Literatura

O Synthwave como expressão de ritornelo

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Imagem: Ghost in the Shell (1995)

[/vc_column_text][vc_column_text]Às vezes a Literatura bota um pezinho no Ruído, às vezes vice-versa: Tarik Alexandre narra o seu envolvimento com o cyberpunk e com a música eletrônica, partindo de memórias que vêm desde as explosões mecânicas de um carro consertado pelo seu pai.


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“Ora, a batucada repetitiva sai de todo lugar: da música erudita, da máquina de lavar, da música eletrônica, do carro.”

[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Meu pai era aficionado em consertar coisas. Tinha uma habilidade absolutamente fantástica para montar e desmontar toda a ordem de instrumentos e maquinário que a ordem da vida doméstica pode determinar: desde o chuveiro do banheiro (e com isso incluía resolver a fiação elétrica da casa) a consertar o motor do carro. O manejo dos objetos e a capacidade de consertar ao “novo em folha” eram tão impressionantes que, como menino, passava horas a apenas observar como certos procedimentos alcançavam a capacidade quase que mágica de refazer, reconstruir um objeto que não mais funcionava em algo com pleno trabalho.  O que certamente me chamava a atenção era a capacidade de descobrir, assim como um médico que, ao te olhar, adivinha a doença que te acomete, os sintomas de um carro com problemas.  A um simples estalar do motor, o progredir das explosões nos cilindros, meu pai compreendia com uma precisão absolutamente fantástica os possíveis problemas que aquele motor possuía e conseguia evitar a compra de um veículo em mau estado, ou até o mecânico que gostaria de entregar em nossas mãos uma máquina para o reparo eterno e ineficiente. Até hoje ele faz desse tipo de feitiço.

 

Contudo, a grande sutileza de meu pai reside numa compreensão aguda do funcionamento cíclico de um motor a partir suas fases, seus desenvolvimentos e seus desempenhos conforme a temperatura e pressão assim como os desgastes, as anomalias, os processos de degeneração de uma máquina a partir da escuta. Todo este processo tinha a dependência da escuta. Aliás, a regulagem, a compreensão de um motor em plena saúde é dada a partir da escuta de tal forma que os batimentos, os ciclos das válvulas, pistões e toda a movimentação das engrenagens possui um som específico, repetitivo e sistemático. Não à toa o via aproximar sua cabeça próximo ao motor por cima do cabeçote a notar, passo a passo, cada peça e cada explosão para observar se tudo corria dentro da sistemática dos conformes: como a música deve ser para que pudéssemos viajar, entregar mercadoria ou nos levar para passear nos fins de semana. Havia uma dependência muito grande dessa perfomance precisa, realizada com certa precisão para que não ficássemos na estrada.

 

Todo sistema de repetição, de alguma forma, aos poucos alcança um desgaste: uma anomalia. Como se de repente algo se modificasse, tal como um parafuso que se afrouxa, uma junta que se deixa verter. Entretanto, apesar do exemplo degenerativo, há um estado do motor que o seu melhor estado é a frouxidão ideal em que os parafusos e as juntas estão de tal modo que a pressão é perfeita para o melhor desempenho: nem muito apertado, nem muito frouxo. Toda retífica passa por esse tipo de processo até que o motor se “amacie”. Pois bem, apesar da minha fascinação, não era (nunca fui), grande entendedor da melodia maravilhosa e sinistra que um carro pode ter.

 

Por muito tempo o assunto passou bastante despercebido por mim. Entretanto, depois de adulto, entre o tédio e o ócio, tive a oportunidade de conhecer em pesquisas na internet um pouco do estilo cyberpunk no começo de 2015. Estilo predominante durante os anos 1980 e 1990, o cyberpunk havia chegado até mim a partir dos longa metragens de Akira (1988) e Ghost in The Shell (1995). Havia ficado estupefato com a grandiosidade gráfica e a incrível interação maquínica dada nos desenhos: Kaneda tinha uma gangue de motos futuristas repleta de elementos completamente mecânicos, assim como Major e Batou eram ciborgues providos de alma. Máquinas. Imediatamente o interesse se despertou em mim de modo impressionante, sobretudo em função de outra coincidência.

