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Notas íntimas: Fernanda Fatureto

Conheça o trabalho de Fernanda Fatureto, autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (ed. Patuá, 2014). Ela mesma nos conta a respeito do difícil e tortuoso caminho de se (d)escrever, mas sem perder a ternura.

 

“Li em um artigo: ‘todos estamos sangrando’. Parece que as mulheres sangram mais ao escrever.”

 

 

Travar uma escuta interna em meio aos acontecimentos exige coragem. Talvez coragem seja uma palavra muito forte para nomear o próprio trabalho, mas quem trabalha com a escrita a possui em doses arriscadas. O risco consiste em lidar com fronteiras, o abismo da linguagem se fazendo – acredito que com poesia o abismo é maior. Há os fatos, a vida, a realidade. Há o sonho, a imagem, o inconsciente. A partir daí me esbarro com uma palavra que esteve por muito tempo em meu vocabulário particular. Ao longo da escrita do meu livro de estreia, Intimidade Inconfessável, editado pela Editora Patuá, estive muito interessada em leituras de Jacques Lacan, que permearam meu imaginário e empurravam-me a pergunta que se fazia crescente como um estranhamento: o que é ser mulher? Sendo mulher, como atuo no mundo? Meu livro nasceu dessa angústia. E mais: uma mulher descentrada. Estrangeira. Para a filosofia, o requiem do Outro. E nesse duelo que foi viver em uma cidade que não a minha, o embate surgiu em forma de poemas. Não sei ao certo por que poesia. Pode ser por condensar emocionalmente melhor frases e conceitos. Trabalho intuitivamente, como pontuou um excelente poeta. Ou também há uma dose de teoria, mas camuflada pelo tom emocional dos meus escritos. Essa questão do feminino foi primordial para mim desde o início, mesmo não tendo claro o livro como todo. O livro surgiu em torno de cinco anos. Com as leituras sobre o feminino e a psicanálise, vieram – entre outros – poemas como Ameno, como um céu triste:

 

Ameno, como um céu triste

O calmante permite que desista da vida
por um instante e durma.
Função maternal: durma em braços esplêndidos
Como em nosso Hino esquecido.

A cama retém toda a fúria de um corpo são.
Ameba aquática calmaria azul.
Blue.
Canto de alento, sinal delirante de saudade.

Assim, a vida torna-se mais simples lá fora.
Passa-se a vassoura por baixo da mesa,
Limpa o fogão.

Enquanto ela dorme embebe.
Seu pathos de vida retirado.
Justificado por qualquer teoria queer
De gênero.

Dorme moça, princesa em seu castelo
Zombeteiro.
Dorme,
Os vizinhos lucrarão em não ouvir
A verdade escandalosa.

 

Escrevo lentamente, sem pressa. E caminho em paralelo à leitura de mulheres ficcionistas. Tenho um interesse especial pelo modo que, com o passar do tempo, elas desafiam o status quo, driblam os cânones. Tomo-as como espelho para o diálogo com a vida. Li em um artigo: “todos estamos sangrando”. Parece que as mulheres sangram mais ao escrever. Esse descentramento, viver em um habitat que não o meu de origem, foi o epicentro para deslocar a angústia para a criação em termos efetivos. Se é que atualmente podemos usar a palavra “criação” sem embaraço, já que a tessitura da linguagem se faz em mil vértices:

 

Traço

A tempestade guiará o povo.
Local sagrado
Monte das Oliveiras,
Bote no topo da árvore
Maomé regendo seu povo com o condão.

Trope, trope
seguro por sobre as montanhas.

Línguas de fogo presas ao porto.
Tinto cálice
Milênios injúrios
Clamo seu nome.

Assim escrevo –
Tenda delicada teia tecida

Vértice.

Colina por sobre o mar.
Povo a procura do Nome.
O segredo de um nome.
Por entre códigos decifrar a origem do mundo.

Desvela o segredo oculto.
Cala-me
a um ponto de chegada.

 

Nessa teia, mulheres como Marguerite Duras, Clarice Lispector, Sylvia Plath e Anna Akhmatova trouxeram um norte para minha busca, primeiramente como mulher, pela temática de seus livros. Posteriormente na escritura formal. Porém, faço leituras pelo arrebatamento. E não tenho um plano formal preciso ao escrever. O arrebatamento nessas mulheres traduz a forma como conduziram suas obras. Há o espelho, como em Alice e o País das Maravilhas. E há um duplo, há a fantasia masculina em torno do gênero:

 

Pin up

Não estou à venda: Bonequinha de luxo exposta
em vitrine.

Modinha godê.
Safo no país das maravilhas.

Aleluia, aleluia alegria dos homens.

 

Transformar o frágil em riso. Com Escrivão, uma homenagem àqueles que fazem da alteridade um risco e nunca um acolhimento:

 

Escrivão

Minha demanda de amor
percorre a Guanabara inteira
à procura de um colo
uma prece
um sorrio meio largo
ao imaginar a surpresa
em me ver aqui – inteira –
a admirar seu raro talento
– usurpador de ofício.

 

No final, por mais que máscaras caiam e relações se equilibrem em precipício, há o humor e a subversão. Escrever sangrando e não perder a ternura.

 

 

 

*Fernanda Fatureto nasceu em 1982 em Uberaba, Minas Gerais. Formou-se em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. É autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014).

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