Literatura

Sexto Propércio

imagem: Mosaico romano de cena amorosa, séc. II d.C.

 

Quereis saber por que eu escrevo meus Amores,
por que meu livro vem suave aos lábios.
Não é Calíope que dita, nem Apolo:
quem gera o meu engenho é minha amada.

 

§

 

Acabei de lançar a primeira tradução poética completa das Elegias de Sexto Propércio em língua portuguesa, pela editora Autêntica. Foram quase dez anos com essa poesia na minha cabeça, entre idas e vindas, porém marcados por um silêncio. Quase não falei sobre Propércio, quase não mostrei ou publiquei essas traduções fora de um círculo bem restrito de amizades e de leitores de poesia antiga. Não foi pudor, aconteceu enquanto eu procrastinava ou me dedicava à penca infinita dos projetos paralelos. Por isso este texto de hoje: contribuir, fora do livro que está saindo, para uma divulgação de uma obra que me moveu por anos. Dar um gostinho dessa poesia jocosa e densa, entre o patético e o erudito.

O texto abaixo é tirado da introdução ao livro.

 

§§

 

Sobre a vida de Propércio, temos pouquíssimas informações, e a maioria derivada da sua própria poesia, o que aumenta ainda mais o grau de desconfiança. Porém, se tivéssemos que fazer um apanhado, ficaria mais ou menos assim: nascido em torno de 50 a.C. de uma família nobre, Sexto Propércio vem da Úmbria (próximo a Assis); devido às guerras civis, sua família perdeu parte de suas terras, que foram confiscadas por Otaviano e Marco Antônio (cf. 1.21, 1.22 e 4.1, além de Virgílio Bucólicas 1 e 9), o que levou a família ao empobrecimento, mas não à miséria; se confiarmos ainda em 1.21 e 1.22, sabemos que a família sofreu profundamente com a Guerra da Perúsia, em 41 e 40 a.C.; ao que tudo indica, perdeu seu pai ainda jovem (4.1), mas recebeu uma educação formal da elite romana, provavelmente em Roma, com o objetivo de trabalhar na advocacia. Por fim, ainda jovem, se voltou para a poesia, e não temos maiores dados sobre sua carreira profissional desvinculada da escrita.

Em 29 a.C., provavelmente, aparece seu primeiro livro de elegias (talvez intitulado Amores, mas comumente conhecido como Cynthia monobiblos) dedicado inteiramente à sua amada, a Cíntia, e que parece ter feito algum sucesso imediato. A figura de Cíntia é um grande problema interpretativo, se considerarmos sua existência biográfica como a maior amante de Propércio: Apuleio, mais de um século depois da morte do poeta, em Apologia 10, afirmaria que sob a máscara de Cíntia estaria velada uma certa jovem romana chamada Hóstia; no entanto a maioria dos comentadores tende, hoje, a descartar leituras biográficas da elegia romana. E acrescento: mesmo que houvesse uma ou várias mulheres que motivassem a escrita de Propércio, sua artificialidade, seu enquadramento dentro das diversas regras e lugares comuns do gênero, tudo isso aponta para uma autoconsciência literária muito profunda; e assim a biografia estaria, e muito, submetida à poesia, e não o contrário.

Em seguida, Propércio publica (talvez sob o patronato de Mecenas), os livros II (entre 26-25 a.C., na verdade, talvez dois livros distintos, cf. introdução às notas) e III (23 a.C.). Por fim, o livro IV (talvez sob o patronato do próprio Augusto) sai em cerca de 16 a.C. Na falta de mais informações, costuma se assumir que Propércio deve ter falecido em 15 a.C., com cerca de 35 anos.

Sua poesia ganhou fama de obscura, difícil, excessivamente mítica, etc., por vários leitores; seu estilo é complexo, e não à toa Pound identificaria nele uma espécie de precursor da logopoeia, que só viria a se desenvolver completamente, quase dois mil anos depois, com a poesia fin de siècle de Corbière e Laforgue. Muitas vezes construções inesperadas tomam conta do texto, uma ironia sutil desconstrói expectativas e com frequência deixa o leitor sem base para fazer seus julgamentos sobre uma possível verdade da poesia expressa pelos poemas. Assim, Propércio já foi considerado romântico, político engajado (pró e contra o Império), sincero em suas paixões, artificial na escrita, simbolista avant la lettre, modernista romano, etc. Para tentar dar algum anteparo ao leitor, vale a pena fazer um pequeno comentário sobre a poesia elegíaca e as suas possibilidades enquanto gênero literário.