 

É do meu feitio me refugiar em casa e ir até o computador para ouvir uma série de músicas enfurnado com o fone de ouvido. Pratico desde a adolescência. Gostava de me debruçar a ouvir músicas diferentes no Youtube. Já é de praxe essa atitude desde o método arcaico da família que se baseava na caça repentina pelas estações de rádio das músicas prediletas: com o K7 rebobinado e pronto para gravar, aguardava-se a música e o botão record e play apertados juntos gravavam as músicas que depois iríamos ouvir até a gastura. Neste período, após a apresentação quase que messiânica feita por um amigo meu dos jogos indies, tive o viciante divertimento com a verve de Hotline Miami (2012). Jogo simples e cativante em que o jogador é um agente encoberto por máscaras de animais, enviado por mensagens da secretária eletrônica para assassinar mafiosos russos na cidade de Miami em 1989. O maior divertimento não se resume tanto à jogabilidade veloz e ágil entre teclado e mouse ou ainda a violência explícita que o jogo te condiciona, mas sim o frenesi causado pela enorme quantidade de música eletrônica que compõe a trilha sonora. A trilha de Hotline Miami se constitui sobejamente de música eletrônica ultracontemporânea, a saber, synthwave: estilo musical repleto de referências e utilizações de músicas dos anos 80 que remasterizam noções futuristas de uma realidade ciborgue e repleta de alta tecnologia. Talvez entre o Robocop (1987) e o De Volta para o Futuro (1985), o estilo retoma uma série de elementos de percussão e baixo utilizados nas músicas do período e que corroboram como uma releitura desse período de glamour futurista.[/vc_column_text][vc_gallery type=”image_grid” images=”6650″ img_size=”full”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]

Sempre tive grande predileção pela música eletrônica. Ouvia desde sempre bandas consagradas como Kraftwerk, Aphex Twin, The Chemical Brothers, Fatboy Slim, Daft Punk, etc. O conhecimento de bandas como Lazerhawk, Timecop1983, Tommy’86, Scattle, Megadrive e Com Truise foram de extrema importância para a compreensão mais aguçada do movimento cyberpunk, pois se fazia evidente que a música eletrônica buscava adentrar e permear a atmosfera futurista através de uma música digitalizada e fora dos parâmetros acústicos tradicionais. Essa imersão dada pelo synthwave dá o prospecto de uma realidade distópica e robótica, do qual a vida orgânica e a vida maquínica se harmonizam de forma simbiótica, tal como em Neuromancer (1984) de William Gibson. Trata-se de uma música composta de distorção, elementos de intromissão e entrecruzamento de sons e pequenas partículas sintetizadas, ora em momentos de harmonização, ora de dissonância ao fundo de uma bateria eletrônica. Sendo assim, tal comunhão se dá pelo seguinte aspecto: repetição. Máquinas que repetem procedimentos humanos tal como motores, melodiosamente programados para uma execução de forma a produzir movimento, pensamento, unidos de suas anomalias, dificuldades e alterações de desempenho, assim como dos carros que meu pai compreendia o perfeito funcionamento.  Entretanto, meu pai considerava tudo isso uma “batucada que sai do teu fone de ouvido”.[/vc_column_text][vc_gallery type=”image_grid” images=”6649″ img_size=”full”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Há na música eletrônica o constante elemento de repetição: uma perpétua retomada do beat, do sample que conduzem a produção de uma linha musical sofisticada. A retomada da polirritmia e da sintetização realizadas por Stockhausen e Pierre Boulez a partir de Messiaen já são demonstrativos de que o uso experimental da música a partir da repetição e sintetização dos sons a fim de obter uma experiência musical nova. É a partir dessa experiência de repetição que bandas como Kraftwerk se consolidam em clássicos como Trans-Europa Express (1977). No fim, o aspecto parecia de que no mundo há um processo contínuo de repetição, do qual muito bem cabe a noção de ritornelo. O ritornelo é, em linhas gerais, é a repetição dada por um refrão, como “versos de uma canção que são repetidos esporadicamente ao fim de cada estrofe” (OXFORD, p.707). A saber, a noção de repetição dada pelo ritornelo, ao mesmo tempo que retoma algum proceder que já havia sido realizado dentro da música, produz igualmente uma nova tonalidade musical, pois sua repetição orna, cria vínculos com a totalidade da melodia.  Ora, a batucada repetitiva sai de todo lugar: da música erudita, da máquina de lavar, da música eletrônica, do carro. Gilles Deleuze em seu livro Mil Platôs nos dá uma interessante proposta a respeito do ritornelo:

 

É uma musiquinha, uma fórmula melódica que se propõe ao reconhecimento, e permanecerá como base ou solo da polifonia (cantus firmus). O nomos como lei costumeira e não escrita é inseparável de uma distribuição de espaço, de uma distribuição no espaço, sendo assim um ethos, mas o ethos é também a Morada. (DELEUZE, pp. 102-103)

