Capa: Wassily Kandinsky – Jaune, Rouge, Bleu (1925)
É com muito prazer que apresentamos na coluna R.You! deste mês o sensível trabalho de Camila Marchioro, que transita entre todas as formas de movimento, seja na dança, na música ou nas cores, e, mais que tudo, em todas as possibilidades da palavra em forma de poesia. Conheçam abaixo seu belo trabalho.
Eu nasci e cresci em Curitiba há quase 35 anos. Quando criança, as professoras implicavam comigo porque, se chovia, eu ficava estranha: ou fechava os olhos, ou ia para a janela e não saía de lá por nada, ficava perdida olhando os pingos. Demorou muito até eu descobrir que o meu fascínio pela chuva vinha de uma condição neurológica chamada sinestesia, que ocorre em cerca de 2 a 4% da população. A sinestesia acontece quando o cérebro, por algum motivo, não separa os sentidos. No meu caso, todo som e cheiro têm uma cor e cada cor tem um som. Então, quando chove, é quase como assistir a um show de fogos de artifício, cada pingo é um som, cada som, uma cor. Eu acho que foi o fato de ter essa condição que me aproximou da arte desde muito pequena.
É estranho crescer com sinestesia porque as outras pessoas não compreendem muito bem o que se passa. Por isso, acredito que foi no universo da arte que eu me senti acolhida, uma vez que ali parecia que a minha confusão sensorial era a regra. Lembro até hoje de quando vi um quadro do Kandinsky pela primeira vez: eu tinha certeza de que estava ouvindo aqueles traços! Depois, descobri que ele também tinha sinestesia e que pintava as coisas que ouvia… e eu ouvia/ouço as coisas que ele pintava. Desde então, ele é uma das minhas referências.
A arte visual e a música foram meus primeiros encantamentos como espectadora. Já como artista, eu comecei no balé ainda pequena, conforme o costume dos anos 90, depois, migrei para o teatro, aos 12 anos, e me tornei atriz profissional aos 18. Ainda adolescente, fiz algumas incursões no cinema. Nesse meio tempo, voltei para a dança aos 15 e comecei a investigar outros ritmos: foi na dança moderna e contemporânea que me encontrei. Criei muito nesse espaço, ao mesmo tempo em que atuava e escrevia poesia.
Assim, a poesia que escrevo é um encontro da palavra escrita com a palavra dita (som/cor) e com o movimento. Dançar, fazer versos e, consequentemente, colorir são inseparáveis para mim. Meu processo de criação é um tanto performático, porque cada conjunto de som e palavras envolve cores e movimento, o poema nasce em voz/cor e dança, tudo ao mesmo tempo.
Kinesfera
Isso vai acabar bem
vai sim:
………………………………………o verbo escorre na mão
e da mão vai à sílaba
……………………………..isso.
……………………………..Isso
…………………..são coisas de outra ordem
…………………..quase divinas
é o movimento amarelo dos pés
tão a seu jeito
é a extensão de algo que
…………………………….em mim e em ti
não tem origem nem fim
………..pura ondulação clara
………..marítima
forma íntima
de dançar.
Além das cores (pensando em uma iluminação teatral), as máscaras e os arquétipos vindos do drama também fazem parte da minha escrita. Eu gosto de “vestir” máscaras para fazer versos e gosto de pensá-los no palco, sob luzes e sombras, buscando no corpo de um leitor-ator o terror, o ódio, o afeto, a sutileza ou mesmo a comédia que nasce na dança de máscaras das palavras.
Carta ao Prólogo
(para cena, sob luz e sombra)
Prólogo, não quero sol, mel, luz ou flores
afirmo sem tragédia breve ou deus:
— Caia doente, ataca-me sem mais demora e veja,
pobrezinho, que quem a tua direita se senta
cativo é.
Me estendo nesse palco seco e finjo
que sinto e juro que isso
não passa de um jogo de fé
ou de espelhos…
Sei e não sei. Portanto, omito o amor,
o que acha?
Prólogo, (aos gritos)
Prólogo, não me trate como a Beleza, ouviu?
Ou como uma agonia sagrada
porque anjo não sou!
(ainda aos gritos) vai
(com calmaria) vai logo
(agora com mais calmaria) e diz à toda terra que minto.
