Literatura

Socaram o pau no cu da Vilma

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Imagem: ilustração por Humberto Pereira Jr.

[/vc_column_text][vc_column_text]A Literatura deste mês conta com três textos da colunista convidada Caroline Signori, que faz a sua estreia na R.Nott Magazine de forma profunda e sensível.


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“Se fôssemos contar todas as desventuras de Vilma, gastaríamos páginas para descrever por inteira a Odisseia da pobreza, do abandono, do descaso”

[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Pouco importava a miséria, já acostumada àquela vida sem futuro, de passado sujo, de presente sórdido. Vida de maus tratos, estupros familiares, falta de comida, água encanada e educação. Vilma vivia como sempre viveu, tentando sobreviver. Dar o melhor de si para que? Não fazia ideia do que era o seu melhor ou mesmo o melhor dos outros. Desde criança viu apenas o pior: o pai viciado, o tio ladrão, o vô alcoólatra, a mãe negligente, o primo traficante e até o doce velhinho que sempre lhe dava chocolate e refrigerante a bolinava. Era célebre no bairro. Entre as imundícies, os entulhos e o barro das ruas sem calçamento era muito conhecida. Era princesa do esgoto e rainha das porcarias.

 

– Lá vai a Vilma Pé-de-Cana, gritavam os meninos que jogavam bola.

 

Sim, sem sombra de dúvidas era uma bêbada constante, a sobriedade nem em seu sono a alcançava, de gole em gole do conhaque mais vagabundo, desde a manhã até a noite, Vilma não via a vida se esvair em dias de necessidades esquecidas.

 

Em certo momento – ninguém nunca soube ao certo – enlouqueceu. Talvez tenha levado anos, talvez ao abrir os olhos pela manhã, simplesmente e repentinamente, deixou de ter juízo, é incerto o que de fato aconteceu. O testemunhado é que Vilma, a partir dali, doida e desafortunada, continuou a catar lixos pela cidade como sempre. Sem saber por onde andava, sem saber por que fazia, lotava o seu carrinho de lixos e bugigangas e ia como fosse um coche, enquanto nominava todos os cães sarnentos que a acompanhavam como fossem pajens. Não podia falar com Napoleão, posto não saber quem foi este senhor, jamais pisara em uma sala de aula. Não podia ser uma personagem famosa, pois não tinha a menor noção desse universo fantasioso da fama. Era, então, ela própria louca e falava com santas da igreja católica e oxuns do candomblé.  Falava com parentes mortos, com estátuas, com ninguém. Apenas praguejava ao léu. Xingava e muitas vezes ameaçava transeuntes.

 

Se fôssemos contar todas as desventuras de Vilma, gastaríamos páginas para descrever por inteira a Odisseia da pobreza, do abandono, do descaso – não sei se por parte do Estado ou de Deus – e da subsistência que quase lhe tirava o caráter humano. E nisso, de não desejar nada, era feliz, já que nada tinha. Se é que ao menos tinha consciência de nada ter.

 

O modesto raciocínio que lhe restava foi o suficiente para entender que a barriga que crescia estava diretamente ligada aos encontros furtivos atrás da casa com o vizinho. Entre o chiqueiro com porcos, galinhas soltas no quintal, gatos e cachorros ela abaixava as calças e dava porque era bom. Até o último dia de gestação Vilma andou pelos logradouros, barriguda, suja e abrindo as pernas até para os cães. Vilma ia com quem chamava, a troco de coisa nenhuma, ia porque sentia prazer, gozava e não sabia. Drogados, mendigos, meninos de 12 ou 13 anos perdiam a virgindade com Vilma. Sem camisinha, sem banho, no beco, no barranco, onde desse.

 

Pariu por ali mesmo e mudou-se para o outro lado da cerca com zero nas mãos. Não quis amamentar e, assim, Eliane desde bebê foi criada pelo pai. Ela até se esforçou para ter calma, para cuidar, não conseguiu, não era possível. Vilma não se via como mãe. Vilma não se via como gente. A pobre menina – que ainda criança foi diagnosticada com retardamento mental, passou a vida lá, em frente à televisão, dia após dia, ano após ano, programa após programa, intervalo após intervalo, sem contato com o mundo portão afora.

