InterrogatórioPor aí

Interrogando Gustavot Diaz

É com enorme prazer que entrevistamos o grande Gustavot Diaz, artista, desenhista e professor de desenho, residente hoje em Porto Alegre-RS. A R.Nott retorna aqui com uma de suas conversas mais frutíferas.


 

“A grande pergunta nunca é formulada; passamos a vida toda a procurá-la, a pergunta que nos define definitivamente.”


♦ Como, onde, quando e por quê?

 

Proponho outras perguntas: Como fazer? O quê fazer? Por que fazer? Essas questões são dialéticas, mas respondendo em separado o entendimento ganha.

 

Como fazer?

 

Esta condiz aos materiais expressivos da linguagem, à técnica. Que no meu caso, demorou mais que o devido; nasci no interior de SC (Lages, 1982) e nem mesmo a Universidade posteriormente me ofereceu os rudimentos para satisfazê-la. Não acredito em autodidatismo; mas assumo: fui meu próprio guia. Se minha iniciação na arte foi insuficiente porque unilateral (esse sendo a causa da demora) outro fato é que toda trajetória é coletiva: o mito do herói solitário, o self-made man não existe. Nossa vida é um resultado dialógico do entorno, uma síntese da sintonia entre nosso fazer e o resto. Se há um meio que privilegie tal coisa, tal coisa costuma se manifestar. Lages ficava num interior distante, mas meu aprendizado em desenho foi precário porque naquela época (80/90) essa linguagem estava em cotação reduzida no Brasil.

 

Comecei aos 9 um curso de desenho e pintura em minha cidade, desses que todo mundo faz, com a professora Vera Lucia Melin Borges. Foi importante por me ensinar os rudimentos: perspectiva, luz e sombra, teoria das cores, etc. Fiz o percurso da tradição – reproduções, natureza morta, paisagem, e após certo tempo, a professora me deixou completamente livre, resultando que aos 14/15 anos eu fazia basicamente abstrações em tinta acrílica baseando-me em desenhos digitais que criava no computador, pelos quais a professora trocava por desenhos realistas seus; o que me deixava honrado, mas frustrado porque nesse momento se evidenciou uma fase de estagnação: não tinha mais vontade sequer de ir ao curso, uma vez que tudo que eu fazia era aceito e, no entanto, eu sabia que havia chegado num limite. Literalmente esticava uma grande folha de papel, pintava alguns gestos coloridos e ia embora. Foi quando conheci o mestre Moacyr Vidal Ramos. Tudo mudou. O mestre Moacyr era um paisagista à moda antiga. Para o contexto do interior, servia como um “último dos clássicos”. Sem dúvida bom pintor, porém recluso, isolado do mundo da arte. Ali havia uma clara separação entre técnica e poética, teoria e prática. Foi bom. No final das contas, me apresentou o desenho como uma técnica, um âmbito da artesania até então desconhecido pra mim. Uma aula bastou para me fazer entender que eu não entendia nada de desenho. Mestre Moacyr não pôde me ensinar muito; fiquei lá pouco mais de 1 ano. No entanto, aprendi uma lição mais fundamental, a qual desembrulho cotidianamente: o desapego.

 

Eu saí do atelier porque fui estudar em Florianópolis aos 16, com vistas ao vestibular de Artes Visuais na UDESC. Esse é o horizonte máximo que eu podia ter em SC, e que representou um problema a mais. Dedicada à teoria pós-moderna, a Universidade se negava a socializar os rudimentos de um ofício: tive que aprender sozinho e ao mesmo tempo dar conta de outra agenda, a segunda pergunta – O que fazer?, na prática representava pela famigerada “poética”. Ou seja, ainda sem sequer saber como operar as ferramentas, o calouro já deveria saber também o que fazer com elas. Para mim, esta questão só pôde de fato aparecer quando a primeira pergunta estava suficientemente resolvida. É muito difícil articular ambas ao mesmo tempo.

 

O que fazer?

