R.You

Das ilusões literárias perdidas – Considerações sobre escrever, ser editado, ser lido ou ignorado

Na coluna R.You desse mês, Andrei Ribas conta sobre as suas experiências como escritor: da idealização de um livro às labutas e frustrações de vê-lo (ou não) publicado. Leia também alguns dos seus contos e saiba mais sobre o autor.

 

“A quem se embrenha nestas lutas, de criar, tentar ser reconhecido e continuar, resta errar (quase sempre) e (quase no fim) acertar, porque até mesmo a mediocridade não pode ser ignorada por bastante tempo.”

 

Quando eu estava na faculdade de Direito, durante o longo tempo à toa que não trabalhar proporcionava, me meti a escrever um livro, isso levou quatro anos e, já formado, passei noites e noites redigindo-o novamente. Estava estudando pra OAB, então deixava pra trabalhar no livro no final dos dias. Ainda morava com minha mãe e ela me perguntava o que eram aqueles tec-tecs no quarto madrugada adentro. Não me lembro se respondi a ela. Na real nem eu sabia se era um livro mesmo. Não tinha a pretensão de ir atrás de uma editora e apresentar o trabalho. Na época eu achava que era assim que funcionava, apresentar o volume a uma editora, ter a sorte de um editor ou conselho editorial gostar dele e ter a edição totalmente patrocinada. Isso era 2004. O trabalho ficou de molho e só saiu, depois de envios desnecessários a várias editoras, por um contrato sob demanda, no ano de 2007.

O monstro http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=2248724&termo=o%20monstro%20andrei%20ribas http://www.allprinteditora.com.br/o-monstro saiu pela All Print, de São Paulo. Ainda está à venda por um preço bem menor do que teve no lançamento. Não teve sessão de autógrafos, resenha em revistas, sites, blogs ou jornais, nem muita repercussão. Não vi um centavo da venda dele, isso se vendeu. Porém não era essa a questão. Passado algum tempo, analisei que o livro era apenas uma satisfação pessoal de ver meu nome na capa de uma edição. Sempre fui muito de ler e deve ter sido por causa disso – ver tanta glamourização na lida da escrita – que desencadeou a vontade. Não pretendia ser escritor, aqueles que têm isso como ofício e mantém uma rotina de escrita frequente. O monstro, mesmo com uma história até que boa (um advogado que mata a esposa e seu amante e que se vê, não só por isso, excluído pela sociedade da pequena cidade em que vive), apesar de tanto esforço na faculdade e um pouco tempo depois – nas digitações e correções das minhas madrugadas –, teve muitos defeitos de grafia, concordância e copiava um estilo acadêmico dos clássicos lidos no início da minha vida literária que só eu, e os mais atentos (e ínfimos) leitores presenteados com ele, sabemos.

A experiência me deixou meio desacreditado com a escrita. Mas só com ela. Não coloquei a culpa na editora, que fez o que pôde pro livro ser divulgado dentro de suas limitações. A culpa do livro ficar na prateleira, com mais tantos outros, era o título (que sempre me pareceu amadorístico ao extremo), o pouco conhecimento que o leitor-consumidor tinha/tem de mim, a parca propaganda e distribuição; enfim, era pra ser destinado ao fracasso de qualquer forma. Mas não só ao fracasso comercial. O livro, quando coloco os olhos nele, nos (muitos) exemplares que me restaram da parte que cabe ao autor, são a prova de que podia ter esperado mais pra colocar a cara a tapa e tentar ser como aqueles caras que eu lia e achava/acho heróis de um mundo paralelo. Podia tê-lo melhorado em vários aspectos, mas como não o fiz e entreguei para ser sacrificado por quem se atrevesse a lê-lo, pago os pecados até hoje. Isso me afastou da literatura e do que advinha dela por seis anos. Ficava de fora observando os lançamentos dos escritores que admirava/admiro, tentava entender como funcionava o mercado editorial (o qual tinha entrado sem qualquer noção), e ficava com aquela sensação de que algo faltava, aspirava que podia apresentar algo melhor do que já tinha apresentado.

