Visuais

Vicente Lopez, sommelier

imagem: René Magritte – Jovem garota comendo um pássaro (O Prazer) (1927)

“Vicente Lopez, até então um homem de costumes inabaláveis, no auge dos seus quarenta e dois anos, sentia nessa manhã alguns arroubos diversos.”

 

Certa manhã, sem que nada de diferente houvesse acontecido, Vicente Lopez acordou com desejo de tinta. Seu quarto permanecia tal como deixado na noite anterior, suas anotações intactas, sua agenda intocada, seus sapatos cuidadosamente posicionados entre a cômoda e as pantufas cor de creme. Sobre a escrivaninha, duas resenhas sobre as aberturas de exposição de artistas neo-ameríndios a serem lançadas no jornal local. Fez seu café, lento, na mesma medida de sempre, e aqueceu seu pão nos usuais cento e oitenta graus. Vicente Lopez, até então um homem de costumes inabaláveis, no auge dos seus quarenta e dois anos, sentia nessa manhã alguns arroubos diversos. 

Em vez de sentar-se à mesinha de madeira em sua cozinha, a costumeira para seus desjejuns, sentou-se à mesa de vidro da sala, a de jantar, sob a luz do sol da manhã de domingo. Sentou-se sobre as pernas cruzadas, como um menino, naquela cadeira de aspecto tão formal e solene, e manteve-se em silêncio, deixando de ouvir seu costumeiro podcast de notícias e tocando, com seus dedos nus e engordurados, a geleia de amora que cobria a manteiga em seu pão, olhando-a curiosa e intensamente antes de chupá-la, como se fosse a gema escarlate de um rubi com gosto doce, como se fosse viva. Tendo jogado a louça suja dentro da pia e enchido novamente a caneca de café, ignorando pela primeira vez a fobia de uma imaginária gastrite, sentou-se novamente à mesa de jantar para escrever manualmente uma carta que seria enviada ao diretor do podcast literário Jesus Saves. Pediu, identificando-se como “Vicente Lopez, sommelier”, a leitura de um texto do poeta Paul Nougé. Trocou-se, vestiu um casaco, mas ao sair pensou se não estaria agasalhado demais, voltou para dentro, e saiu de novo assim mesmo, levando consigo a carta para botá-la no correio.

Degustou pela primeira vez uma lasca de tinta ao visitar o laboratório de restauração do Museu Paranaense, aproveitando o descuido das restauradoras, que comiam bolo de cenoura com coca-cola, para afanar um caco craquelado do autorretrato de Alfredo Andersen e metê-lo na boca, deixando o pedaço se desfazer como um tipo de hóstia sagrada, uma vítima expiatória de um fetiche ainda pouco desenvolvido. Durante a Bienal devotada à arte chinesa, Vicente Lopez aproveitou a oportunidade para provar no mínimo seis diferentes telas dessa notável cepa estrangeira, já emitindo alguns julgamentos primitivos sobre notas e aromas, e pela primeira vez conseguiu – sabe-se pouco sobre isso – lamber a base da escultura de gesso postada na parte central da galeria. Circulou, nessa mesma época, a notícia do sumiço do macaco que fazia parte da escultura Original Sin:
https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/parte-de-escultura-chinesa-pecado-original-roubada-na-bienal-de-curitiba-22410710

Consumiu pela primeira vez peças de tecido e também de resina ao visitar o Museu de Arte Contemporânea. Este material, em especial, causou algum desagrado tanto pela aparência de muco – numa obra que simulava um monte de catarro – quanto pela textura. Suas resenhas, que continuavam saindo nos jornais locais de costume e também em alguns blogs de arte, passaram a trazer cada vez mais referências a ‘corpo’, ‘aroma’, ‘textura’, ‘acidez’ e ‘adstringência’. Não tinha enorme apreço por peças feitas de arame, embora houvesse construído um diverso repertório a respeito de instalações feitas disso, e viveu uma interessante fase de degustação de instrumentos de orquestra, com preferência para os do grupo da Sinfônica do estado, em especial aqueles do naipe das madeiras. Com relação aos instrumentos plugados, tinha enorme preferência pelos que apareciam no jazz do Dizzy, em detrimento dos que costumavam ser usados em bares mais roqueiros como o Crossroads ou o Sheridan’s, tidos por Vicente Lopez como um tipo de junk food. A primeira pessoa que Vicente Lopez degustou foi durante uma performance artística na vitrine da sobreloja da galeria Boiler, numa cena pública e mixuruca de sexo oral.

A primeira pessoa que Vicente Lopez consumiu inteiramente foi durante uma noite de apresentações de dança do ventre no Bagdad Café, na primavera seguinte. Seu paladar tinha apreço especial pela estirpe de dançarinos e performers, embora tivesse provado também alguns músicos, pintores, gravuristas e cineastas. Dispensava grafiteiros e gente dos lambes. De acordo com suas resenhas, publicadas diariamente no jornal local, estava incerto se a acidez elevada dos escritores e poetas da cidade devia-se ao terroir ou à própria cepa. Mas, profissional que era, consumiu certa quantidade até encerrar a tour com um escritor residente no Centro Cívico, que considerou aromático, mas adstringente em excesso. Engoliu alguns artistas/decoradores que estavam residentes na Sim Galeria, lugar que considerava um tipo de Starbucks do mundo da degustação artística, mas absteve-se de escrever sobre isso, e tinha em seu freezer algumas porções de artistas de rua, divididos em tupperwares de diferentes cores, que usava para misturados e cozidos do dia a dia. Diante disso tudo, ainda estava por descobrir sua cepa preferida.

Vemo-lo, agora, no coração do verão, à sombra de uma árvore robusta e amontoada com pássaros calmos e desarmados com a sua presença. Tinha um comportamento quase colegial, vestia-se de maneira modesta e tinha o cabelo bem arrumado. Observando-se bem, podia-se notar nele a palidez da alegria, suas pálpebras se fechando sobre a crueldade dos seus sonhos, seus dentes pressionados nos lábios manchados de sangue. Um homem absorvido em seu prazer, saboreando, através das carícias nos cabelos, uma criatura dócil, tão dócil a ponto de continuar vivendo. Inventou-se ali, como num pensamento tardio, o homem que comia atrizes.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

You may also like

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

More in Visuais