Visuais

Prometeu e Epimeteu

Marlon Anjos, nosso colunista convidado nesse mês, reflete sobre as figuras do artista e do ilustrador. Opostas? Complementares? Você já pensou nas diferenças entre os universos de cada um? Pensemos juntos.

 

“O ilustrador recebe o mundo, o artista codifica. O ilustrador trabalha com ordem, o artista com a transgressão.”

 

         Pensar a figura do artista em contraposição à do ilustrado exige algumas digressões. Se há necessidade ou probidade em tal divisão, ainda não se sabe. No entanto, sem a intenção de propor uma revisão histórica, o presente texto pretende esboçar as diferenças, reais ou imaginárias, de ambas personas.

 

         Inicialmente, faz-se necessário instrumentalizar a questão como se ambas personas fossem papéis sociais a serem exercidos. Ambos, de alguma maneira, estão relacionados ao espaço que circundam, influenciando a compreensão que se tenha sobre suas identidades e produções, ou seja, figuras profundamente afetadas pelo entorno.

 

         A função e os papéis sociais são entendidos, nesse texto, como um conjunto que define as normas, as condutas, condicionando comportamentos de indivíduos, e como fatores que influenciam, diretamente ou indiretamente, na prática/teórica criativa. Tais características podem ser herdadas ou conquistadas, surgindo na interação social, amiúde a identidade é o resultado de um processo relacional, parte de uma complexa convenção entre as partes envolvidas.

 

         Pode-se dizer que funções e papéis sociais são representações convencionadas no seio social que, de alguma forma, contém significados e sentidos, mesmo que mutáveis, das nossas experiências. Shakespeare sabia disso:

 

O mundo inteiro é um palco
E todos os homens e mulheres não passam de meros atores
Eles entram e saem de cena
E cada um no seu tempo representa diversos papéis.[1]

 

         Mesmo que as representações sejam móveis e possam ser questionadas, corporificamos nossas identidades por meio das representações. De um certo ponto de vista, os limites da representação, assim como os da projeção, são os limites do conhecimento. Seja como atuação comportamental, como produção, ou mesmo como função.

 

         Contudo, tal sistema debruça seu peso sobre cada ato e em cada compreensão que se tenha sobre cada identidade social, compreendida como processo cultural, meio por onde estabelece identidades individuais, coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia, delatando possíveis respostas as questões de definição e de identidade social.

 

“A representação inclui as práticas de significado e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar” […] ( WOODWARD, 2005, 17)

 

         Afirmar que somos seres que representam, constantemente produzindo significados, dando sentido à nossa experiência, significa que as histórias individuais e a historicidade coletiva são as histórias de nossas representações, e, também, são os registros dessas representações, expressas em cada biografia, em cada obra, em cada atividade, em cada escolha. Assim, a organização do todo é um longo percurso de como as representações se fazem, ou fizeram-se, presentes. Neste sentido a história é, numa perspectiva hegeliana, o registro destas representações e, também, das formas como elas se relacionam para constituir a imagem do mundo e de seus protagonistas. Uma imagem têxtil. O mundo, a história e as representações estão inter-relacionadas. Um sistema de representação propõe imagens que se alteram com o tempo. Tais imagens são absorvidas e assimiladas individualmente e coletivamente, dando forma às identidades. Grosso modo, somos seres sociais que representam e se veem representados na sociedade.

 

         Assim, nossa própria condição se materializa, e podemos dizer que esses incidentes constituem-se vivos em nossa sociedade. Mas, aceitando essas convenções, quais as diferenças entre o artista e o ilustrador? O que difere os papéis, suas funções, seus objetivos e desdobramentos no espaço?

 

         O artista muda o mundo para que se encaixe em nossas representações, o ilustrador muda nossas representações para que elas se encaixem no mundo. O artista percebe-se como existindo num mundo, onde a ausência do ideal deveria expressar a ausência da arte e para isso cria. O ilustrador recebe como ideal o material artístico e por isso reproduz/interpreta/traduz. O artista não repete.

 

         Tomemos como exemplo a imagem alegórica aludida por Arthur Danto (1924 – 2013), que demonstra as potencialidades intrínsecas das obras do artista, numa capacidade natural da arte em reagir a ataques nocivos, evidenciando uma certa blindagem ao entorno, obrigando que o mundo se encaixe em suas representações.

