Literatura

Além de gênero, gêneros e cor

Guilherme Gontijo Flores apresenta a poesia de Harryette Mullen, a poeta estadunidense criadora de uma impactante obra que se debate em torno de questões de gênero(s), cor e uma rica experimentação formal. Vale muito a pena conhecer o seu trabalho, aqui em tradução ao português por Lauro Maia Amorim.

 

“Um fio, um efeito rede, uma teia para se dormir. Uma camisola branca, garota, criança, neném, em renda e desenredo. Uma dobra, uma prega. Um pedaço pálido de algo, quase feito de ar.”

 

Harryette Mullen nasceu em 1953 na cidade de Florence, Alabama, EUA. hoje é professora de literaturas americana e afro-americana na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. começou sua carreira como poeta ainda nos anos 80, mas creio que desenvolve realmente um procedimento impactante a partir dos anos noventa. seus livros são: Tree tall woman, de 1981; Trimmings, de 1991; S*PeRM**K*T, de 1992; Muse & Drudge, de 1995; Blues baby, Early poems, de 2002 (com poemas inéditos dos anos 80 e reedição de Tree tall woman); Sleeping with the dictionary, de 2002; e Recyclopedia, de 2006 (reunião de Trimmings, S*PeRM**K*T e Muse & Drudge). o impacto dessa poesia tem se revelado, como sempre é de se esperar, por um número crescente de traduções em línguas diversas. a sorte desta nossa língua é que saiu há pouco uma antologia tradutória chamada Cores desinventadas, a poesia afro-americana de Harryette Mullen, realizada por Lauro Maia Amorim, dentro da coleção “Passagens”, da Dobra Editorial (um projeto recente e promissor capitaneado por Álvaro Faleiros nessa editora-maravilha de Reynaldo Damazio). também tivemos a felicidade (embora infelizmente eu não tenha tido a chance de ver) de recebê-la nesta terrinha lá no festival Artes e Vertentes, com curadoria de Ricardo Domeneck na poesia.

 

nós poderíamos logo enquadrá-la — leia-se, resumi-la — nas categorias de poesia feminina/feminista e afro-americana/de protesto, mas isso seria perder realmente grande parte do poder da sua poesia, que é capaz — e vem demonstrando isso na prática — de gerar impacto em diferentes frentes. é claro que esse impacto está ligado ao fato de sua poesia tratar do papel do feminino e da negritude num espaço contemporâneo; porém, como bem observa Lauro Maia Amorim:

 

No caso de Mullen, deve-se avaliar o que significa escrever do ponto de vista de uma mulher negra que busca superar os limites geralmente impostos às poéticas afro-americanas — tanto pelas convenções comerciais quanto pelas expectativas de muitos leitores, ávidos pela estética da “acessibilidade.” — ou por aquilo que Aldon Lynn Nielsen denomina “realismo na prática linguística”, algo que se requer do autor, caso deseje “ser canônico como representante adequado da marginalidade social”.

 

a potência da poesia de Mullen vem do risco que ela está disposta a correr: em vez dos lugares pré-estabelecidos e, portanto, acomodados de uma poética negra (uma restrição à oralidade acessível e comunicativa, ou às gírias que dariam ar de contemporaneidade), ela funde a principal tradição da poesia afro-americana (mais popularmente oral, é fato) a outros projetos poéticos, como o grupo americano da L=A=N=G=U=A=G=E e os experimentos modernistas de Gertrude Stein (atentem para o fato de que há muito conteúdo político em Stein, e não apenas o experimento pelo experimentos), além de poetas afro-americanos ainda menos lidos, como Bob Kaufman, que eu já comentei por estas bandas. o resultado disso é uma fusão que rompe as cadeias fixas de gênero (genre) para revermos nossas limitações em gênero (gender) e cor.