Mas, o que nos leva a escrever? Todo escritor, por certo, é narcisista ao extremo, quer ganhar os louros por fazer os outros pensarem, ou pensarem ao menos que não conseguiriam fazer o que ele fez – inventar histórias e personagens –, ser visto e posar pras fotos de divulgação do livro em reportagens como o baluarte do ofício da escrita. Evidentemente que também penso assim, e quem se atreve a escrever e ter pretensão de ser uma figura conhecida no métier se disser que não está mentindo principalmente pra si mesmo, negando o que se é. Nem é questão de viver disso. Se pensar em ganhar grana fica depressivo rapidinho.

Reuni, portanto, alguns contos anteriores à faculdade, reescrevi-os e acrescentei outros, influenciado por nomes como Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Sergio Sant’anna, Charles Bukowski (naqueles anos) e David Foster Wallace (poucos anos antes de publicá-los), aí nasceu Animais loucos, suspeitos ou lascivos http://rakuten.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=15056242 http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=&idProduto=1502 , lançado em dezembro de 2013 pela Multifoco, selo Redondezas, do Rio de Janeiro. O livro também foi editado às minhas custas. E aqui cabe uma rala explanação: descobri que o custeio, seja numa editora pequena, seja numa editora grande, parte de alguma das partes, geralmente do próprio autor, e totalmente do autor se for iniciante e desconhecido do público. Até existe a possibilidade de a editora custear toda a edição do livro, mas só se tiver a certeza de que o produto vai vender. Existem também as panelinhas, o que ajuda no interesse de uma editora pelo seu trabalho. Um autor que chama outro, que chama outro e fica aquele grupo ad infinitum, sem ninguém mais poder fazer parte dele. Isso é verificado em qualquer editora se você analisar bem, basta ver o catálogo, em algumas chega a beirar ao corporativismo, resumindo-se em não mais que meia dúzia de confrades. Com o crescimento das redes sociais isso é mais evidenciado ainda devido ao círculo de amizades que um autor tem: geralmente composto pelos companheiros de editora. Então a realidade é esta e somente esta: seu trabalho, pelo menos no início, vai depender muito do quanto você está disposto a pagar para vê-lo publicado ou de quem você conhece no meio literário que lhe ajude a ser um escritor conhecido. Ou você tem dinheiro ou parcerias, mas se não tiver o primeiro, nem adianta querer brincar disso. Aliás, sem dinheiro você vai ficar eternamente na crendice de que uma editora possa lhe bancar, o que não existe ou, como dito acima, atendendo a um interesse mercantil, é raro de ocorrer.

Voltando ao livro, Animais reúne contos que tratam de vários temas, mais especificamente amor (com todas as complicações possíveis atinentes) e morte, amarrados por uma análise de fora que fica relegada às notas de rodapé, numa clara evidência da escrita wallaciana, seja por utilizar este recurso, seja pela inserção da metalinguagem na obra. Considerei este melhor do que o primeiro – que, não minto, me enche um pouco de vergonha –, até por considerá-lo ímpar nos aspectos de tema e construção (forma e conteúdo casam perfeitamente). Claro que poderia ser dito que por serem formas literárias distintas isso talvez denunciasse que me dou melhor em escrever contos do que uma novela ou romance, mas, por estar a ponto de publicar mais uma novela ano que vem, tal conclusão cai por terra, inclusive por considerar a que está pra nascer bem diferente em vários aspectos, no bom sentido, do que foi a primeira. O novo trabalho, dessa vez, vai ser parido pela junção de iniciativas financeiras entre a editora e eu, mas, oposto aos outros volumes, obscuros devidos às más escolhas editoriais ou precipitação própria, aguardo que este, finalmente, conte com um sistema de divulgação e distribuição apropriadas e profícuas.

