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Autoimagem: uma espiada sobre o mundo narcisista dos egomaníacos

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Imagem: Allan McCollum – Mais de dez mil trabalhos individuais (1987 – 1991)

[/vc_column_text][vc_column_text]Marlon Anjos explora o vazio do discurso ególatra e “positivo”, que habita desde as nossas redes sociais até as mais importantes exposições de arte do país.


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“O dinheiro iguala tudo com tudo, e, assim sendo, a sociedade da transparência positiva é o abismo infernal do igual. Nesse sentido, o narcisista apenas reproduz uma maneira de ser. Continua autorretrato onde a opinião sem argumento é a moeda de troca.”

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“Isso vos digo: é preciso ter ainda um caos dentro de si para gerar uma estrela dançarina. Tendes ainda um caos dentro de vós.
Ah! Aproxima-se o tempo em que o homem será incapaz de dar à luz uma estrela bailarina. O que vem é a época do homem mais desprezível entre todos, que nem poderá mais desprezar a si mesmo.
Vede! Eu vos mostro o último homem”.
(Nietzsche, Assim falou Zaratustra)

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Segundo Byung-Chul Han, a sociedade atual é marcada por limites difusos; destaca-se por uma positividade ruidosa, que exclui antagonismo e a negatividade natural intrínseca das coisas. Uma sociedade que elege o positivo como valor se despede da dialética que repousa na negatividade. De tal modo, não admitir a negatividade constitui o modo de reorganizar o ser e a sociedade. As sensações são reorganizadas em fórmulas de consumo e conformidade. A sociedade positiva evita qualquer negatividade, pois paralisa a comunicação e a sua funcionalidade. Sua relação é medida pela velocidade e troca de informações, sendo que os veredictos negativos prejudicam a comunicabilidade e a especulação econômica, assim como as demais transações.

 

Em virtude da falta de negatividade, a proliferação e massificação do positivo se instaura nas aparências irreais. Distorcendo a vulva do real sem dele se afastar. A aparência irreal é a maneira de estar aqui atualmente, resistência do indivíduo à civilização. Assim, a automanutenção de si ganha espaço.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Somos instrumentos para a produção, para a guerra, instrumento para a construção da civilização e para si mesmo. Através de nossa própria colaboração, a necessidade da consciência tranquila se apresenta. Não deve ser realizado nada que pudesse ser feito em frente a todos. Basta observar os grupos sociais, a imagem positiva é democrática e espaçosa, não deixando espaço para a negatividade. No entanto, o sentido da palavra democracia passa a vagar: a democracia é o espaço onde podemos colocar a nossa vontade, igualmente ao outro, e não o espaço da obediência, muito menos o local de residência apenas do positivo.

 

Dito isso, basta apresentar que o sujeito atual não é mais o marginal. O encantamento que o ser outsider exercia há algumas décadas parece estar despatriado, o que eletriza a corrente da maioria é o ser autêntico e individual, o ser opinião toma corpo e corresponde ao sinônimo: narcisista egomaníaco.

 

Discursos difusos, que não se relacionam pela unidade, mas pelo antagonismo, que tem em comum conjecturar a indignação e dar luz a inúmeros tipos de narcisistas. O narcisista, por sua vez, engole a si mesmo em sua intimidade limitada, não há qualquer vazio ou distância que consiga distanciar o narcisista de si mesmo. O objeto do narcisista já não é mais o espelho, mas sim a câmera.

 

A sociedade individualista produz sucos e pressiona com a singularidade, a identidade é especulada por nichos do mercado, da política e de outros motores dirigentes. A falta de coerência interna nos grupos políticos abriu espaço para esses novos mercados do poder. Nada é transparente e a falta de coerência abre espaço para o domínio.