 

esse tipo de poética já aparece, por exemplo, num título como S*PeRM**K*T, em que o apagamento de algumas letras da palavra Supermarket (supermercado) revelam um Sperm kit (kit de esperma). o ponto chave desse apagamento é que ele não é total, mas sim feito pela substituição da letra pelo asterisco; assim não apenas retiramos da sociedade de consumo uma espécie de política dos corpos, como percebemos a coexistência implícita dessa política de controle dos corpos via sociedade de consumo, e mais: uma constituição ainda falocêntrica (sperm) dessa economia biopolítica. é bem esse tipo de fusão que aparece em “Flies in buttermilk”.

 

outro exemplo notável de como a experimentação é capaz de reforçar o caráter crítico de uma poesia como a de Mullen é um poema como “Sapphire’s lyre styles” (do livro Muse & Drudge), onde vemos surgir, numa escrita aparentemente oralizante que retoma as poéticas do canto negro, ecos mais elaborados. vejamos: Sapphire, além de indicar banalmente a joia safira, é uma gíria, sim, para indicar negativamente a figura da mulher negra dominadora; mas mais ainda, sua relação com a lira pode evocar o nome da poeta grega Safo de Lebos (Sappho em inglês). dessa forma,  Sapphire funde a figura discriminada da negra à imagem erudita e canônica de Safo, o canto negro é reelaborado numa tradição ocidental grega e então vinculado à lira, a mulher passa a ter, portanto, seu potencial subversor (don’t messe with me I’m evil) reinstaurado via poesia (my last nerve’s lucid music). nesse processo, a revisão crítica da tradição (afro-americana e ocidental) é reforçada pela revalorização do vocabulário que denigre (Sapphire).

 

por último, gostaria de comentar o poema “Denigration” (de Sleeping with de dictionary). num procedimento que, a meu ver, guarda muita similaridade com uma poética como a de Uljana Wolf (penso sobretudo no livro Falsche freunde (“Falsos amigos”), em que a poeta alemã pisa e repisa nos falsos cognatos entre alemão e inglês para daí reprocessar a linguagem em suas ambiguidades), Mullen retorna ao dicionário para revigorar criticamente, pelas fendas da ambiguidade, um vocabulário estacionado. uma série de retomadas em paronomásia (denigration, niggling, nigrescence, niggardly, neglect, neglibible,, niggling, negate, negociate, renegades) formula uma vinculação entre negritude e negação (talvez aí o fundamento de “denegrir” alguém, vincular o negro ao não), além dos tradicionais black, blacker e darkest (notem a ausência do pejorativo nigger que no entanto tanto ecoa) que apontam para um movimento de enegrecimento. mas o poema não se resume a isso, ao fim e ao cabo, Mullen está interessada nos negros que foram eles próprios capazes de renegar (uma inversão da negação fundante da denigration), nos unruly Africans, depois chamados renegades, a que ela se vincula quando deseja “renegar este acordo” (renege on this deal). assim, a denigração vai, pouco a pouco, se revelando como construto histórico de abuso dos negros e como possibilidade de reversão positiva quando o negro postula renegar um acordo vocabular. é possível ficar “mais negra” (blacker) com esse procedimento? para responder, é preciso revermos o que queremos, o que dizemos com black, blacker.

 

aos interessados pela poesia de Mullen, sugiro ainda dar uma passada no blog da Modo de Usar & Co., onde há traduções de Ricardo Domeneck (http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2010/03/harryette-mullen.html) para outros poemas.

 

  • ps 1: uma nota sobre a tradução: considerei as soluções de Lauro Maia Amorim muito instigantes, com uma liberdade importantíssima para a recriação tradutória de uma poeta vigorosa (seria adequado chamá-la de virtuose?) e experimental como Mullen, além de oferecer notas que tentam elucidar pontos difíceis do texto e soluções tradutórias. certamente uma tradução ao pé da letra nada teria a nos dizer dessa poética, além de que arriscaria a reenquadrá-la nos espaços pré-concebidos da poesia afro-americana e feminina, como comentei no início. só achei infeliz da parte de Amorim insistir — quem sabe por excesso de humildade — no caráter “intraduzível” da poesia. pelo contrário, a obra está aqui, “em Mullen e com Mullen”, realizando suas promessas, que agora partem para as suas possibilidades com os leitores.

