Visuais

É intrusivo recordar

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“É intrusivo recordar a maneira estranha com que os estudiosos e artistas se enganaram na concepção dos monumentos antigos quando só podiam escorar-se em fontes literárias, sendo a inspeção direta a única defesa.”

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column width=”1/2″][vc_single_image image=”3778″ img_size=”medium” alignment=”center”][/vc_column][vc_column width=”1/2″][vc_column_text]

“13 de dezembro de 1565: No dia seguinte acordamos cedo e vários dentre nós procuramos o lugar onde se erguem as grandes Pyramides. Chegamos perto delas, demos primeiro com uma grande cabeça, talhada na pedra, elevando-se bem alto, como se vê nesta figura… Essa estátua é inteiramente oca, de modo que se pode chegar a ela por baixo da terra, de muito longe, por uma passagem estreita, revestida de pedra. Por meio da passagem os sacerdotes pagãos entravam na citada cabeça e falavam ao povo do seu interior, e assim convenciam a pobre gente de que era a cabeça, ou a estátua, que falava com sua própria língua…”

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_empty_space][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Nesta antiga descrição sobre a Esfinge (texto e xilogravura), retirada do diário de viajante do alemão Johannes Helffrich, publicado em 1579, itinerário de importância porque ajudou a despertar interesse nos europeus em antiguidades egípcias, podemos perceber que o mito grego se mistura à pedra calcária localizada no planalto de Gizé, de maneira mais enrolada que a Carícia (1885) do simbolista belga Fernand Khnopff (1821-1921).

 

A esfinge grega era feminina, uma única esfinge, exclusiva de mal presságio, e descendia de uma das famílias mais temidas da mitologia grega. Segundo Hesíodo, era filha da figura de aparência híbrida Quimera, e do cão bicéfalo Ortros, ou, de acordo com Pseudo-Apolodoro, era filha da Serpente Equidna e do Titã Tifão, irmã de Cérbero, o sabujo tricéfalo que guardava Hades; vinda de uma família de estirpe singular, era irmã do leão de Nemeia, do dragão Ládon e da Hidra de muitas cabeças. Algum dos deuses, Hera ou Ares, havia mandado a esfinge de Etiópia para Tebas, o que demonstra sua natureza estrangeira em relação aos gregos, e foi ela quem propôs o famoso enigma a Édipo – como se vê em Édipo Rei de Sófocles – que, ao responder corretamente, tornou-se soberano de Tebas. Ela era um alerta a respeito do misterioso e do estrangeiro.

 

A mais famosa esfinge egípcia, a de Gizé, é masculina: Tem corpo de leão e cabeça de homem. Esta esfinge nunca propôs enigmas nem proferiu oráculos, e não incomodava os cidadãos de Tebas, como acreditava Helffrich. Apesar disso, continua a ser um dos mais misteriosos monumentos egípcios. Vale lembrar que a palavra Esfinge, com efeito, representa mistério, embora figuras esfíngicas, de ambos os sexos, sejam comuns no oriente e no ocidente.

 

É intrusivo recordar a maneira estranha com que os estudiosos e artistas se enganaram na concepção dos monumentos antigos quando só podiam escorar-se em fontes literárias, sendo a inspeção direta a única defesa. O predomínio da filologia no estudo da antiguidade resulta de uma longa tradição de crítica textual e dos primórdios geralmente tardios da escavação, conduzindo com frequência a equívocos e confusões que passam despercebidas por décadas ou séculos.

 

Contudo, se o exemplo citado for lido apenas como uma anedota, e acreditarmos que a confusa compreensão de Helffrich parte apenas de uma frágil observação que poderia ser sanada se fosse ancorada por instrumentalização comparativa adequada, que dispomos na atualidade, em certa medida cairíamos no mesmo equívoco que nossos antepassados. Não estaríamos compreendendo a profundidade da questão, onde o trânsito de informações é contínuo e repetitivo, tal como na tese constantemente atribuída a Ernest Gombrich de que a percepção possui história, amiúde, carregando ou negando as suas falhas em detrimento de seus acertos, o que por vezes não constitui firmamento, porque o sistema perceptual de algumas épocas pode ser impenetrável à cognição, formando brechas e possibilitando a repetição dos mesmos erros em épocas futuras. Assim sendo, poderíamos compreender que a ciência não obtém a hipótese por indução a partir de observações, mas por indução criativa, onde é criado o objeto de observação num trânsito entre ideia e conceito que se tenha sobre a coisa que recai o peso do nosso olhar. Desta forma, aprendemos a ver novas coisas, sem que de modo algum isso acarrete que ver é algo sujeito a mudanças, pois ver é muito mais digerir do que acreditar, e isso é ajustado, passo a passo, até que se encontre uma correspondência mais satisfatória.

