Literatura

Fragmentos em Technicolor (parte 01 de 02)

capa: detalhe de Eric Fischl – Untitled from Floating Islands – 1985 (metade esquerda)


 

Se chamava *** ou ***. Havendo dois nomes possíveis para ela, seus conhecidos adotaram ambos: não havendo apenas um ou outro, chamavam-na *** ou ***.
Nascera de um sonho de angústia onde viam-se danças transcendentais de tribos arcaicas. Todas as mulheres dali rodavam no ritmo do corpo, seus rostos eram sagrados e os olhos negros como o fundo do abismo. Todas elas fixavam os olhos nos teus olhos, o visitante, a primeira pessoa do sonhador. O único homem, fora do círculo, levava as mãos à cabeça em desespero. escuro. ai de mim! ai de mim! nezcassé! Ao esticar as mãos para a frente, vemos a partir dos seus olhos e da sua visão o bico da águia que o ataca, ele está na beira do abismo dos olhos daquelas mulheres e a ave o empurra para a beira. Cai. As mulheres, uma a uma, deitam-se com as cabeças apontando para fora do círculo, algumas usam tapa-olho de cor marrom, feitos de pele de lobo, e outras simplesmente não possuem mais olhos. ai de mim! Quando a luz do fogo baixa, ouve-se o crepitar de uma espuma que cresce a cada passo do índio navajo que empunha o trovão em sua mão direita ao lado da roda. A eternidade que dura o tempo do uivo do lobo se concentra na espuma que cresce e toma forma feminina, uma montanha de esperma que funde-se em olhos de jade.
Ela acorda.

Havia uma goteira em seu quarto.
No escuro, levantou-se para o café e quase não piscava. O espelho do corredor a refletia de camisola larga que cheirava demasiadamente humana, e no ritmo de procissão e récita, arrastando as pantufas, os ombros e a memória, tacou o xale azul por cima do ombro, encarou-se no espelho, o melhor mentiroso que já conheceu, e entoou, levantando os olhos ao mofo do teto e abençoando os espíritos gordos ao seu redor tal como a imaculada conceição dos veneráveis:
— Quam pulchra es, amica mea, quam pulchra es.
Sentou-se na beira da escada e encarou o ponto fixo mais abaixo em meio ao caracol. Gritou: Ahoy! Eia! Enquanto gritava, esticava os pezinhos 36 para a frente. Veio o gato. Giraram e giraram juntos, percorreram as paredes labirínticas da casa, viram paisagens pelas janelas, pessoas nas paredes, traços de lápis mal apontados em interruptores amarelos e inúteis. Ela pensava, sou eu? sou eu? num pensamento involuntário sonolítico, e ao chegarem na cozinha disse ao gato:
— O diabo está nessa porta.
Bebia. Fumava. Eram 6h20 da manhã.
Ela acorda.

***

Em frente à janela, observa o confuso movimento de vidas, de consumo e de palavras jogadas ao vento. Telas e mais telas que rolam e mais rolam conteúdos descartáveis e sentimentos superficiais. Hesita. Por um instante não quer entrar. Hesita. Cafés superfaturados e bolinhos industriais de nomes extravagantes, rostos conhecidos. Hesita. Cruza os braços e se deixa levar pelo momento. Tira um cigarro do bolso, acende a chama longe do tabaco enquanto seus olhos se perdem no fluxo contínuo de ideias e movimentos, chupa o cigarro que não acende, a chama está longe. Se dá conta disso. Idiota. Fuma e seu ser encara o seu mais profundo mistério interior. O bonitinho sentado no lado de dentro a encara. Comenta com o rapaz ao lado, riem, ele se encoraja. Ela é um totem em frente à vitrine. O corpo ereto e o cigarro aceso, os olhos de vidro. Sua alma virou-se totalmente para dentro. Ourselves, oursouls alone.