 

  • ps 2: o posfácio de John Milton não foi feliz. por um lado, já desde o título sugere um enquadramento fácil e perigoso no rótulo da “poesia feminista”; por outro, quando tenta elogiar Mullen e dar-lhe alguma particularidade mais importante, acaba sugerindo que ela seja apenas uma espécie de rainha do trocadilho, ao passo que a força poética e política da sua obra acaba deixada de lado.

 

* * *

 

from Trimmings

Chaste, apprehended, collared and cuffed. Kept under wraps, as bridal veils visually haze precious, easily torn, gauzy ro- mantic tissues. Thin threads lace into delicate, expensive fabrics woven and unwoven at night by patient spinsters  with needles and scissors. Laced in, as fate would have it. Knots and the tiniest holes. Surgical cutting and sewing. Peeking as usual. Skin under lace. A thread, a net effect, a web to sleep in. A white nightgown, girl, child, baby, laced and unlaced. A ruffle, a frill. A pale piece of something, almost made of air.

 

de Apetrechos

 Casta, apreendida, encoleirada e algemada. Mantida sob sigilo, enquanto véus de noiva visualmente enevoam tecidos de gaze românticos, fáceis de rasgar, preciosos. Fios finos se enredam em fazendas caras, delicadas, tecidas e desfiadas à noite por solteironas com agulhas e tesouras. Enlaçada, como manda o destino. Nós e furos minúsculos. Costura e corte cirúrgicos. À espreita como de costume. Pele sob renda. Um fio, um efeito rede, uma teia para se dormir. Uma camisola branca, garota, criança, neném, em renda e desenredo. Uma dobra, uma prega. Um pedaço pálido de algo, quase feito de ar.

 

 

from S*PeRM*K*T

Flies in buttermilk. What a fellowship. That’s why white milk makes yellow butter. Homo means the same. A woman is different. Cream always rises over split milk. Muscle men drink it all in. Awesome teeth and wholesale bones. Our cows are well adjusted. The lost family album keeps saying cheese. Speed readers skim the white space of this galaxy.

 

de S*eERM*RCADO

 Ovelha negra no rebanho. Que companheirismo. É por isso que o leite branco dá manteiga amarela. Homo significa o mesmo. Uma mulher é diferente. A nata sempre chora sobre o leite pé rapado. Homens musculosos embebem-se dele todo. Dentes imponentes e ossos por atacado. Nossas vacas são bem reguladas. O álbum de família perdido continua dizendo cheese. Leitores velozes deleitam o espaço em branco da Via Láctea.

 

 

from Muse & Drudge

Sapphire’s lyre styles
plucked eyebrows
bow lips and legs
whose lives are lonely too

my last nerve’s lucid music
sure chewed up the juicy fruit
you must don’t like my peaches
there’s some left on the tree

you’ve had my thrills
a reefer a tub of gin
don’t mess with me I’m evil
I’m in your sin

clipped bird eclipsed moon
soon no memory of you
no drive or desire survives
you flutter invisible still

 

de Musa & Mula

Sapphira seus estilos de lira
sobrancelhas aparadas
lábios e pernas de arco
de vidas que também sós

minha lúcida música de fibra finda
sugando da fruta o que há ainda
da minha fruta você num vai gostar
ainda resta alguma pra apanhar

você teve meu arrepio e tal
um barril de gim um baseado
cuidado comigo que sou o mal
sou eu no seu pecado

pássaro sem asa eclipsada lua
não demora nenhuma memória sua
desejo e impulso que falecem
você invisível frêmito que flutua

 

 

Denigration (de Sleeping with the dictionary)

 Did we surprise our teachers who had niggling doubts about the picayune brains of small black children who reminded them of clean pickaninnies on a box of laundry soap? How muddy is the Mississippi compared to the third-longest river of the darkest continent? In the land of the Ibo, the Hausa, and the Yoruba, what is the price per barrel of nigrescence? Though slaves, who were wealth, survived on niggardly provisions, should inheritors of wealth fault the poor enigma for lacking a dictionary? Does the mayor demand a recount of every bullet or does city hall simply neglect the black alderman’s district? If I disagree with your beliefs, do you chalk it up to my negligible powers of discrimination, supposing I’m just trifling and not worth considering? Does my niggling concern with trivial matters negate my ability to negotiate in good faith? Though Maroons, who were unruly Africans, not loose horses or lazy sailors, were called renegades in Spanish, will I turn any blacker if I renege on this deal?

