Visuais

Sobre o deslumbramento

O deslumbramento e a falta. O que, afinal, representa estar frente à frente com uma obra de arte? Como encaramos e o que vemos nesse contato tão indecifrável?

“Ser um artista de sucesso parece significar, portanto, o equilíbrio entre a aceitação dos seus iguais + um moderado sucesso popular, que seja ainda capaz de manter o seu status de pensador qualificado. É, no fim das contas, uma situação bastante engraçada.”

 

O Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0a traz, na entrada “deslumbramento”, as seguintes interpretações: 1. turvação da vista causada por excesso de luz, brilho ou por outros fatores (p.ex., vertigem); 2. estado de espírito de quem é tomado por viva admiração; encantamento; 2.1. objeto de admiração, aquilo que provoca fascínio ou sedução; encanto, maravilha. 3. perturbação do entendimento; alucinação, obcecação. Do mesmo modo, alguns dos significados possíveis para a entrada “deslumbrado” são: 2. que ou quem se deixa ingenuamente fascinar por algo que lhe falta (p.ex., riqueza, inteligência etc.); 3. que ou aquele que, por demonstrar excessivo entusiasmo por alguma coisa, é visto como pessoa tola, destituída de crítica.

Quando pensamos no ato da apreciação de obras/objetos artísticos, é difícil não pensarmos em termos de deslumbramento, esse sentimento que vai além da apreciação racional, que, como a própria entrada acima apontou, pode conotar um entusiasmo destituído de crítica. A crítica racional, por outro lado, valorizada mais fortemente – e principalmente – com a ascensão das vanguardas do início do século XX, deixou um legado de estranha assimilação em ambientes artísticos diversos, que parece inclusive continuar forte ainda hoje. Lembremos que essas vanguardas mantinham um discurso primordialmente meta-artístico, distorcendo valores transcendentais da arte, trazendo-a a encarar o seu próprio papel numa Europa turbulenta: o futurismo botava tudo abaixo, atacava a sacralidade do passado; Duchamp distorcia o discurso, discutia o status, seu lugar e seu significado. A Arte (com letra maiúscula, pensando o seu significado inerente em termos ainda um pouco genéricos, essa reflexão estética a respeito da condição humana, seu discurso e seu lugar) continuou segregando-se em guetos, espalhando-se de maneira controlada, em “escolas”, meios onde ela fosse discutida pelos e para os que a praticavam. Nosso colunista Guilherme Gontijo Flores, na entrevista que concedeu à edição de estreia desta revista, comentava acerca da situação da produção de poesia atualmente: não se pode, enfim, escapar da condição de Gênio. Produz-se para o discurso dos seus iguais. Ser aceito atesta favoravelmente a sua capacidade, enquanto não ser aceito implica em genialidade, não-compreensão do seu tempo e da sua época. Tal situação, se analisarmos com cuidados, se vê repetida em diversos dos “guetos” artísticos, o da poesia, o do teatro, o do cinema, o conceitual.

A arte, produzindo-se para si mesma, implicaria então em não ser feita para um grande público? Parece mais que óbvio que sim. Exige-se um título, uma qualificação técnica para a apreciação de certas obras, de certos meandros da arte. Ironicamente, o Gosto, aquele que não se discute, não pode ser aceito nesse sistema. Não faz sentido que exista Gosto na apreciação analítica e racional da arte. Portanto, é lógico pensar que o não-gostar implique em não-entender, argumento comumente utilizado por artistas que se deparam com o fracasso “de bilheteria”, com o baixo ibope. Pensando ainda nesses termos, o artista de grande êxito popular se debate com a não aceitação dos seus iguais pelo mesmo motivo. Ser popular praticamente significa ser raso, ser desprovido da qualidade crítica e da profundidade de significado. Ser um artista de sucesso parece significar, portanto, o equilíbrio entre a aceitação dos seus iguais + um moderado sucesso popular, que seja ainda capaz de manter o seu status de pensador qualificado. É, no fim das contas, uma situação bastante engraçada.

 

O deslumbramento não parece ser aceito nesse sistema. Por acaso, ao reler as entradas citadas acima, o deslumbramento me pareceu representar o significado mais íntimo do que é a apreciação de arte: o entusiasmo, a demonstração ingênua da fascinação provocada por aquilo que falta – e não é o caso da falta de riquezas, de inteligência, de beleza ou quaisquer outros bens palpáveis e contabilizáveis. A falta aliada ao deslumbramento representa o indizível, a comoção, o motivo primeiro de se postar frente a uma obra atemporal. A sequela maior deixada pela arte do século XX sobre nossas gerações é o medo constante e inacabável da pura e simples apreciação, o tormento constante exigido pela apreciação analítica, o medo do brega, da ironia, da lágrima e da falta de palavras numa época em que firmar-se frente aos seus iguais é fazê-lo com palavrórios, com mumbo-jumbo.

Mais. Existe ainda toda uma esfera do contato com a arte como acontecimento social, a representação de um status, a câmera que te registra ao lado do Hard Rock Café, da Torre Eiffel e, por fim, da Mona Lisa. Dentro da Capela Sistina, apenas 15 minutos são concedidos a cada grupo de visitantes, o que traz um dilema de grandes proporções entre se fotografar ou se deixar deslumbrar – em caso de deslumbramento, são apenas 15 minutos. O portfolio pessoal que montamos ao longo da vida, esse curriculum vitae dos lugares que percorremos pelo mundo (turismo = prédios velhos, museus, comida nativa) afeta seriamente a apreciação da arte ao longo do processo, a não ser que sua viagem seja prioritariamente de apreciação artística. Museus como o Louvre são hits da grande arte canônica, parada obrigatória do turismo, tal como a Torre Eiffel, e no fim nada disso faz muito sentido.

A arte canônica não causa o deslumbramento por ser turismo; a nova arte não o causa pela situação de desinteresse fora de sua esfera própria, de seu discurso interno. Mas talvez, apenas talvez, esteja faltando quem chore frente a uma obra, a uma sinfonia, a uma tela, a um poema. E não pelo sentimentalismo kitsch do choro fácil hollywoodiano, mas pela falta, pelo reconhecimento da beleza naquele objeto-outro, produzido por alguém tão outro e de outro tempo, e que ainda assim nos reconheceu em nossa esfera mais íntima, nos interpretou e formou esse laço entre a pessoa e a obra de arte, esse organismo vivo que espelha tantos de nós. Talvez esse seja o deslumbramento, a apreciação da arte, essa fascinação ingênua causada por uma falta, que não nos alcança e nos torna tão frios. Arte é brincadeira, é jogo. Sejamos tolos e destituídos de crítica, ao menos uma vez.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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