A história da elegia na Antiguidade é marcada por descontinuidades; não que não tenha sido continuamente escrita ao longo dos séculos, mas sua definição é um grande problema, desde suas origens, até a elegia romana. A elegia grega arcaica podia ser definida primariamente pelo seu modo de apresentação: um poema entoado (muito provavelmente acompanhado por um aulós, um instrumento de sopro) e feito com o dístico elegíaco: um hexâmetro datílico e um pentâmetro datílico que formam uma estrofe (cf. posfácio). Não há uma temática específica para a elegia arcaica, entre os séculos VII e VI a.C.; nela vemos poemas amorosos, gnômicos, políticos, narrativos, bélicos, etc., talvez ligados a um uso funeral, mas não unicamente. Já no período helenístico (séc. III a.C.), a elegia passa a ser muito utilizada por poetas como Calímaco de Cirene e Filetas de Cós como veículo para narrativas, muitas vezes amorosas, de mitos menos conhecidos, e assim a temática amorosa toma boa parte do espaço elegíaco. Simultaneamente outro gênero também tem um boom: o epigrama, uma espécie de inscrição funerária que passa a ganhar o status literário e a possibilidade de ser escrita ficcionalmente (alguns dos maiores nomes do gênero seria Meleagro, Calímaco, Leônidas de Tarento, dentre vários). O epigrama também incorpora muito da tradição da poesia amorosa subjetiva, além de também ser escrito em dístico elegíacos.

Talvez seja dessa fusão entre a brevidade subjetiva e o complexo desenvolvimento das elegias mais longas e míticas amorosas que a elegia romana surge como uma forma nova. Porém mesmo esse surgimento em Roma é difícil de se definir. Se tivéssemos de apresentar um ponto de origem, eu diria que estariam em dois carmina de Catulo, de meados dos anos 50 a.C.: 65-6 (com uma breve carta de 65 apresentando 66, uma tradução da Coma de Berenice de Calímaco) e 68 (um longo poema subjetivo amoroso, com várias guinadas para o campo mítico, familiar, na forma de monólogo endereçado ao um amigo confessor). Provavelmente Catulo não compreenderia seus poemas como “elegia erótica romana” tal como nós: enquanto um gênero definido. Os dois poemas parecem resultado de experimentação com formas tradicionais previamente estabelecidas: o epigrama e a elegia dos gregos. Mas Catulo ainda consegue dar notas humorísticas aos poemas, que parecem ter outra origem, a Comédia Nova romana, de Plauto e Terêncio (séc. III e II a.C.); o que faz um pequeno caldeirão de influências resultar em poemas de estruturas bastante complexas.

Mas tarde, Cornélio Galo (70 – 26 a.C.) publicaria os seus Amores, um livro que não nos chegou – fora 10 versos fragmentários -, onde cantava a sua paixão por Licóris. Embora não possamos afirmar ao certo se o livro apresentaria apenas elegias (e se elas seriam tal como as nossas elegias romanas), ou se teria uma mistura de metros e assuntos. Seja como for, Galo é posteriormente tomado como o fundador da elegia romana como gênero literário novo, diverso do que havia sido produzido pelos gregos. Boa parte do que podemos deduzir de sua poesia está na sua representação como personagem central da décima bucólica de Virgílio.

O que torna ainda mais incrível o desenvolvimento da elegia é seu período minúsculo de pouco mais de meio século, entre seus primeiros esboços com Catulo e seu esgotamento com Ovídio, no início da nossa era. Catulo e Galo, de algum modo, deram as bases da elegia erótica romana; e vamos resumir grosseiramente assim:

  1. uma poesia subjetiva complexa e mais longa do que um epigrama;

  2. uma temática prioritariamente amorosa, mas não exclusiva;

  3. o uso mais ou menos frequente da mitologia como argumento ilustrativo e alusivo da própria subjetividade expressa nos poemas;

  4. uma boa dose de humor derivado da comédia romana.