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Sendo assim, parece-nos, enfim, que a música eletrônica introduz dentro de si uma capacidade de agregar repetições de tal forma compatíveis com um aspecto de ordenação musical. É interessante que Claudio Ulpiano em sua aula Silício e música eletrônica: o século do finito ilimitado (22/09/1994), compare a música eletrônica como a produção de um conhecimento dado nos sistemas de silício. Ulpiano introduz a hipótese de que a vida tal como concebemos se forma a partir das combinações carbônicas na atmosfera, de forma que há a união de átomos de hélio, por sua vez, se tornando carbono. Através das sucessivas combinações carbônicas, estas longas cadeias carbônicas teriam formado a vida orgânica tal como a conhecemos. Esta vida orgânica, uma vez estabelecida, é capaz de entrar em relação com o universo material que a rodeia e, nos processos de relação, estabelecer modificações e transformações materiais, como a música, edificações, etc. Uma vez concebida a noção de que a vida orgânica se fundamenta primordialmente a partir de relações carbônicas, isto é, a mesma música que se apropria de outros materiais para produção de melodias, se vê agora num momento em que cria os sistemas de silício (computadores, sintetizadores, mesas de som).  Estes sistemas possuem a característica de operação melodiosa, reproduzindo a sonoridade de uma série de instrumentos (o sintetizador é excelente paradigma nesse sentido) e operando a melodia de forma completamente ausente de elementos acústicos. Logo, a técnica de reprodução musical realizada de maneira orgânica, isto é, a reprodução feita por um ser humano que maneja o instrumento musical que se vale da capacidade física e motora são destituídas em prol de uma nova constatação de que estímulos elétricos recriam uma atmosfera musical e ilimitada: são infinitas as combinações dadas pela música sintetizada. Seria a possibilidade de conceber a construção da música por máquinas como sistemas de repetição que produzem uma diferença, uma anomalia melodiosa de tal forma que poderíamos conceber que o ritornelo maquínico traz a diferença como uma vivência, pensamento. É digno de comparativo a famosa cena da Major em Ghost in the Shell flutuando sobre a água, a flutuar tal como um ser humano, e compreender a busca pela pronfudidade e finalidade da vida, por ser uma máquina capaz de investigar o sentido da existência para além da repetição. O cyberpunk como um extravasamento da vida maquínica na medida em que pudéssemos compará-lo com a produção de um sistema de silício que vive de forma independente aos processos carbônicos, a saber, diante de uma perpetuidade cíclica.

 

As batucadas que meu pai tanto reclamava e que, por fim, achava uma desperdício auricular, corroboravam com sua mágica de consertos, de percepções da mecânica. Meu pai era um ouvinte de ritornelos, de inúmeros aspectos, de musicalidades obscuras. Um bom ouvinte de música eletrônica. Um bom pai.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]



 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995- . n.v., il. (TRANS). Inclui bibliografia. ISBN 8585490497 (broch.).

ULPIANO, Claudio. Silício e música eletrônica: o século do finito ilimitado. Aula ministrada em 22/03/1994. Disponível em https://acervoclaudioulpiano.com/2011/09/29/silicio-e-musica-eletronica-o-seculo-do-finito-ilimitado/, último acesso em 07/03/2018

 

 

ÁLBUNS SUGERIDOS

Aphex Twin – Orphans:

Com Truise – Iteration:

Daft Punk – Discovery:

Fatboy Slim –  You’ve Come a Long Way, Baby:

Kraftwerk – Trans-Europa Express: https://www.youtube.com/watch?v=i7i83yoQSo0

Lazerhawk –  Visitors:

Megadrive – 198XAD:

The Chemical Brothers – Dig Your Own Hole:

Timecop1983 – Journeys:

Tommy’86 – Frequency Modulations:

https://www.youtube.com/watch?v=-T3sBVkw4F4[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Tarik Alexandre
Tarik Alexandre, 26 anos. Nascido em Maceió (AL), reside na Grande Curitiba (PR). Mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com ênfase no estudo da melancolia a partir da teoria literária e filosofia na obra de Marcel Proust. Possui especialização em História da Arte e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Atualmente é graduando em Psicologia pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP-PR). É editor-chefe da editora independente Laboralivros e da revista virtual TxTMagazine. Entre as experiências profissionais participou do Programa Curitiba Lê, programa de incentivo a leitura da literatura e das artes promovido pela Fundação Cultural de Curitiba e o Instituto de Cultura e Arte de Curitiba bem como da prática docente. É grande aficcionado pela literatura do começo do século XX, entusiasta de cinema e temas retro-futuristas como vaporwave, synthwave, futurefunk, etc. Possui grande interesse em artes visuais, videogames, literatura, filosofia e cinema.

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