A quem se embrenha nestas lutas, de criar, tentar ser reconhecido e continuar, resta errar (quase sempre) e (quase no fim) acertar, porque até mesmo a mediocridade não pode ser ignorada por bastante tempo. Acreditando nisso, deixo amostra de contos encontrados em Animais loucos, suspeitos ou lascivos, o primeiro integral e trechos do segundo. Como falado, foram fortemente influenciados nas temáticas duras dos autores citados, exigindo uma certa dose de perspicácia do leitor para encaixar os personagens às situações – deixando milimetricamente de narrar tudo –, e na contribuição do subtexto como parte integrante do texto maior, além de (usar e) glorificar a técnica da obra falando dela mesma. Avante:

 

PRIMEIRO DIÁLOGO (ANTES DO INÍCIO DE ALGUMA COISA QUE LEMBRE O INÍCIO DE UM ANO)

( Amanhã começa outra trajetória. Outra trajetória feita de: momentos, costumes, ações, contas, dívidas, cortes, perguntas e meias respostas.

) Amanhã vou regar minhas begônias, empalhar os bem-te-vis, costurar minha saia rasgada, comer mais frutas. Esses são os planos até segunda ordem.

( Sabe, na última vez que choveu eu estava vendo a cadela do vizinho. O bicho foi acorrentado no portão e aparentava que os pingos d’água machucavam sua carne. Depois eu não vi mais a cadela, pobrezinha. Teria evaporado?

) Já me é impossível ocultar os trabalhos nas gavetas. Preciso divulgar os contos, os ensaios, as teses, os romances, as piadas, as tragédias grouchomarxianas. E os críticos? Ora, os críticos são feitos para criticar. Além do quê, aqui neste país, quem critica é pouco lembrado.

( Hoje está abafado, uma antecâmara do inferno, diria. Anotarei no diário: “Hoje o dia foi uma antecâmara do inferno”. E quando passar alguns meses/anos vou ler e lendo terei convulsões, convulsões de riso.

) Barreiras à imaginação. É isso que construo e ganho razoavelmente pelo serviço bem feito. Começo: pego tijolo por tijolo e deles faço paredes bonitas cor de laranja. No cimento ponho bicarbonato misturado com uma colher de pau. Visto o ambiente (ele me veste). No lo puedo creer…

( Foi na praça o nosso derradeiro encontro. Eu ia, inclusive, pedir a ele que me deixasse respirar, viver o nosso amor de maneira aberta, sem cobranças. Daí ele sacou um revólver do bolso e deu um tiro na testa, sem falar e sem me deixar falar nada.

) Amanhã vou visitar tia Adélia no manicômio. Ligaram-me dizendo que ela agora pensa estar olhando duendes nus pelos corredores.

( Recebi cartas anônimas segunda-feira. Eram duas. A primeira descrevia meus passos atrás das moitas e a outra desvendava os mistérios da comunicação humana. Gostei da segunda.

) Relatarei as aventuras e desventuras de personagens non gratos, inspirados nestes tipos urbanos que têm por todas as metrópoles.

( Amanhã vou tosar as ovelhas, brincar de pular corda, beber guaraná quente, fuzilar meus inimigos, assoprar a poeira das Bíblias velhas, e abri-las.

)  Amanhã começa outra trajetória. Outra trajetória feita de: momentos, costumes, ações, contas, dívidas, cortes, perguntas e meias respostas.*

 

 

HISTORIETAS, OU QUASE 
Prazeres que você pode ter mas finge eficazmente que não (II)

 A sensação era boa e ele, por só a ele interessar, não tinha dúvida disso. Vinha do córtex, de alguma região mais profunda e desconhecida daquele cérebro que ele sabia ser como o de qualquer outro humano, depois que o cheiro na ponta do dedo era captado pelas narinas. Funcionava assim, meio que automaticamente. Era colocar o dedo no ânus da parceira e depois aproximar a falange no orifício nasal que alguma sensação de prazer inenarrável atingia toda aquela massa cinzenta e feia que tinha dentro do crânio como o de qualquer outro humano chegando às demais partes feito um choque. Às vezes, em muitas delas, atingia o gozo em seguida. Muitas vezes a parceira questionava se ele ao colocar o dedo ali queria colocar outra coisa se referindo ao pau dele. Ele negava. Dizia sentir prazer só colocando o dedo mesmo. Não confessou a nenhuma delas o prazer de só sentir o cheiro daquele buracos. Podia distinguir, nem ele sabia como, cada um deles. Como uma impressão digital era o aroma diferente em todos. Mas claro que para todo mundo aquilo não faria sentido, afinal o consenso geral era de que o aroma era indistinguível. Tal qual o de qualquer outro humano.