 

É com essa base que Tibulo e Propércio vão começar a sua escrita, e pouco depois Ovídio levará o gênero ao seu esgotamento, seguindo os passos do experimentalismo apresentado pelos poetas anteriores. Quando falo em experimentalismo, é preciso que o leitor seja sutil – não há nada aqui parecido com as vanguardas experimentais do século XX, ou com a poesia experimental das últimas décadas. A experimentação é aqui feita por pequenas quebras de expectativa, inversões dos lugares comuns do gênero, fusão de gêneros, etc. Há um jogo entre cumprir uma série de determinações genéricas e um pequeno espaço de liberdade e originalidade poética.

Como exemplo desse experimento, deixo com vocês minha tradução do poema 2.1.

 

§§§

 

2.1

Quereis saber por que eu escrevo meus Amores,

por que meu livro vem suave aos lábios.

Não é Calíope que dita, nem Apolo:

quem gera o meu engenho é minha amada.

Se a vejo refulgir com seu manto de Cós, 5

com veste Côa vem o meu volume;

se vejo a coma esvoaçante sobre a fronte,

se orgulhará do meu louvor às mechas;

se com dedos ebúrneos toca à lira uns versos,

admiro as mãos num ágil movimento; 10

se ao sono entrega os seus olhinhos relutantes,

poeta, encontro novas causas, mil;

se, livre de seus véus, luta comigo nua,

então componho Ilíadas imensas;

se ela faz qualquer coisa ou fala algo qualquer, 15

do nada nasce uma sublime história.

Ó Mecenas, se os Fados me dessem talento

de conduzir à guerra as mãos heroicas,

Titãs não cantaria, nem Ossa no Olimpo

para que Pélion fosse a ponte ao céu, 20

nem Pérgamo, uma glória homérica, nem Tebas,

nem os mares que Xerxes manda unir,

nem Remo e antigo reino, ou o valor de Cartago,

nem Mário contra as ameaças Címbrias:

eu lembraria as guerras e atos do teu César, 25

e, após César, a ti atentaria.

Quando eu cantasse tumbas, Mútina ou Filipos,

e combates navais da fuga Sícula,

os lares destruídos de antigos Etruscos,

e a Ptolomaica Faros subjugada, 30

quando eu cantasse o Egito e o Nilo em plena Urbe

com suas sete fontes prisioneiras,

régios pescoços presos por correntes áureas

e esporões Ácios pela Via Sacra;

a minha Musa sempre te uniria às armas, 35

como fiel amigo em paz e guerra:

Teseu no inferno e em terra Aquiles testemunham

ao filho de Menécio e ao de Ixíon.

 

***

 

Porém a luta em Flegra entre Encélado e Júpiter

não troa o peito angusto de Calímaco, 40

nem ao meu âmago convém louvar a César,

com versos rijos, entre os avós Frígios.

De ventos fala o nauta, o lavrador de touros,

de chagas o soldado, o pastor de anhos;

porém eu verso lutas sobre um leito angusto: 45

cada um passa o tempo em sua arte.

Glória é morrer de Amor: outra glória é gozar

de um só: sozinho eu goze meu Amor!

Se lembro, ela critica jovens levianas

e por Helena ela reprova a Ilíada. 50

Posso provar os filtros da madrasta Fedra,

filtros não fazem mal ao enteado,

posso morrer por ervas de Circe, ou queimar

nos fogos de Iolco em Cólquida caldeira;

se uma mulher apenas me roubou o senso, 55

sairá desta umbral o meu enterro.

A medicina cura toda a dor dos homens:

somente Amor não ama o seu remédio.

Macáon melhorou os pés de Filoctetes,

Quíron Filírida, a visão de Fênix; 60

com as ervas Cretenses o Deus de Epidauro

ressuscitou Andrógeo em lar paterno;

e o jovem Mísio, que na lança Hemônia a chaga

sentiu, na mesma lança sente alívio.

Se este vício alguém puder tirar de mim, 65

frutos pode trazer às mãos de Tântalo,

e encher com cântaros das virgens os tonéis

sem que o pescoço ceda ao peso da água,

do Cáucaso ele pode livrar Prometeu

e afugentar a ave de seu peito. 70

Por isso, quando o Fado me exigir a vida,

e eu for um parco nome em pouco mármore,

Mecenas, esperança invejável dos jovens,

justa glória de minha vida e Morte,

se uma estrada levar-te perto do meu túmulo, 75

para o carro Bretão de jugo ornado,

e, em lágrimas, diz isto às minhas cinzas mudas:

“Fado desse infeliz foi dura moça.”

