“Desse contexto, pois, surgem inúmeras ramificações, imbricações, sub-gêneros, etc. São os Tintorettos do punk.”
Post-punk: uma janela encaixada entre dois momentos distintos do rock, cuja definição é impossível de ser dada.
Há alguns meses, nessa mesma coluna Ruído, nosso caro Júnior Baracat discorreu sobre a taxonomia teleológica da crítica de rock (leia aqui), que tendia a localizar as diferentes ramificações do rock fazendo sempre referência ao punk como tronco central de onde tudo deriva – quando posterior – ou para onde tudo converge – quando anterior.
Continuo, na medida do possível, a discutir o assunto, centralizando-me na primeira fase desse chamado post-punk entre 1977 e 1979.
O post-punk, que coloco como janela entre duas fases muito mais reconhecíveis, é um dos momentos mais prolíficos criativamente na história do Rock, estando entre a reação imediata ao Punk “original” – simbolizado acima de tudo pelos Sex Pistols e a simplicidade agressiva – e o som pop e vendável que se concretiza já em inícios da década de 1980. Entre essas duas fases em que os ‘grandes estilos’ dominam criativa e mercadologicamente a produção das bandas de rock, o post-punk surge como uma onda de reações dos mais diversos estilos contra o esgotamento sonoro e ideológico do punk. Assim, o que define o post-punk num primeiro momento é a ausência completa de identidade.
Mas outro elemento central é o avanço vanguardista desse novo momento, dando o refinamento estético e temático que o punk de até então ignorava conscientemente. Resultado: o punk cru começou a cozinhar. Movimentos como o DIY e a sonoridade de bandas anteriores, como a dos Pistols, haviam sido absorvidos, parodiados, comercializados. A nova subversão, revoltosa, começou a acontecer por meio de uma nova ruptura, desenvolvendo e refinando o que até então era o lugar comum do barulho. Esse refinamento musical surge principalmente em termos de intelectualização, por meio da incorporação de elementos da literatura modernista e outras tantas vertentes da arte de performance, e também da inserção de elementos do funk e pop, sons eletrônicos, sintetizadores, andamentos até então originais no punk, alguma quebra com a iconografia padrão do estilo. Bandas como Wire vão do experimentalismo com o punk cru em Pink Flag (1977) ao altamente cultuado e original Chairs Missing (1978, da magistral I am the Fly) em apenas um ano, e sem nunca emplacar um hit – eles, por exemplo, alcançaram um 51º. lugar nas paradas, em sua melhor classificação, com a balada Outdoor Miner.
Já os Stranglers, cujo No More Heroes (1977) evoca Leon Trotsky e Shakespeare, compõem a maravilhosa faixa Curfew para o disco Black & White (1978), com andamento em 7/4, progressivo e completamente diferente do sistema clássico rock e punk 4/4 (e existe algo aí, para mim, que antecipa Ain’t talkin’ bout love, do Van Halen, do mesmo ano). E como comparar, dentro de um mesmo ‘estilo’, nessa fase de transição, o Germfree adolescents (1978) do X-Ray Spex com A tonic for the troops (1978, de Like Clockwork e Rat Trap) dos Boomtown Rats; Days in Europa (1979, de Charade e Working for the yankee dollar) do The Skids com Blondie (1976).
Isto posto, tudo vale. É notável ver como uma temporária ausência de ‘norte’ criativo, mesclada com a decadência do ‘grande estilo’, foi o suficiente para uma explosão criativa e original, se onde se ramificaram dezenas de estilos que foram se espalhando cada vez mais ao longo da década seguinte – pensamos num paralelo com o ‘Maneirismo’, fase conhecida como a ‘crise’ do Renascimento, que inventou artistas únicos como El Greco e Tintoretto.
Desse contexto, pois, surgem inúmeras ramificações, imbricações, sub-gêneros, etc. São os Tintorettos do punk. New-wave, synth-pop, noise rock, industrial, indie e alternative são algumas delas. Bandas como Siouxsie and the Banshees e The Cure geram o Gothic Rock, tendendo para temáticas mais obscuras no decorrer dos anos 1980. Ambas, e também outras como Joy Division e Talking Heads, que formataram seus estilos dentro de um padrão de apelo muito mais comercial, alcançaram enorme popularidade e se mantêm cultuadas em alguns círculos até hoje, ainda frequentando a grande mídia ocasionalmente. Outras, como a fabulosa Spizzenergi, além de Magazine e The Undertones, caem num quase anonimato. Das bandas geradas dentro do post-punk, certamente U2 é a que mais fez fortuna (e que seria deles sem The Skids?).
Obviamente, com a entrada na década de 1980 e a imposição de novas tendências mercadológicas, a fluência criativa do post-punk começa a desaparecer. Várias dessas bandas não resistem e se separam por volta de 82 (várias retornam após um hiato, como é o caso de Blondie, se readaptando ao mercado). Outras, como Wire e The Stranglers, seguem o rumo paralelo do rock underground/alternativo, se mantendo em atividade até hoje, com lançamentos ainda elogiados pela crítica especializada. Os movimentos das ondas do tempo causam ao post-punk o que causaram ao punk e a todas as vanguardas: esgotamento, autoironia, autofagia. Algo há que deixa de ser ‘sincero’ com relação às fundações desse movimento pouco definido, e a criatividade dá lugar ao rótulo da venda.
E algo há, para mim, de triste e inevitável na história desse movimento que está inserido numa das décadas mais libertárias da música popular. O post-punk continua a ser uma fonte inesgotável de influências e de novidades, coisa que poucas bandas atuais alcançam. É produtivo traçar este paralelo entre eles e nós: neste momento de fins de 2016, não temos um Norte. Mesmo estando espremidos entre o rolo compressor do mercado mainstream (citem-se os Big Macs do mundo da música: de Gaga a Beyoncé, de Mumford & Sons a One Direction) e um rock alternativo sem muita identidade, que se debate com alguma dificuldade num mar de influências de gerações passadas, mesmo assim podemos concluir que os caminhos seguem abertos, sem tabus.
Fecho o texto jogando essa ideia no ar, de que a novidade ainda está lá atrás, ao mesmo tempo em que não há possibilidade de retorno.
“Agora não há tabus; tudo é permitido. (…) Precisamos achar um jeito que não seja nem de voltar atrás, nem de continuar a vanguarda. Eu estou numa prisão: uma parede é a vanguarda, a outra é o passado, e eu quero escapar.”
György Ligeti, 1993
The Stranglers – Enough time (Black & White, 1978)