 

O objeto de nossa visão também se movimenta no tempo. Não sabemos ainda qual o poder e a influência do tempo em ofuscar obras antigas, nem o limite de sua ação, nem a claridade de sua luz… O devorador de pedras tem sido implacável em nos trazer mais confusões e dúvidas – seja na revelação do antigo ou na falsa compreensão que tivemos sobre eventos passados –, de modo tal que contribua para enriquecer o universo das questões em torno de um tema, mostrando que mesmo as obras antigas, demasiadamente pesquisadas, estão sujeitas a novas perspectivas. Dessa infinitude, a verdade, maleável pelo tempo em se tratando de obras antigas, é o equivalente a crer.

 

Se a esfinge, após Édipo resolver seu enigma, precipitou-se no precipício, eliminando a sua existência, o enigma proferido por ela ainda encontra eco. Para somar pontos ao conto e corporificar algumas dúvidas, tomemos como exemplo a seguinte questão: consideremos que a história da arte grega possa ser seccionada entre épocas e atributos distintos, grosso modo, método de agregar itens em familiares que dispõem de atributos similares: arcaico (800-500 a.C.), clássico (500-338 a.C.) e helenístico (323-146). Como cada um dos períodos citados contém suas singularidades definidas ao longo dos séculos, o que aconteceria se os exemplos que consideramos relevantes de uma etapa pertencessem a outro seguimento? Seria apenas um episódio refutado, uma questão módica, ou uma oportunidade para refletirmos sobre eventos históricos? Essa questão pode ser exatamente o conflito que recai sobre a notória estátua mutilada: Vênus de Milo.

 

Descoberta em 1820, na ilha de Milo, território então parte do Império Otomano, a obra está envolta em versões contraditórias que se propõem a tratar de sua origem, estilo e iconografia, e a sua posterior aquisição pelo governo Francês. A história de sua descoberta é obscura e circulam muitas versões sobre o assunto, tanto que Aliki Samara Kauffmann disse que gastou-se mais tinta tentando elucidar as controvérsias que envolvem a obra do que se derramou sangue por Helena de Troia.

 

Oficialmente, a escultura foi desenterrada em 8 de abril de 1820 pelo camponês Yorgos Kentrotas, perto da cidade antiga da ilha de Milo, no mar Egeu. O camponês estava procurando pedras para construção, por acaso, junto a Olivier Voutier, um apaixonado pela arqueologia. Encontraram a estátua em dois pedaços, e junto a ela várias bases fragmentadas. Voutier colocou-a sob a base do segundo pilar hermaico, mas numa gravura produzida por um dos irmãos Debay, encarregado de fazer uma cópia para ser enviada ao pintor Jacques-Louis David (1748-1825), então exilado em Bruxelas. Louis Brest, vice-cônsul da França em Milo, alertado sobre o achado e encantado, fez com que as escavações prosseguissem, surgindo mais fragmentos, entre eles uma mão segurando uma maçã, três blocos com inscrições e dois pilares de hermas.

 

Logo após a aquisição da obra pela França, ela foi exposta no Louvre e datada como sendo uma obra-prima do período clássico, atribuída então ao círculo de Praxíteles.

 

Louis Nicolas Philippe Auguste de Forbin (1779-1841), curador do Museu do Louvre na época, refutou a ideia de que o bloco com a inscrição fosse pertencente à estátua, alegando que o bloco era um acréscimo tardio e não fazia parte do conjunto original. Assim, o bloco não foi reintegrado.

 

Segundo o arqueólogo urbano Daniel Schávelzon, em Arte y Falsificación en América Latina, em 1820 a estátua continha uma inscrição com o nome de seu autor, que possivelmente foi borrada. Se o fato for verdadeiro, a inscrição referia-se a uma obra do período helenístico, e não clássico. A escultura trazia a seguinte epígrafe: (Agés)andros, fils de Ménidès, d’Antioche du Méandre a fait la statue (inscrição entre 150 e 50 a.C.).