 

 

2.1

Quaeritis unde mihi totiens scribantur Amores,

unde meus ueniat mollis in ore liber.

Non haec Calliope, non haec mihi cantat Apollo:

ingenium nobis ipsa puella facit.

Siue illam Cois fulgentem incedere cerno, 5

totum de Coa ueste uolumen erit;

seu uidi ad frontem sparsos errare capillos,

gaudet laudatis ire superba comis;

siue lyrae carmen digitis percussit eburnis,

miramur, facilis ut premat arte manus; 10

seu compescentis somnum declinat ocellos,

inuenio causas mille poeta nouas;

seu nuda erepto mecum luctatur amictu,

tum uero longas condimus Iliadas;

seu quidquid fecit siue est quodcumque locuta, 15

maxima de nihilo nascitur historia.

Quod mihi si tantum, Maecenas, Fata dedissent,

ut possem heroas ducere in arma manus,

non ego Titanas canerem, non Ossan Olympo

impositam, ut caeli Pelion esset iter, 20

nec ueteres Thebas nec Pergama, nomen Homeri,

Xerxis et imperio bina coisse uada,

regnaue prima Remi aut animos Carthaginis altae,

Cimbrorumque minas et bene facta Mari:

bellaque resque tui memorarem Caesaris, et tu 25

Caesare sub magno cura secunda fores.

Nam quotiens Mutinam aut, ciuilia busta, Philippos

aut canerem Siculae classica bella fugae,

euersosque focos antiquae gentis Etruscae,

et Ptolomaeei litora capta Phari, 30

aut canerem Aegyptum et Nilum, cum attractus in urbem

septem captiuis debilis ibat aquis,

aut regum auratis circumdata colla catenis,

Actiaque in Sacra currere rostra Via;

te mea Musa illis semper contexeret armis, 35

et sumpta et posita pace fidele caput:

Theseus infernis, superis testatur Achilles,

hic Ixioniden, ille Menoetiaden.

 

***

 

Sed neque Phlegraeos Iouis Enceladique tumultus

intonat angusto pectore Callimachus, 40

nec mea conueniunt duro praecordia uersu

Caesaris in Phrygios condere nomen auos.

Nauita de uentis, de tauris narrat arator,

enumerat miles uulnera, pastor ouis;

nos contra angusto uersamus proelia lecto: 45

qua pote quisque, in ea conterat arte diem.

Laus in Amore mori: laus altera si datur uno

posse frui: fruar o solus amore meo!

Si memini, solet illa leuis culpare puellas,

et totam ex Helena non probat Iliada. 50

Seu mihi sunt tangenda nouercae pocula Phaedrae,

pocula priuigno non nocitura suo,

seu mihi Circaeo pereundum est gramine, siue

Colchis Iolciacis urat aena focis,

una meos quoniam praedata est femina sensus, 55

ex hac ducentur funera nostra domo.

Omnis humanos sanat medicina dolores:

solus Amor morbi non amat artificem.

tarda Philoctetae sanauit crura Machaon,

Phoenicis Chiron lumina Phillyrides, 60

et Deus exstinctum Cressis Epidaurius herbis

restituit patriis Androgeona focis,

Mysus et Haemonia iuuenis qua cuspide uulnus

senserat, hac ipsa cuspide sensit opem.

Hoc si quis uitium poterit mihi demere, solus 65

Tantaleae poterit tradere poma manu;

dolia uirgineis idem ille repleuerit urnis,

ne tenera assidua colla grauentur aqua;

idem Caucasia soluet de rupe Promethei

bracchia et a medio pectore pellet auem. 70

Quandocumque igitur uitam mea Fata reposcent,

et breue in exiguo marmore nomen ero,

Maecenas, nostrae spes inuidiosa iuuentae,

et uitae et Morti gloria iusta meae,

si te forte meo ducet uia proxima busto, 75

esseda caelatis siste Britanna iugis,

taliaque illacrimans mutae iace uerba fauillae:

Huic misero Fatum dura puella fuit.”

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

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