Acho que minha poesia se completa com a certeza da presença de um corpo leitor que a seu modo também diz e dança. Escrevo poemas ciente de que minha animalidade e humanidade se integram na escrita, som/cor e movimento. Por isso, também a poesia concreta tem um peso na minha arte, uma vez que une os sentidos. “Portas do Ouver”, de Augusto de Campos, talvez seja um bom poema que me represente, porque eu ouvejo, de fato, e a isso acrescento o dançar.
Fora essa intersecção sinestésica, que é o invólucro da minha estética, há outros elementos importantes para mim e que permeiam meu processo. Eu tenho um pé bem afundado na fenomenologia alemã, que conheci por meio do meu interesse pelas coisas do Oriente, pelas filosofias da Índia e da China e seus diferentes escritos e práticas, como a meditação. Nesse sentido, acho que existe, de minha parte, certa inclinação para uma poesia meditativa, na esteira de Cecília Meireles, minha musa maior.
Meu processo de investigar a mente pelas vias da poesia é algo contraditório, porque, muitas vezes, o que encontro em mim é silêncio. E é até engraçado que, no meio de tantas cores e efeitos da sinestesia, eu encontre um silêncio abissal: incolor, inodoro, vazio. Também parece estranho, num mundo acelerado como esse em que vivemos, que alguém possa ter vazio na própria mente, mas acho que ele está lá para todo mundo. E a grande contradição que vivo consiste na escrita do silêncio. Assim, eu dou muito valor à pontuação, aos espaços e às pausas.
Com a fenomenologia de Husserl, eu aprendi que para tirar o eu da jogada você precisa aceitar que ele está ali, conhecer cada pedacinho dele, nisso reside a investigação da mente. Sem essa investigação, não se pode conhecer algo, porque tudo que se conhecerá serão projeções desse eu naquilo que se quer conhecer, daí a importância de meditar, suspendendo seus valores e juízos a fim de alcançar um objeto na sua essência. Parte de minha poesia é uma extensão dessa prática investigativa.
Eu não sei dizer se consigo alcançar a essência das coisas e, sinceramente, não me importo muito com isso, todavia, o simples fato de acreditar nessa possibilidade faz com que eu aceite investigar a minha própria natureza e olhe sem medo para os meus pensamentos e veja a matéria deles com certo desapego e distanciamento. Eu não tenho medo do que o labirinto da minha mente guarda e, às vezes, caminhando curiosa por ele, me deparo com esse silêncio abissal, o qual tento poetizar.
Vastidão
Hoje eu rezei
olhos imolados, um pouco de água e sal.
Eu não balbuciei nada, como fazia minha avó
Mas despenquei sem querer
de joelhos no vazio.
O silêncio foi minha primeira oração.
Alguns poemas para dançar
Poema estúpido
(para dançar a sós)
Há dias estúpidos
de estúpidas flores
de estúpidos pássaros assanhados
de gentes de cabelo estupidamente arrumado
de frases estúpidas repetidas nas rádios
estúpidos dias estúpidos dias
estúpidos
você tem sede:
a água está suja.
Reinvenção de Camões
(para dançar a dois)
Transforma-se o amador na cousa amada
Por força de tanto nela pensar
E depois de um tempo tem-na incrustada
Na face, no corpo, no jeito torto de olhar.
Noite
(para dançar ao vento)
Em princípio,
criou-se o céu
e nele alguém pendurou o sol
marcando os dias.
Então, perguntaram ao vento
— Qual o segredo do sopro?
Ele sussurrou: o silêncio.
Depois, perguntaram ao tempo
— Qual o degredo do alento?
E ele respondeu: o voo.
Valsa sem par
(para dançar em círculos)
Um cheiro novo fecha em cripta suas vontades:
suportar a passagem dos dias é um deletério.
Nas cores das notas de uma sinfonia
você anda perdido no engano das vozes
das moças de telemarketing
como um elefante sem tromba.
Enterramos ainda ontem nossos mortos
já velhos, já cansados de tanta vida
na manhã aberta de uma terça-feira
havia pétalas no sorriso deles
bem escondidas sob seus lábios colados.
Então você enunciou:
………..………..………..………..…— eu sou sua lótus!
mas ela não ouviu
as orelhas entupidas de cera e algodão
e nas suas mãos cruzadas um seco não.
Ora, amigo, talvez isso um dia passe,
apesar de corrermos na areia
ao redor do próprio passo
apesar do adeus das ondas
apagando nosso rastro.