 

Denigração (de Dormindo com o dicionário)

 A gente surpreendia os professores que tinham dúvidas inegavelmente chatinhas sobre os cérebros pequititos das criancinhas negras que os faziam lembrar dos negrinhos pequerruchos tão limpinhos das caixas de sapão em pó? O quanto é barrento o Mississipi em comparação com o terceiro rio mais longo do continente mais escuro? Na terra do igbo, do hauçá e do iorubá, qual é o preço, por barril, de negrume? Embora os escravos, que eram a riqueza, sobrevivessem de negalhas, os herdeiros da riqueza deveriam culpar o pobre enigma pela falta de um dicionário? O prefeito exige a recontagem de cada ce(du)la ou a prefeitura simplesmente negligencia o distrito do vereador negro? Se não concordo com suas crenças, você atribui isso a minha ínfima capacidade de discriminação, supondo que só estou negaceando e que não mereço consideração? A minha preocupação mesquinha com questões triviais nega minha habilidade de negociar honestamente? Embora os quilombolas, que eram africanos insubordinados, não cavalos soltos ou marujos preguiçosos, fossem chamados de renegados em espanhol, ficarei mais negra se eu renegar este acordo?

 

 

 

Notas do tradutor

 

FLIES IN BUTTERMILK

“Flies in buttermilk” pode ser interpretado como uma expressão usada para se referir à presença de uma pessoa negra em um ambiente em que só há brancos. A expressão “ovelha negra no rebanho” não necessariamente remete ao mesmo sentido daquela em inglês. Ela, porém, é funcionalmente adequada para retratar a ideia de aparente “inconveniência” sugerida pela expressão em inglês, além de ser coerente com o que vem a seguir: o contexto da produção do queijo.

O verso “cream always rises over split milk” é uma referência irônica ao ditado “don’t cry over the spilt milk” (“não adianta chorar sobre o leite derramado”), em que a “nata” da sociedade (“cream”) se eleva sobre o leite “repartido” (ou escasso?). Em português, buscou-se realizar uma adaptação em que se utiliza o verbo “chorar” como forma de intensificar o sentido de paródia e ironia do verso, podendo levar o leitor a identificar mais facilmente o intertexto (ou a expressão idiomática subjacente) com “leite pé rapado”, ou seja, um leite identificado com as massas, e também sonoramente mais próxima a “leite derramado”.

Por fim, o verso “speed readers skim the white space of this galaxy” contém um trocadilho: “skim” pode ser “ler por cima ou folhear” e “desnatar” (“leitores velozes folheiam/desnatam o espaço em branco dessa galáxia”), brincando com a ideia de “leite subjacente à imagem da “Via Láctea”. Na tradução, buscou-se a ambiguidade do verbo “deleitar” (que pode sugerir “sentir deleite”, ou, literalmente, “retirar o leite”, sendo até mesmo um parônimo de “deletar”): “leitores velozes deleitam o espaço em branco da Via Láctea”.

 

SAPPHIRE’S LYRE STYLES

“My peaches” evoca, de modo ambíguo, o órgão genital. Daí sua tradução por “minha fruta”.

 

DENIGRATION

Como o próprio título anuncia, o poema é uma série de questionamentos com palavras, cujas raízes são “nig” (ou “neg”, em português), o que possibilita tanto uma reflexão sobre alguns sentidos negativos associados a esse morfema e à figura do “negro”, quanto um diálogo metalinguístico com os sentidos da própria língua e a sua relação com uma dimensão política mais profunda ou inquietante. A pergunta “does the mayor demand a recount of every bullet […]?” faz um jogo de palavras entre “bullet” [“bala” de revólver] e “ballot” [“cédula” de votar]. A tradução procurou unir duas palavras para gerar uma ambiguidade semelhante: “ce(du)la”.

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

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