 

“Uma crença muito difundida a respeito das obras de arte como classe diz que eu posso atirar um tomate podre no homem que representa o papel de Hamlet, mas não posso fazer o mesmo com Hamlet, e quando os espectadores se divertem com seu gesto, como aliás eu esperava que fizessem quando joguei o tomate, eles riem do desafortunado ator e não de Hamlet, que sai ileso do ataque, porque na verdade somente os golpes de Laerte podem atingi-lo.” (2005, pág. 74).

 

         Qual o profundo sentido deste episódio risório que envolve tomates, Hamlet e Laerte, em nossa busca por traçar diferenças entre o artista e o ilustrador? Teríamos, talvez, encontrado a primeira chave da conceptualização: A obra do artista acontece no “não-espaço”. Não sendo, necessariamente, determinada pelo espaço a sua volta, e por consequência, estaria entrincheirando o observador. De outra forma, John Keats (1725-1821) desenvolveu o mesmo tema em “Ode on the Grecian Urb” com suas melodias inaudíveis (somente ouvidas pela donzela e seu amante) e a noiva eternamente inviolada do silêncio. Revelando um gesto silencioso que guarda em uma história floral a incerteza da existência do ato de criar.

 

         Ambos, além de representar algo, representam coisas, mas apenas o artista (re)apresenta coisas, somente ele opera com a coisificação – para utilizar um termo Heideggeriano – ou seja, retira a utilidade do objeto e da criação. O artista trabalha com elementos anteriores à condição de algo já nominado, como se olhasse para o mundo – esse grande Macondo -, e percebe que muitas coisas carecem de nome, e para mencioná-las é como se precisasse apontar com o dedo, mesmo que careçam de diferenças visuais.

 

         Os métodos de representação operados pelo artista diferem da metodologia do ilustrador, porém, para o artista, isso não é uma regra. Poder-se-ia dizer que ele identifica seu ato como uma doutrina, assim o exclui, pelo menos da órbita das realidades corriqueiras. Ou seja, “a essência da arte reside necessariamente naquilo que não podemos compreender mediante a simples extensão dos princípios que nos sãos úteis na vida cotidiana”. (Danto, pág. 66 – 2008). De tal forma que, a água benta não é somente água comum, por impossível que seja distingui-la, e também a Brillo Box[2] não é uma caixa de sabão, pois não é possível usar seu conteúdo para lavar roupas – pelo menos não espera-se que isso seja feito – assim como ninguém ira urinar na Fontaine[3].

 

         A função do artista é colocar aspas na realidade. A dança dionisíaca é o descomprometimento com a razão, é firmar acordo com o mistério. Um mistério que não pode ser apanhado pelas luzes das faculdades racionais, um mistério que deve se auto gerir. Onde não há mistério, não há necessidade de desvendá-lo e certamente muito menos de inventar algum. A ideia da reapresentação do artista é entorpecer as faculdades racionais e as inibições morais para demolir as barreiras do possível, até que no clímax, na liberdade, o próprio deus faça-se participante. – Este foi o sentido dos rituais dionisíacos na perspectiva Nietzschiana – Assim podemos afirmar que o artista irá se valer da transgressão para provocar ilusões e sensações na continuidade, sincronizando arte e vida.

 

         O artista habita a criação, mas a esconde. O ilustrador não. Ilustrador é uma profissão, é razão; o artista é convenção.

 

         Permita-me ilustrar essa cena, essa dança, por meio de uma festa: o ilustrador, por si, é o sujeito que trabalha na festa, não bebe e nem dança, olha ao redor e não consegue ver o porquê do artista se exaltar tanto em uma música que denuncia o gosto duvidoso dos que a cultivam. Não entende as funções dos movimentos que o corpo do artista promove, atos dissonantes dos outros presentes no ambiente. E assustado, poderia relatar com detalhes cada infração moral cometida por ele durante este evento.

 

         Neste viés, poderíamos dizer que o ilustrador habita o mundo das aparências, e a sua função é devolvê-las. O ilustrador recebe o mundo, o artista codifica. O ilustrador trabalha com ordem, o artista com a transgressão.

 

         O ilustrador opera com a comunicação, um arquiteto do tornar comum. Estrutura seu plano, procura soluções, trabalha na superfície, pensa no outro e na assimilação, desenha com mão, elabora, apresenta e conclui. O artista se interessa em quantas camadas pode conter o seu gesto e assim, bola rapidamente uma maneira de esconder seu processo. Seu corpo desenha no espaço, seus gestos ganham sentido e, por fim, tornam-se banais.

 

         O artista pinta de branco as paredes na tentativa de vedar o passado, como uma casa que recebe um novo morador e impede que o passado seja lembrado através de uma nova pintura para o ambiente. O ilustrador preenche o branco, procurando um direcionamento, cola estilo, bota estampa, risca personagens, molda formas ao observar as referências que trouxe junto a si.

