Ruído

Um afeto chamado ruído – Parte II

Imagem: imagem retirada de https://www.npr.org/

 

Juliana Bastos continua a discussão sobre Ruído iniciada no último mês. A atividade de “ouvir” certamente não será mais a mesma depois dessa incrível provocação!


 

“Quantos de vocês ouviram a sua própria caneta escrevendo ou a sua própria respiração?”

 

– Vocês têm 5 minutos para anotar todo e qualquer som que ouvirem.

 

5 minutos depois, as listas continham coisas do tipo:

 

– Eu ouvi o Bruno mexendo a cadeira.

 

– Eu ouvi passarinhos e a Lu arrastando o pé.

 

Adicionado: – Eu ouvi o tráfego e o Jonas cochichar consigo mesmo enquanto escrevia.

 

A pergunta seguinte do professor foi tão estarrecedora quanto singela:

 

– Quantos de vocês ouviram a sua própria caneta escrevendo ou a sua própria respiração?

 

Essa situação, inspirada na obra do compositor canadense Raymond Murray Schafer[1] nos convida a entender porque o ruído tem inserção tácita em nossas vidas.

 

Ruído é resíduo. Ruído é resíduo?

 

Um resíduo se constitui como sobra de algo que já foi utilizado. Se ele não integrar nenhuma iniciativa de recycling, se tornará um empecilho que desejaremos jogar “fora”.

 

Nesse nosso planetinha redondo, onde fica o fora? Tudo o que um dia criamos, utilizamos, comemos, excretamos e descartamos continua dentro da atmosfera terrestre, e mesmo se reciclássemos 100% das coisas que já nos foram úteis, ainda assim muita gente se perguntaria o que fazer com o resíduo sonoro.

 

Muito já andamos no entendimento sobre o problema que é uma contaminação de lençol freático, a extinção de espécies de plantas e animais e o destino de lixo eletrônico, por exemplo. E, embora ainda haja muitos problemas com isso, já estamos habituados a falar sobre, gerando listas de soluções possíveis, propagadas por diversos órgãos ambientais mundo afora (as quais não são realizadas por uma série de questões políticas, sociais e culturais que não nos cabe discutir aqui). No entanto, engatinhamos na argumentação sobre o descarte do som, e aí voltamos à cena das pessoas listando “todos” os sons que estavam ouvindo.

 

Existem muitas especificidades envolvidas: o som não é palpável, mas exerce grande influência em nós. O som cessa e desaparece do ambiente, mas permanece vivo em nossa mente. O som é aspecto sonoro ambiental que influencia todas as espécies viventes na Terra, mas vira motivo de chacota entre vizinhos porque parece frescura de gente que não tem do que reclamar. De onde sairemos para a resolução, se ignoramos o ponto de partida? Primeiro foi o verbo? Mesmo?! Se esse verbo foi falado, então, primeiro foi o som!

 

Vamos ampliar as indagações da Parte I: Ruído é realmente um problema ou nem ligamos pra ele? Será que sabemos nos importar com ele? Num mundo onde ser binário é perigosíssimo, neste caso, relativizar muito é igualmente inadequado. E a resposta é um sonoro NÃO. Nós não sabemos lidar com o entorno sonoro porque nunca aprendemos a nos ouvir. Assim, passamos nossa existência fazendo julgamentos de valor sobre os sons externos a nós e entramos naquela famosa fila onde carregamos nossas virtudes no peito e nossos defeitos nas costas, julgando quem está caminhando à nossa frente, sem se dar conta de que estão fazendo o mesmo conosco.

 

Fonte: Google Imagens, 2018.

 

Isto se traduz no vizinho que acha que o uso da propriedade física – o terreno “dele” – dá a ele o direito do uso da propriedade sonora, de fronteiras infinitamente mais abrangentes e delicadas. Entender propriedade e direito a partir de um binarismo visual é um dos principais motivos pelos quais os sons são hoje um grande abacaxi que quase ninguém sabe descascar.

 

Trazendo a discussão pra área da Música, a coisa torna-se ainda mais complexa, porque mais simbólica. O repertório que gosto de ouvir não é só um amontoado de sons. Antes, simboliza para mim elementos de prazer, diversão, bem-estar e pertencimento. Sou parte de uma família/sociedade/tribo, e a música é uma cola que mantém muitas de nossas manifestações culturais unidas, fazendo sentido. Percebem aqui a ineficácia dos livros da área quando rotulam ruído simplesmente como “som desagradável” ou “ondas sonoras irregulares”?

 

Raso demais para nosso afeto com o som e com a música. Pouco demais para nos munir de entendimento sonoro racional. Limitante para a compreensão em 99,9% das vezes.

 

Acústica é a ciência interessada no estudo dos sons e tem como unidade-modelo o ato biológico de escutar. Música é a arte de combinar sons e silêncios, manifestação cultural e humana, e área de conhecimento científico consolidada, mas deveria ser a ciência preocupada TAMBÉM com o ato afetivo de ouvir. Na desconexão entre as áreas do conhecimento que poderiam nos dar um alento, fortificando nosso entendimento sobre o aspecto sonoro como um todo, seguimos notando muito o som do outro, quase nada o som da gente, e surdos socialmente diante de uma sociedade que ruge diante de nós, implorando por encaminhamentos e soluções.

 

O som segue sendo amoral. A roupagem de calamidade ou de potência somos nós que damos. E aí? Quantos sons você fez desde que começou a ler esse texto? 😉

 

 


[1] SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991, p. 72.

Juliana Bastos
Etnomusicóloga e professora de Música da UFPB. Interessada no som que existe além da música, concentra seu olhar em pesquisas sobre música popular urbana, cultura quilombola, paisagem sonora e ética sonora. Curiosa sobre a potência que existe além do ruído, é aprendiz da audição holística e da produção de sons eficiente.

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