 

 

Dramas latino-americanos pós-descobrimento da felicidade enlatada (IV)

     Nossa vida era infame, depois que Heitor perdeu o emprego ficou duplamente infame.

     Não dá pra continuar assim, eu disse a ele um dia. Heitor não fazia nada, não trabalhava, não me ajudava a arrumar a casa, não saia pra fazer as compras, só o que fazia era tomar banho todos os dias (sim, Heitor é limpo, gastando a porra da água e do couro dele) e assistir à televisão até amanhecer ou sair à rua pra tomar cerveja ou jogar futebol com aqueles fodidos dos outros vagabundos do bairro. Quando eu chegava, eu o encontrava na porta de casa, sentado na escada ou no chão, com uma camiseta velha do Grêmio que catingava de suor, bebendo sua Polar e gastando saliva com seus amigos, um grupinho de adolescentes de encefalograma plano que o chamavam de professor (coisa que não parecia desagradá-lo) e com os quais ele ficava até eu preparar a merda do jantar. Então Heitor dizia até logo pra eles: falou, professor, até amanhã, professor, outro dia a gente continua o papo, professor, e só então ele entrava em casa.

     Eu, pra dizer a verdade, fervia de raiva, ficava pê da vida e com muito gosto teria botado veneno pra rato na bosta dos ovos fritos dele, mas me continha, contava até dez, pensava ele está passando por um mal pedaço, o problema era que eu sabia que o mau momento já durava demais, quatro anos pra ser exata, e, embora não rareassem os bons momentos, a verdade é que os maus eram muito mais numerosos e minha paciência estava se esgotando. Mas eu me aguentava e perguntava pra ele como foi seu dia (pergunta cretina) e ele respondia (o que poderia responder?) bom, regular, mais ou menos. E eu perguntava o que você conversa com aqueles pirralhos? E ele respondia conto histórias, mostro a eles as verdades da vida. Depois ficávamos em silêncio, com a tevê ligada, cada um concentrado nos respectivos ovos cozidos, nas folhas de alface, nas rodelas de tomate, e eu pensava comigo de que verdades da vida você pode falar, pobre infeliz, pobre desgraçado, que verdades você mostra, pobre gigolozinho, pobre pentelhinho, escroto de merda, se não fosse eu você agora estaria dormindo debaixo do viaduto. Se os outros filhos-da-puta da existência ainda deixassem um espaço pra você. Mas eu não dizia nada, olhava pra ele e pronto. Mas até meus olhares pareciam incomodá-lo. Ele dizia está olhando o quê loura? esta maquinando o quê? E eu então forçava um sorriso babaca, não respondia e começava a tirar a mesa.

 

 

 

Andrei Ribas é autor dos livros supra indicados. Foi advogado e é servidor público. Possui trabalhos reproduzidos nas revistas eletrônicas Plural http://pluralrevista.blogspot.com.br/2014/06/revista-plural-escrita-contemporanea_23.html e Flaubert http://issuu.com/revistaflaubert/docs/flaubert006, além de escrever no blog Modo de usar extraviado (sobre literatura, cinema e outras artes) na Obvious http://lounge.obviousmag.org/modo_de_usar_extraviado/2014/09/nossa-mente-tao-cheia-de-romances-errados.html. Já teve aspirações maiores com a literatura (como visto); atualmente escreve, revisa e depois vê no que dá.

 

 

* Novamente a questão da argúcia. Fora o título, que dá, até de antemão, o que você queria propor, o que lê deve atentar para o parêntese, remetendo a um ciclo que abre e outro que fecha, sei que parece meio óbvio, mas você devia repensar em incluí-lo. Sabe como é, são poucos os que gostam de utilizar a cabeça além de só reproduzir no pensamento o que perpassam com os olhos. Querem tudo mastigadinho. Mas você é quem sabe. Aliás, é seu nome que vai na capa. Ponto. Só para constar: começo e fim iguais. A intenção era remeter que tudo está ligado ou que o fim é sempre um recomeço e o recomeço é sempre um fim?

R.You!
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