 

No inferno do eu, assimetria e exterioridade do outro encontra-se negligenciada. A planificação do eu corporifica a escassez de mistério, na qual se impõe uma sociedade pornográfica. Essa pornografização, para usar uma expressão de Byung-Chul, pode ser medida pela falta de mistério e profundidade existente na produção cultural. Um trabalho pornográfico se distingue de uma obra erótica, por exemplo, pela medida de mistério existente. Tal dinâmica pode ser observada na arte produzida e inserida cotidianamente e corriqueiramente em museus, galerias e, principalmente, em espaços urbanos. Podemos, também, pensar que a sociedade pornográfica é a sociedade do espetáculo, onde o espetáculo principal é a exposição do eu e de suas opiniões, não deixando espaço para a profundidade, para o mistério, mas apenas para a aparência de si. Cita-se também que essa sociedade pornográfica se apresenta nas rasas opiniões expressas, amiúde, sobra a cultura. Expor meramente os gostos e as preferências nada mais é do que a pornografia da argumentação. Ações pornográficas não se vinculam com proposta altruísta, alcançam apenas o horizonte de espelhos e câmeras.

 

As ações se tornam transparentes quando se tornam operacionais. Quando se subordinam ao processo passível de cálculo, de receita, de controle. Só a máquina é transparente, a espontaneidade tem a índole de acontecer, a vida em geral não admite nenhuma transparência. A transparência pode ser identificada nas obras de arte produzidas em série, na carreira administrada, e na alta exposição de si e de sua própria produção na tentativa de produzir estilo e autenticidade, e reduzir a variação. O medo de se parecer com o outro nos torna mais distantes de nós mesmos.

 

A exposição intensa não gera apenas a manutenção da mercadoria, mas uma promiscuidade econômica. A falta de profundidade das obras pode ainda ser vista, creio que por mais alguns meses ainda, em contratos obscuros entre galerias e museus, na qual a finalidade foi apenas esquentar o preço das obras, distante de qualquer proposta altruísta ou mesmo artística.  A relação entre arte e mercado nunca foi tão promíscua como agora se apresenta. Vale lembrar que isso não é puramente prejudicial, mas quando artistas optam em produzir algo funcional e decorativo em vez de alimentar a obra com discurso e proposta, temos um problema, temos um vazio.

 

Tudo isso serve para formalizar a singularidade expondo a unicidade na individualidade, e por fim o seu valor: o preço. O dinheiro iguala tudo com tudo, e, assim sendo, a sociedade da transparência positiva é o abismo infernal do igual. Nesse sentido, o narcisista apenas reproduz uma maneira de ser. Continua autorretrato onde a opinião sem argumento é a moeda de troca.

 

A autoimagem e as imagens se tornam transparentes, pois operam desprovidas de dramaturgia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, assim tornam-se pornográficas, oferecendo apenas o contato direto do olho com a imagem, ou seja, apenas nos oferece autorreferências, uma agradável maneira de durar. Um contínuo self dentro de um museu de espelhos.

 

Vale lembrar, pornográfico, como entendemos aqui, iluminado pelo conceito de Byung-Chul, não é a exposição do corpo, mas a exposição sem profundidade. É a desoxigenação das humanidades, pois opera na tentativa de monitorar autoritariamente a diversidade e o devir embasado em seus próprios juízos. É alimentar a vigência de fronteiras com costumes de condenações e de fuzilamentos.

 

Na produção artística apresenta-se da seguinte forma, para citar alguns exemplos: coisas que funcionam apenas para o olhar ou para embelezar, a série infinita que o artista produz sem respeitar o tempo de repouso e a variação que poderia ocorrer em seu trabalho, tendo a si mesmo como referência, a conversão da forma potente para uma forma simples, a necessidade de inserir mais um igual e também igualar a tudo.

 

O ser que não admite a negatividade do oco, da lacuna e da diferença é um ser transparente. Nada além de si mesmo é visível em seus atos. Ter como argumento a positividade ou apenas a negatividade é apenas uma forma de impedir que as coisas se toquem, separando aquilo que está misturado. Sem a negatividade não há distinção.

 

 

Esse texto foi escrito sob o signo fáustico. Descansei meu olhar sobre a relação entre produtores culturais e público exposta no ano de 2017. Sinto por ter sido niilista, espero escrever novamente em tons mais esperançosos sobre a produção a e recepção de obras de arte no Brasil. [/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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