 

Já Vilma nunca abandonou as ruas, bebia, recolhia entulhos, tinha alucinações e passava dias fora de casa. Volta e meia era vista descendo rumo a sanga com Carlinhos, o ladrão de galinhas da rua – literalmente, era esta sua profissão.  Pescavam na água poluída e mal cheirosa. Mas que diferença fazia? Por ali tudo fedia, seus corpos, as cabanas sem esgoto encanado, o ar pestilento. E como o homem acostuma-se com tudo, até em permanecer sobre o fino fio que separa a humanidade e o animalesco, com o tempo ninguém sentia mais. Ela deitava-se com Carlinhos entre os muçuns pescados para a janta, sobre o lodo da sanga e o cheiro de podre.

 

No retorno as boas-vindas sempre se reproduziam, o marido sem falha lhe aplicava um corretivo com o que estivesse a frente. Em certa feita, bateu tanto com um pedaço de ferro que a mandou para o hospital. Ainda assim, uma semana depois lá estava Vilma novamente puxando sua carruagem de papelão, fumando um palheiro e falando bobagens. Vendia a lenha que achava no mato e limpava valetas por qualquer trocado.

 

Jesus não tinha dentes, nem profissão, dispunha era de umas vinte crianças sob seus “cuidados”. Ele as deixava estrategicamente em pontos movimentados da cidade para que pedissem esmola, praticassem pequenos furtos e ao final do dia lhe oferecessem todo o lucro. Esperava pacientemente em uma sombra – alcoolizado e anestesiado pelo crack – para desfrutar de seus meninos e meninas, costumava, até mesmo, escolher alguns e levar para o quarto à noite. Vilma dava também para Jesus. E para o Carlos, e para o Vanderlei, e para o Charles, e para o Nego, e para o branco, e para os Santos, e para os Silva, e para todos os sem nomes da vida.

 

– Chama o Valdo, que socaram o cu da Vilma.

 

E, em minutos, o bairro todo ecoava em vozes de crianças “Socaram o pau no cu da Vilma”.

 

Não sei quem primeiro encontrou o corpo, provavelmente, alguém que cruzava o campinho rumo ao trabalho logo cedo, a cena era grotesca como toda vida de Vilma. De calças arriadas, de quatro, com a cabeça equilibrando o corpo longe do chão, lá estava a louca, bêbada e miserável Vilma com um cabo de vassoura enfiado no rabo.

 

Quando cheguei ninguém ainda tivera coragem de removê-la da humilhante posição, o coro das crianças fazia eco no campinho e o cu da Vilma ficava marcado na mente de cada um que passava por ali.

 

Não chamaram a polícia e foi o próprio Valdo, marido sem papel assinado e promessas diante da Igreja, que recolheu o corpo de sua mulher. Perante as certezas de que o crime não seria desvendado e que nesse país a justiça não vale para os despossuídos. Levou o cadáver para casa, deu banho, velou e, dizem, enterrou o cabo junto com ela.

 


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Amusical

[/vc_column_text][vc_column_text]Possuo, como muitos, uma bela porção de medos montados sobre mim. Em um quarto escuro, na varanda, no jardim, sobretudo é o medo do fim. Caso morra, que roupa devo usar?  Vai ficar tudo lá espalhado, me pergunto quem irá arrumar? E têm meus livros, eu, a Frida, a vida. Vou perceber que morri enfim? Não tenho medo de abelhas. Não devem elas ter medo de mim.

 

O que assusta, o que me cerca é a morte certa incerta. É a morte num susto, num pulo, lenta e pestilenta, é a certeza de que ela vem me buscar. Não há nada que se salve, que não se dissolve, na passagem dos ventos, no contar dos tempos, no findar dos anos. E os planos? Os planos, você trate de correr. Somos pequeninos, eternos meninos nos milhares de anos. É necessário sair de casa preparada para nunca mais voltar?