 

O ato de borrar a inscrição pode ter sido uma tentativa em associar a escultura ao círculo de Praxíteles (390-330 a.C.) e Fídias (480-430 a.C.) pois, no século XIX, Agésandros de Antioquia era um escultor quase anônimo. Além disso, as obras do período clássico eram mais prestigiadas do que as obras do período helenístico, que foi visto como uma escola decadente na tradição artística grega em detrimento ao período clássico, fato que pode ter influenciado a intrusão na obra.

 

O fato da inscrição ter sido borrada não pode ser dissociado de eventos políticos. Sabe-se que a França foi obrigada a devolver obras saqueadas por Napoleão Bonaparte (1769-1821) após a guerra: Apolo Belvedere, Vênus de Médici e o grupo de Laocoonte formam conjuntos de algumas obras que não mais participariam do acervo francês. A ausência dessas obras no acervo resultaria em desprestígio à coleção, e assim foi necessário reafirmar o valor artístico do empório para compensar a devolução e atender a competitividade, já que o British Museum teria recém-adquirido os mármores de Elgin, baixo-relevo datado de 438 a.C., entre outras obras do período clássico.

 

Dessa forma, esse episódio corporifica uma disputa entre os museus, Louvre e British Museum. A competitividade entres os museus corrobora a afirmação de que a inscrição da estátua foi adulterada, com o propósito de apresentar a escultura como se fosse do século IV a.C., pois o ganho com essa requalificação manteria os museus concorrentes em situações equivalentes.

 

Além da inscrição borrada, Scheválezon afirma que o próprio Museu do Louvre modificou a escultura para que parecesse diferente do original: amputou os braços da escultura e uma das mãos ainda se encontra em algum local do museu, assim como a metade da base que desapareceu. Cumpre destacar que a própria incompletude da estátua abriga conjecturas a respeito do engajamento da obra. O fato das mãos e os braços da escultura terem sidos amputados reitera a tentativa de aproximar a escultura ao círculo das obras do século IV a.C. em vista de uma nítida aproximação iconográfica, na expectativa de não associá-la à classe das Vênus Vitoriosas. Apesar das conjecturas, o debate sobre a datação e as possíveis alterações realizadas na obra permanecem em disputa, não sendo ponto pacífico entre os especialistas.

 

John Dunmore (1923), em From Venus to Antarctica, nos apresenta um misterioso episódio ao transcrever as impressões e relatos do explorador francês Jules Sébastien César Dumont d’Urville (1790-1842) ao se deparar com a estátua:[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column width=”1/4″][/vc_column][vc_column width=”3/4″][vc_column_text]

“A estátua estava em dois pedaços, firmemente mantidos juntos por grampos de ferro. O camponês grego, temeroso de perder o fruto de seu trabalho, havia escondido a parte superior em um estábulo, junto com duas estátuas de Hermes. A outra metade ainda estava em seu nicho. Medi as duas partes separadamente; a estátua mede aproximadamente seis pés de altura; é a representação de uma mulher nua, segurando uma maçã em sua mão esquerda elevada, enquanto que a mão direita segura suas vestes cuidadosamente drapejadas, que caem das ancas até os pés; ambos os braços estavam danificados e, na verdade, estavam destacados do corpo. O único pé visível está descalço; as orelhas estão perfuradas e devem ter sido adornadas com brincos. Todas essas características sugerem que a imagem seja de Vênus no julgamento de Páris; mas, neste caso, onde estarão Juno, Minerva e o belo pastor?”. (DUNMORE, 2010, p. 24-26)

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_empty_space][vc_column_text]Atualmente, é reconhecido que a obra tenha sido produzida no período helenístico, aproximadamente no século II a.C., mas junto a essa afirmação pode ser lido: datação desconhecida e autor desconhecido. Cumpre informar que nenhuma informação sobre a iconografia é evidente, alguns notórios historiadores da arte alegam que seria uma Vênus tocando Harpa, ou lançando os braços (não literalmente) a Eros. Vale lembrar que nem ao menos mencionam a possibilidade de ser uma Vênus Vitoriosa do julgamento de Páris. O que nos faz concluir que o pomo da discórdia ainda não foi entregue à vencedora, e a disputa sobre atribuição e a idoneidade encontram-se em aberto. Nesta senda o passado encontra-se numa perspectiva futura, de tal modo que a esfinge Helffrich se corporifica em histórias obscuras.

 

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Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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