Literatura

Do mito da razão às razões do mito

Guilherme Gontijo, a respeito das obras de referência para estudos literários no Brasil, comenta a antologia recém lançada pela editora Argos: Do mito das musas à razão das letras.

“(Cândido) Lusitano certamente não tinha mais — nem menos — afinidade com a poesia clássica romana do que nós.”

 

sempre tive a impressão de que o Brasil é um país sem pendor para obras de referência: elas se adiam constantemente, ou nunca vêm à luz, ou, quando finalmente algo surge, trata-se de uma tradução de obra já reconhecida de outro país (O romance, vol. 1 — a cultura do romance, do italiano Franco Moretti é um caso recente). claro, claro, essa regra tem algumas exceções que a confirmam, como esperado (penso, por exemplo, na Teoria da literatura em suas fontes, 2 vols. organizados por Luiz Costa Lima). em alguns casos, são obras inesperadas mesmo, como esta que acabou de sair: Do mito das musas à razão das letras: texto seminais para os estudos literários (séc. VIII a.C. — séc. XVIII), pela editora Argos, da Unichapecó, uma antologia organizada por Roberto Acízelo de Souza.

trata-se de um calhamaço em capa dura, formato 28×21, com 1072 páginas, que reúne textos que vão da poesia homérica (c. séc. VIII a.C.) ao “Compêndio retórico” de Bento Rodrigo Pereira de Sotomaior Meneses (1794), ou seja, um panorama das discussões sobre poesia, retórica & criação ao longo de cerca de 2.500 anos, no ocidente; um panorama que passa por autores diversos, que são devidamente apresentados ao leitor. eis alguns nomes: Empédocles, Píndaro, Górgias, Platão, Aristófanes, Aristóteles, Cícero, Horácio, Quintiliano, Santo Agostinho, Matthieu de Vendôme, Raimon Vidal, Tomás de Aquino, Dante Alighieri, Antônio Ferreira, Antônio Vieira, Nicolas Boileau, Alexander Pope, Cândido Lusitano, Adam Smith, Gotthold Ephraim Lessing, Silva Avarenga, dentre vários outros. o livro está dividido em sete partes, cada uma em ordem cronológica: 1. as concepções míticas; 2. as regras de composição; 3. os procedimentos crítico-analíticos; 4. os gêneros; 5. os ordenamentos historiográficos; 6. a reflexão filosófica; & 7.a querela entre antigos & modernos. 

além do interesse óbvio que uma reunião desse porte pode gerar pelo acesso a uma variedade de visões sobre as letras (Acízelo de Souza observa, na introdução, como o “período […] representado pelo textos aqui reunidos conheceu as letras, mas não a literatura”, p. 23); penso que o volume tem ainda outro valor notável: trata-se, em grande parte, de uma reunião de traduções, o que significa que temos diante de nós também uma pequena história dos textos que foram traduzidos para o português, o que explica porque sua importância histórica se deu na nossa língua. & mais duas coisas: a) a obra põe em circulação traduções que estavam esgotadas havia muito tempo, como a Arte poética de Horácio na versão de Cândido Lusitano, em 1778, ou a Arte poética de Boileau vertida pelo Conde de Ericeira, em 1818; assim b) junto com esses textos seminais, há uma espécie de duplicata via tradução, temos aos nossos olhos um pedaço da história de como esses textos se tornaram seminais. essa experiência é mais forte porque, como explica o organizador sobre a escolha de traduções, “sempre que as havia disponíveis demos preferência àquelas produzidas na época clássica” (p. 24).

dito isso, é claro que poderíamos iniciar uma lista das obras não-contempladas, o que seria, no mínimo, inútil. antologias são, por definição, um recorte peculiar. esta, além do mais, é das mais completas que se poderia imaginar; portanto listar os nomes que não entraram seria mera picuinha intelectual, sem valor crítico de fato. mais importante, a meu ver, é repensarmos dois pontos muito discutíveis do livro.