 

Na Universidade, enfim entrei em contato com essa pergunta. Ela já se insinuava, sem se mostrar elaborada efetivamente. Na universidade me dei conta de dimensão nova, desconhecida pra mim, cheia de vitalidade e que transformou profundamente meu modo de ser e pensar: a política. Isso me mostrou a necessidade de instituir um caminho “do fazer”, das artesanias; de defender algo que estaria presente em meu futuro, que eu sabia ligado às artesanias – ingressei como representante discente nos conselhos de professores onde fiquei até o final da minha formação. Nesses conselhos descobri a organização estudantil, e então a militância partidária. Foi aí que conheci um grande filósofo que colocou uma reticência em todos os meus pensamentos: Marx. Existe uma vida antes e uma depois de se ler a obra marxiana. Já aí se colocava essa pergunta de forma mais insistente: muito bem, o que fazer da técnica? Eu queria fazer arte, pensando em política; a situação política da UDESC era tão precária que tive que acabar fazendo política pensando em arte.

 

A questão “o que fazer?” demorou cerca de 20 anos para ser elaborada formalmente e respondida. Hoje tenho uma pasta com cerca de 100 esboços e ideias para pintar; se eu parar aqui agora e pensar, elaboro mais uma série. Ideias imagéticas aparecem para mim com uma facilidade enorme porque em algum momento aprendi a articular – aprendi o recurso de articulação entre teoria e prática, entre o que quero dizer, que hoje sei com mais clareza, e como dizê-lo – ou seja, de que forma operacionalizar em linguagem plástica o que desejo e necessito expressar. Mas nem sempre foi assim: na época da formação universitária eu não conseguia encontrar algo que mediasse minhas intenções e a prática. Eu sabia que queria falar de política, mas não encontrava a forma, a abordagem precisa, o como fazer. Demorei a entender que não era o como que eu devia procurar, era o quê. Eu estava me fazendo a pergunta certa, mas no momento errado…

 

Dada a incapacidade de aprender na Universidade, fui buscar por conta própria o estudo da figura humana que eu queria. Consegui de uma professora uma carta que me deu acesso ao Laboratório do Centro de Ciências Biológicas da UFSC, onde comecei a entender que tudo o que eu havia estudado de Anatomia humana nos livros não tinha o menor significado. Hoje sou professor de Anatomia Artística; mas foi um longo e solitário caminho. No passado, havia cadeiras de “Anatomia” nas graduações em Visuais; a EMBAP ainda possuía essa disciplina no currículo até pouco tempo. Naquele momento, eu ainda estava correndo atrás do tempo pedido, e mesmo depois de formado (quando então me mudei para Curitiba), um dos motivos da mudança foi aprender a técnica de modo mais sofisticado. Cheguei a cogitar fazer uma nova graduação. Achava que assim eu concluiria enfim minha formação técnica. No entanto, em menos de 2 meses, estava lecionando no Paraná. Percebi que Curitiba não me daria a formação que eu almejava; e tive que ensinar o pouco que sabia. Nesta nova capital passei 7 anos ministrando ininterruptamente oficinas de Anatomia Artística no Solar do Barão (Museu da Gravura Cidade de Curitiba). Ensinar é a melhor, senão a única maneira de aprender. Aqui também aconteceu de eu unir de vez dois pontos abertos no período anterior: arte e política. Em 2009 me filiei ao PSOL, onde criei o Núcleo de Arte, Cultura & Propaganda, que existe ainda como plataforma para artistas que se vinculem ao Partido. Com as atividades do Núcleo eu achava ter respondido enfim à pergunta “o que fazer?”. Minha técnica desenhística era razoável; eu tinha alguma segurança na teoria crítica do materialismo histórico dialético… Mas faltava alguma coisa, algo que aglutinasse tudo isso. Eu sentia que não havia chegado à mediação que queria. Algo não estava funcionando.

 

Foi então que, após esses anos de docência, cheguei a uma das conclusões mais importantes de meu aprendizado pessoal: eu precisava colocar em prática a lição que havia aprendido anos atrás com meu primeiro mestre e estimulado em meus alunos esses anos todos. Precisava por em prática o desapego, de uma vez por todas. Foi aí que decidi me mudar para Porto Alegre. Uma semana antes da viagem, destruí tudo o que havia produzido até então. Foram 4 horas rasgando cerca de 400 trabalhos – desenhos, pinturas, aquarelas, telas em óleo, e algumas peças de cerâmica.

 

Eu cheguei a Porto Alegre sem bagagem, sem nada que justificasse minha profissão. Eu era um artista sem portfólio. Foi só então que pude realmente encontrar a minha voz. Eu conhecia as palavras, mas não sabia articular as frases. Nosso dizer não carrega apenas nosso tom – carrega nossas idiossincrasias, nosso próprio léxico, nosso imaginário, nosso vocabulário de sonhos. Quando esquecemos o passado, estamos então aptos a criar uma nova estética.