 

         O ilustrador se organiza diante do seu trabalho, pensa… sente… gera estratégias satisfatórias e frutíferas, a longo e a curto prazo. O artista, como já anunciado por Pessoa, reflete: “o que em mim sente está pensando[4].” Experiencia tudo ao mesmo tempo. O sentido é um localizador para ele, identifica as representações e as codifica. Ancora a sua percepção na experiência, mesmo sabendo que a experiência possa ser mediada pelos outros. O devaneio é o seu método de criação, pois, para ele, o mundo existe na medida em que o atravessa. Sente, cheira, ouve, pensa… O mundo todo vira aquilo que lhe toca, um toque de Midas ao inverso. Para o ilustrador, esta seria uma maneira de ver e perceber deformadamente a realidade. Para o artista, isso é perceber a medida da disposição. E nesse momento, o artista complica, aumentando a distância entre ambos: “se tem dor, a dor qualifica a percepção, torna-se apenas dor”.

 

         O ilustrador, iluminado pelas luzes da razão, compreende as linguagens através das medidas, tudo pode ser representado, perspectivado, transferido, etc. Tudo pode ser transpassado numa linguagem comum, tudo pode ser comunicável. Sabe usar e citar, ao desenhar. Sabe, também, que a imagem é pedagógica e moralizante, se utiliza disso. Devolve para os outros aquilo que capta de uma cena. Têm a capacidade de reproduzir todos os itens de uma casa, nos seus mínimos detalhes. Pode captar, através das regras da perspectiva, todas as medidas que o espaço dispõe para uma representação virtuosa e fiel de uma cena.

 

         O artista, por sua vez, percebe tudo como sendo ergonômico, à sua medida. Olha para a casa e vê olhos, boca, sobrancelhas, nariz e até genitálias, numa espécie de antropomorfismo, vê objetos, perigos, facas e garfos maus intencionados, fogões temperamentais, objetos que pedem cautela, objetos furtivos que gostam de se esconder. E sabe que a máquina de lavar é o salão de festa das roupas.

 

         Nesse sentido, poderíamos dizer que trata-se de uma questão de percepção – como anunciado por Agnaldo Farias em Nos territórios da arte, em 2010.  O artista habita o mundo dos brinquedos da animação Toy Story. O ilustrador cria esse mundo e quando chega para tentar habitá-lo, os brinquedos ficam mudos, inertes. Ao representar, o ilustrador mimetiza o gesto. O artista, pelo contrário, bota os objetos em movimento para falarem.

 

         Com todas as suas diferenças, os dois sentam-se, um do lado esquerdo e o outro do direito. O artista cansado de dançar e o ilustrador de trabalhar. O artista traz junto de si a sua máquina preguiçosa, algo que é preciso, obrigatoriamente, ser colocado em movimento para que comece a falar, um livro.  O ilustrador vê o livro, olha para a capa, vê um cachimbo. O artista diz: Ceci n’est pas une pipe[5]. O ilustrador pensa, sou útil; o artista é inútil.

 


 

[1] SHAKESPEARE, Willian. As You Like It”, Ato II, Cena VII, em “The Complete Works of William Shakespeare”, Edited by W. J. Craig, M.A., Magpie Books, London, 1992, 1142 pp.

[2]  Brillo Box é em sua aparência uma réplica/cópia de uma caixa de sabão utilizada nos anos sessenta, também uma obra de feita por Andy Warhol em 1964.

[3]  Título da obra de Marcel Duchamp realizada em 1917, que constitui um deslocamento de um objeto industrial – um urinol – para condição de objeto artístico, ao ganhar assinatura e ser colocado em destaque.

[4] PESSOA, FERNANDO. POESIA. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). – 108.

[5] Entre 1928 e 1929, o belga René Magritte (1898-1967) produziu uma série de pinturas intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images). A mais famosa delas é a “Isto não é um Cachimbo” (Ceci n’est pas une Pipe)

 

Referência:

 

DANTO, Arthur. A Transfiguração do Lugar-Comum: uma filosofia da arte. Tradução Vera Pereira. São Paulo, Cosac Naify, 2010. 312 p.

 

PESSOA, FERNANDO. POESIA. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). – 108.

 

SHAKESPEARE, Willian. As You Like It”, Ato II, Cena VII, em “The Complete Works of William Shakespeare”, Edited by W. J. Craig, M.A., Magpie Books, London, 1992, 1142 pp.

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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