidos y sentimientos se adentran poco a poco en el ángel. Su curiosidad lo acerca a las oscuridades, a la tristeza, a la depresión, a la pasión y finalmente al amor en su máxima expresión.

La cámara sigue flotando en subjetivas de paneos, de seguimientos y somos los ojos de lo celestial en un mundo monocromático, frío y triste, pero de repente ráfagas de color se presentan, el incomprensible mundo terrenal asombrosamente posee colores visto desde la humanidad. Por momentos también escuchamos sirenas de ambulancias y de la policía en las calles, entre medio de arpas mágicas y pensamientos parlantes. Al parecer sólo los niños pueden conectarse con lo etéreo y hermoso, los adultos sólo languidecen en preocupaciones y banalidades. De repente un cineasta americano, Colombo, nos sorprende tomando un café mientras habla directo a Damiel “no puedo verte pero puedo intuir que estas aquí,… ¡compañero!” y el encuentro entre ambos mundos se estrecha en el saludo de manos de ambos. Extendiéndose así la representación del vínculo del cine inmerso en el cine, del cine inmerso en la vida misma. Para Colombo, que es un ex ángel, la vida es una aventura por descubrir e incita a Damiel en continuar por si mismo. La incertidumbre arrasadora y la inmensidad del mundo emociona a Damiel, lo hace sonreír, quizás son los primeros atisbos de experimentar la vida como los humanos la conocen.

En el pase del cielo a la tierra, las imágenes son fugaces y rápidas, al igual que en El Hombre de la Cámara de Dziga Vertov, el pasaje es caótico y rápido. Es sensorial, confuso, quizás parecido al acto de nacer en este plano. En esta ciudad símbolo de la humanidad, mientras las personas se cruzan, se exponen sentimientos como la desolación más íntima, la soledad más carnal, el famoso vacío existencial, mientras los ángeles contemplan fascinados y silenciosos lo íntimo, lo oculto, lo propio. La percepción del tiempo no es exacta, fluimos junto con el montaje en distintas escenarios y situaciones. No sabemos, al igual que un sueño eterno, si pasaron días, horas, meses. Todo se conecta armónicamente en un paseo por las calles de Berlín, por las mentes imparables que exponen y explican sin querer hasta la más mínima intimidad y profundidad. ¿Por qué será que las expresiones mundanas son imposibles, son tabúes, exposiciones irrazonables para la sociedad, para los mismos humanos comunes y mortales? “Cuando el niño es niño”. El leitmotiv vuelve a sonar en off y en susurro, “Cuando el niño es niño, era vergonzoso con los desconocidos, y todavía sigue siendo así.”

¿Será que esta represión del sentir nos hace seres atrapantes para Damiel y Cassiel?

Es tan simple y a la vez tan complejo ser humano. En esta búsqueda de sentimientos y emociones, Damiel nos sumerge a lo profundo y primordial en una eterna poesía, de indagación de sensaciones, del ser, de la identidad más verdadera y profunda.

De pronto en el circo Damiel conoce una trapecista más ángel que humana, Marion, y a través de ella se envuelve en el amor y en la comprensión. Su decisión de encarnar se convierte en una convicción. El mundo de repente tiene colores, olores, sabores. En la experiencia de fusionarse con el otro, por elección, por decisión como expresa Marion, el ángel devenido en mortal al fin encuentra algo que ningún otro ángel sabe. Con la sabiduría, entrega y sinceridad de Marion, la condición humana y divina se unen, sintiéndose por primera vez el propósito de la existencia misma. El amor en la más grandiosa expresión enseñan tanto a lo eterno como a lo finito el propósito fundamental.

“Cuando el niño es niño”, nos recuerda Damiel con su dulce voz, y resuena en nosotros, los humanos, la sensación de que quizás también seamos ángeles caídos buscando un más allá.

Ayelen Indra Lago
Licenciada em Cinematografia e Técnica Audiovisual pela Universidad Nacional de Tucumán, Argentina. Também tem formação nas áreas de Teatro e Dramaturgia. Diretora no projeto de Documentário "Pozo Vacante", vencedor da Bolsa de Criação 2018 do Fundo Nacional das Artes da Argentina. Atua principalmente como realizadora em tempo integral e como docente em cursos de cinema para jovens e adultos. Também colabora com vários projetos artísticos e audiovisuais de Tucumán.

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