 

Foi a psicanálise, enfim (a qual pude estudar morando em Porto Alegre) que me deu a chave para operar a articulação que faltava entre o que e o como, entre minhas intenções plásticas e filosóficas, éticas e estéticas. Ela foi o cimento que aglutinou o fazer, me possibilitando uma articulação que me satisfaz de momento. A dificuldade agora é efetivamente produzir, quer dizer, tirar da gaveta essa centena de ideias que tenho já esboçadas e transformá-las em desenhos finalizados, pinturas, instalações, enfim, dar materialidade ao esboço. O que no momento está colocado para mim é a terceira pergunta: Por que fazer?

 

♦ Quais são as suas influências?

 

Psicanálise, Sociologia, Antropologia, Literatura, Dramaturgia, Filosofia e Música Popular Brasileira.

 

 

 

♦ Qual foi o grande autor que você descobriu e qual foi o grande autor que você ainda não descobriu?

 

 

Jacques Lacan; e Jacques Lacan.

 

 

 

♦ Disse Mark Twain: “Sempre que tomo Orgulho e Preconceito ou Senso e Sensibilidade, sinto-me como um dono de bar que entra no Reino dos Céus… Jane Austen me faz detestar todo o seu povo, sem reservas”. Existe algum artista que você despreze?

 

 

Reservo meu desprezo a políticos e capitalistas.

 

♦ O que é, para você, uma eficiente obra de arte?

 

 

Gosto da definição de Gullar – “quando vejo algo que me revela uma face desconhecida de mim mesmo, sei que estou diante de uma obra de arte”. A eficácia está na medida em que a obra consegue efetuar o registro simbólico capaz de organizar a experiência no espectador; quando gera diálogo intersubjetivo com ele. Essa “marca” é o Desenho em sua definição etimológica mais precisa: desígnio quer dizer “marcar por fora”.

 

 

 

♦ Quando você sabe que terminou uma obra e ela está irretocável?

 

 

A obra irretocável é a do outro, que disse mais do que devia. Apenas minha última peça da vida será irretocável; por hora é “tentar, errar e errar melhor” no próximo desenho. Por hora é reescrever o livro em outro livro, continuar a obra em outra obra.

 

 

 

♦ Para Hegel “a arte é e ficará para nós, em relação ao seu mais alto destino, como coisa do passado”. Você concorda com a afirmação exposta?

 

 

Talvez um dia tenhamos que substituir na frase de Hegel a palavra “arte” pela palavra “ciência”. Mas a arte não morre, sem dúvida. Sua força de resistência está justamente na medida de sua permanente reinvenção. No entanto, uma arte que não dialoga, endógena, que é feita sob medida para o meio artístico entre brindes e piscadelas de críticos; uma categoria artística que não sabe digerir o luto e nega o passado entrando em conflito com a tradição (ao invés de encará-la de forma positiva); uma arte que se entroniza a um século no establishment: essa talvez esteja mesmo fadada ao desaparecimento…

 

♦ Diga para as pessoas porque a pintura e o desenho não são linguagens obsoletas?

 

 

O desenho jamais limitou a criatividade porque é um saber: nenhum saber limita a criatividade. A única limitação é o não-saber: não saber desenhar subtrai do ferramental artístico um recurso imprescindível ao “pensamento da forma”. O Desenho é uma atividade de profundo alcance intelectivo, cuja enunciação está em permanente disputa; é um articulador simbólico de experiências, um organizador do pensamento visual, um código extremamente complexo de interpretação da forma. Como é que isso pode estar “obsoleto”?

 

Por conta da incompreensão de muitos colegiados e tecnocratas pós-modernos, meu processo artístico, assim como o de muitos artistas e alunos foi retardado, quase abortado. Felizmente eu insisti, desenhando “apesar da academia”. Não me arrependo: hoje sobrevivo disso, e descobri que o que se faz pelo mundo é desenhar e pintar, cada vez mais e melhor (trata-se de um movimento global conhecido como “Realismo Contemporâneo”). É bem simples: você precisa saber desenhar, nem que seja para fazer um projeto com caneta BIC numa folha de sulfite para dar ao marceneiro entender a instalação que você quer encomendar.