 

Sentada em frente à singela janela, posso vê-la, as suas visitas a pessoas estranhas, tantas pessoas estranhas que, no entanto, eu no fim decerto vou encontrar. Um lugar invisível, ideia risível, porém nada mais sensato do que em algo esperar. Você sonha com belas carruagens? Pode ser que em sua última viagem uma delas venha especialmente tão somente te achar.

 

E como encarar essa carona, de um cocheiro mórbido, calar-se frente ao sonho findo, e caso se morra dormindo, é pior então, nada, nada espiar? Nada ver, nem mover, nem vestir, nem despir, separar ou unir. E não há nada que se coloque nos lábios, nem folha, nem bolha que vai te salvar. Você tem medo de mim? Por favor, não tenha medo de mim.

 

É nesse intervalo entre o nascer e morrer que devo construir meus anos? O que toca esse tambor que soa tão longe e nos chama? É como ir para cama. Morrer é descansar?  Entre milhões de planetas, asteroides e cometas, existe alguém que nos ama?

Largaram-nos aqui com um bauzinho de dons, um vestido de festa e um beijo na testa. Estamos todas perdidas, meninas… nada, nada irá nos salvar…

 


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Bala Mortal

[/vc_column_text][vc_column_text]Quando confia é porque perdeu o medo, aconselho nunca confiar.

 

Com que destreza penso, logo me engano, logo me excedo, logo saio pela culatra. Desmonto o nada e acerto em cheio, bem no meio. Com tal desenvoltura levo ao fim que mais pareço bailarina de metal.

 

Quase o sufoco, você quase grita, quase morre, mas não morre, quase vai embora, todavia não vai.

 

O que é certo, o que é errado, depressa virou confusão. Perdemo-nos com tanta intenção, com tanto gosto, com tanta vontade, com tanta gula e cobiça, com tanto desvelo.

 

Novamente? As horas, os prazos, os dias, outra vez? Do mesmo modo a terça antecederá a quarta e será depois do domingo? Com leves nuances de desencanto no lado, no canto, na boca, no umbigo, no peito?

 

Observo destemperos, presencio confusões, perco a delicadeza. Uma horda de vilões toma o reino ao passo que falo aos ouvidos:

 

– O que há? O que não há?

 

Implanto a dúvida, o pesadelo, a perdição. Possuo a passagem da ida sem volta, sou a desculpa da culpa, a língua na boca da cobra e do dragão.

 

É imprescindível que se cultive um jardim de margaridas, que se faça um chá de camomila, que se fume algo que inspira, que se faça rima. Rumo a morte sem dor, rumo ao segredo sem asco, ao prazer sem amor.

 

Quando acredita é porque esqueceu o terror, a mentira, o embuste. É prudente nunca acreditar.

 

O mágico ilude o público, nós ludibriamos no bar.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Caroline Signori
Caroline Signori é jornalista. Formada em Comunicação Social, já atuou em veículos de comunicação, como TV Educativa e, atualmente RICTV Record, além de possuir experiências em agências de publicidade e assessoria de imprensa. A paixão pela escrita culminou no blog “Siguilita no Espaço”, com textos em prosa e verso sobre sua vida e devaneios. Em meio ao rolo compressor da rotina, os textos literários são a válvula de escape para Caroline exercitar sua imaginação e deixar fluir o seu lado escritora.

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    1 Comment

    1. Carol, Sig, Siguilita, enfim, uma escritora nata com histórias que podem fazer você rir, chorar, mas sobretudo pensar sobre coisas que passam desapercebidas.

      Tive o prazer de ler em primeira mão a história de Vilma.

      A Carol é uma escritora direta e sem papas na língua. Não pode ser chamada de “a nova Charles Bukowski”, por que ela é Caroline Signori, incomparávelmente Caroline Signori.

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