  1. o título, Do mito das musas à razão das letras, reforçado ainda pela primeira parte, “as concepções míticas”, me parece reforçar uma dicotomia velha & infeliz. os estudos sobre o mito realizados nos últimos 100 anos vêm demonstrando seu poder racional, ao mesmo tempo que uma série de obras do pensamento ocidental têm feito um longo esforço para demonstrar a irracionalidade fundante da razão, & mesmo seu recurso aos mitos justificativos. diante da força da variedade de autores, com posturas & enfoques tão contrários (mesmo os coetâneos), fica a sensação de que a própria obra desconstrói seu título.
  2. embora o uso de traduções clássicas & fora de catálogo seja muito louvável, creio ainda que a justificativa do organizador é muitíssimo questionável. vejamos:

 

embora toda tradução promova modernizações em relação ao seu texto-objeto, é de esperar-se menos anacronismos naquelas cujos autores compartilham os mesmo princípios literários observados na composição do original. Assim, para dar um exemplo, da Arte poética de Horácio escolhemos uma versão do século XVIII, da lavra de Cândido Lusitano, preterindo, pois, traduções atualizadas, cuja eventual maior legibilidade pelo leitor de hoje provavelmente se dará à custa de menos sintonia com a trama de noções e valores de que procede o original. (p. 24)

 

o argumento pode até proceder para um caso como o da tradução de Boileau pelo Conde de Ericeira, já que, por viverem num mesmo período, é provável que as escolhas do conde de algum modo reflitam as afinidades entre o pensamento literário promovido por Boileau na França & pela tradução em Portugal. no entanto aplicar a mesma lógica para uma tradução que está a 1.800 anos de distância de seu original, como é o caso da Arte poética horaciana traduzida por Cândido Lusitano, não faz o menor sentido. Lusitano certamente não tinha mais — nem menos — afinidade com a poesia clássica romana do que nós. a meu ver, publicar sua tradução vale como procedimento histórico: nós, no presente, podemos ler Horácio por um viés do séc. XIX, podemos ler Horácio em sua história tradutória na nossa língua.

feitas essas duas ressalvas, penso que o livro resta como um monumento fundamental para os estudos literários no Brasil. não é todo dia que vemos um organizador & uma editora com a coragem de produzir obras dessa envergadura.

ps: transcrevi para vocês o hilário trecho final da Arte poética de Horácio, na tradução de Cândido Lusitano.

 

XL

A gente de juízo teme tanto
Chegar-se a mau poeta, como a enfermo
De lepra, da tirícia, e de loucura
Fanática, ou furiosa. De rapazes
Turba incauta o persegue, e vai seguindo:
E se acaso altos versos vomitando,
Lhe suceder cair em poço ou cova,
(Bem como o que embebido em caçar melros,
Cai sem ver os perigos) a valer-lhe
Ninguém se chegará, ainda que esteja
Longo tempo a clamar: Quem me socorre.
E se eu visse que alguém lançando corda
Pretendia acudir-lhe, me oporia,
Dizendo-lhe: que sabes, se essa queda
Deu ele, porque quis, e teu socorro
Não quer? E para prova lhe contara
De Empédocles a morte: quis ser tido
Por um deus imortal, e acometido
De frio horror, precipitou-se do Etna
Na fraga ardente. Lícito aos poetas
Seja pois o matar-se: dar a vida
Ao que não quer viver, é dar-lhe morte.
Não foi uma só vez que esse furioso
Tal loucura intentou; e se do risco
Chegasses a livrá-lo, nem por isso
O verias curado, nem o afeto
A tão falada morte perderia.
Não posso alcançar bem por que motivo
A pena se lhe pôs de fazer versos;
Se foi por profanar as pátrias cinzas,
Ou por tocar sacrílego o funesto
Fulminado lugar; sei que é um louco
Furioso, que à maneira de urso solto,
Com versos insofríveis afugenta
Ignorantes, e doutos; e se acaso
Acha algum de bom jeito, não o larga,
E com versos o mata; semelhante
À tenaz sanguessuga, que, se cheia
De sangue não está, não larga a pele.

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

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