 

O desenho é o saber composicional por trás das amarrações dos pesos visuais que garantem a qualidade de uma pintura abstrata. Ele é a chave do pensamento sobre a visualidade que nos cerca cotidianamente. Para mim, o maior argumento para ensinar os alunos de AV a desenhar na universidade é: não custa nada. Todos os cursos possuem uma cadeira de Desenho nos dois primeiros anos. Uma vez por semana, uma aula de desenho durante dois anos dedicada à técnica está mais do que suficiente. Nem tudo na arte é piração e teoria. Eu estudei desenho a vida inteira e nos últimos anos me dedico a elaboração epistemológica e psicanalítica desta atividade. Mas sei muito bem que o Desenho é, sobretudo uma técnica. Não custa à Universidade ensiná-la aos muitos alunos que desejam honestamente aprender a desenhar. Dou cursos de desenho que duram 3 meses para alunos que não sabem desenhar. Em 3 meses aqueles que se esforçam aprendem o caminho – depois, claro que precisarão continuar a treinar por muito mais tempo, porém esse caminho será então para eles muito, muito mais curto, e poderão então se dedicar (aí sim) às outras que são as mais fundamentais questões do fazer artístico (“o que” e “por que fazer arte?”).

 

Tenho contato quase diário com egressos e acadêmicos desejosos de aprender ofício, com calouros que se sentem incompreendidos, frustrados porque querem se expressar através do desenho e são punidos na Universidade através de repressões, perseguições, desestímulos, etc. A quem está de fora parece absurdo que se reprima estudantes de artes que querem aprender a desenhar – mas pergunte a qualquer um que desenha e ingressou numa faculdade de AV no Brasil. Mais absurdo ainda é que essa repressão se dá justamente porque, segundo o pensamento pós-moderno da grade: os alunos têm de ser livres. Isso é o que eu chamo de “ditadura da liberdade”. Presencio muito isso… e falo contra meus próprios interesses profissionais! Sou professor de desenho – quanto menos os acadêmicos aprenderem no curso, mais procuram minhas oficinas! Rsrs.

 

 

 

“Mais do que aplicar sombra e luz e perspectiva em um papel, o desenhista se sintoniza com a tradição na disposição permanente de investigação sobre o que mobiliza sua vontade”. Frase sua, por favor, comente:

 

 

Buscando uma voz própria, o artista recorre de forma quase inconsciente à tradição. Quando quero fazer algo, seja o que for, a primeira coisa que faço é pesquisar “como se fez” tal coisa; assim descubro “como se faz” tal coisa. Depois, então reajusto os procedimentos, altero, aproprio, desconstruo… Toda pesquisa séria em artes visuais é uma pesquisa sobre a visualidade; e é recorrendo à história do olhar que compreendemos os limites e possibilidades do regime de visualidade sob o qual atuamos. E quem nos informa melhor sobre essa história do que a tradição? Ela é em si mesma o vertebramento das relações entre o fazer e o olhar. Hoje é muito comum algo perfeitamente incomum: os estudantes de artes visuais não conhecerem História da Arte. Não por acaso, desconhecem a técnica também… Uma está imbricada na outra: a técnica nos dá a dimensão histórica por dentro (a partir de um lugar privilegiado). Evidentemente entende melhor o que Ticiano queria dizer com “veladuras” o estudante que conhece o método da pintura indireta, os processos do óleo, etc.

 

 

 

♦ Qual obra de arte você alteraria sem cerimônias?

 

 

As minhas, se um dia vier a realizá-las.

 

 

 

♦ Existe alguma pergunta que você gostaria de ter respondido, mas não foi feita?

 

 

A grande pergunta nunca é formulada; passamos a vida toda a procurá-la, a pergunta que nos define definitivamente. Não há necessidade de resposta: a grande questão irá nos definir, será a coordenada maior de nossa existência. E nos faz constantemente sair ao encontro do desejo: – Che vuoi? pergunta o diabo. (E não sabemos responder…)

 

 

 

___________

 

Veja mais em:

https://gustavotdiaz.com/

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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2 Comments

  1. Bela trajetória Mestre! Muito bom sabê-la através das perguntas essenciais. Muita vida pela frente para além da própria busca, nortear a busca dos alunos, obrigada pela generosidade, pela paciência e pela dedicação de transmitir.
    Abraço,
    Liana

    1. Quem faz o mestre são os discípulos, querida amiga…
      Agradeço a palavra!

      Saudades,
      G

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