***

E tivéssemos mundo o suficiente e tempo! E não ser eu todos e toda a parte! ouvi partes da história do D. esses dias e copiei tudo no meu bloco. Acho que vou acabar usando no texto, não sei, tem que ver se alguma coisa presta. Não, ele nem vai lembrar. aceito uma musa nesse meu colinho, pode ser você Conceição. Por que sempre o teu rosto com essas nuvens? e que fazer? Você acha que o mal é filho do intelecto? oi? tu enim nosti populum istum, quod pronus sit ad malum. Ehh…. Eia! D., pega ali pra mim um pano e um muffin? Muffin… Que mal seria senão o oposto ao natural, da natureza, e no entanto tenha vindo dela. Como poderia ser o mal pendurado em forma de fruto? Sim, o bem também. E antes? Natural, acho que abstêmio do mal, por consequência também do bem, ambos então filhos do intelecto, uma motriz inatural que força relações interpessoais artificiais. Pega aqui, cuidado. et eritis sicus Deus scientes bonum et malum. Tal qual, e como pode ser o mal algo divino? Divino, sabedor. Sacer esto? Sacer. Dinheiro? Se pensar nisso… não é o dinheiro a raiz de todo o mal? Não, ele é apenas o símbolo. Ou o fruto? Era tipo uma maçã mesmo? Eu sempre imaginei um caqui mole. Mamão? Mamona, mamão…
… um momento.
Na esquina oposta ao café, uma mulher gorda e suja amamenta um bebê. Estão cobertos por trapos, panos e colchas tão sujos quanto ela. Os seios da mulher são gigantescos, parecem conter todo o leite do mundo. A criança, nervosa, chupa insaciável e arregala os olhos vermelhos para a mãe. Chupa como um demônio. Ela, uma obesa e mendiga pietà vislumbra o nada com seus barítonos olhos amarelos. O pai e marido se humilha entre os carros, usando os mesmos barítonos olhos amarelos para despertar uma compaixão inalcançável. Durante os quinze minutos em que observamos essa cena ele não consegue nada, nem um centavo. A criança-demônio chupa furiosamente. No hablaré del final. A mulher parece morta. Seus olhos são amarelos e mortos. O homem se arrasta pelos corredores. Ela, em intervalos lugubremente regulares, levanta a alça da blusinha engordurada prestes a estourar sob aqueles peitos profanos. O demônio vermelho chupa. Seus olhos são nada. Por ninguna razón. Três cães surgem da esquina, um grupo ominoso, um de cada cor. Cheiram o bebê. A mulher gorda, sem mover os olhos mortos, mexe num pacote espremido entre ela e a cadeira. Os cães se agitam, latem, mordem-se entre si. Estão ansiosos, os cães. Quase sem forças, ela atira no meio da rua um biscoito velho em formato de estrela. Videntes autem stellam gavisi sunt gaudio magno valde. O biscoito se despedaça em pleno ar e espirra entre os carros parados. Os motoristas ignoram a ação. O que sobra da estrela é devorado pelos cães sarnentos em segundos. Cagam. Partem. O homem se arrasta. Se humilha. Nada se sabe sobre ele, que é parte de todos. A mulher suspira e deixa cair novamente os ombros redondos e curvados, englobando aquela pequeníssima sanguessuga, que chupa. O homem se afunda entre os carros como em areia movediça, mas sem levantar os braços. Some. A mulher, ainda sem nenhuma vida, move os olhos de um jeito que parece despropositado e perdido, encontrando aos poucos seu caminho, notando aos poucos algo para olhar. Fixa seus olhos exatamente nos olhos de P.L., que via a cena pela janela.
Estremece. Tendo abandonado há algum tempo a conversa ao seu lado, ela decide se levantar e ir até a mulher. Ignora os comentários dos outros. Mirada ausente, en el borde. Chega ofegante, nervosa, até a mulher da esquina, e sem nenhuma moeda nos bolsos. Não sabe o que fazer.
No hablaré del final.
A mulher chama P.L. pelo seu nome. sucsucsucsucsucsucsuc…
A silhueta dos três seres se recorta contra as muralhas de pedra da urbe. O encontro dura muito tempo. Nunca se revelou o que foi dito.

***

Lasse senta-se encarando o jardim dos fundos do edifício. Lasse pensa em si mesmo como Lasse, e culpa-se. Abre, como Ídmon quebrando o pescoço de uma galinha durante o sacrifício, uma garrafa de cerveja, intentando apaziguar o deus de seu peito. Bebe, em seguida atira uns respingos ao chão para o santo. Mas mente, porque pensa na esposa, e tenta evitar pensar na filha, que não está na idade da cerveja, mas falha. Mirada ausente. Lasse crava os olhos, trava o rosto, para o mundo. Param também os sons e o tato, e o dia torna-se dentro. Pensa na Verdade como cordeiro em hecatombe em honra a um deus que não existe, e decide erguer a ele um altar. Pensa nisso em suas próprias palavras, mais verdadeiras que as vãs que uso. Lasse se assume como Lasse e se culpa. Despeja o último terço da cerveja sobre Arcádia, a casinha de Argos que construiu há dez anos, e murmura coisas que poderiam ser hinos cantados por Orfeu, mas nunca saberemos. Promete ao cão uma coxa da galinha da sopa da noite. Eis ali uma vida livre da triste e grave cobiça. Tudo o que há, eu vejo.

***

— Há quanto tempo não vês o mar?
— Há muito.
— Não estiveste pelo litoral há pouco?
— Sim, e olhei-o, mas não o vi.
— Como a si mesma.
— Como a mim mesma. Como numa casa de paredes de vidro, onde se vê apenas pra fora. E os de fora veem o que não vês.
— Que sentes quando vês o mar?
— O infinito. O infinito ao alcance.
— E intocável.
— Intocável, ignoto. Pra que saber das estrelas se já temos aqui adiante outro profundo vácuo do infinito?
— Profanar as estrelas ao entendê-las.
— Tal como profanar o que sentimos ao entendê-lo.
— Sabes que sentes?
— Sei.
— Sabes o que sentes?
— Desconfio, apenas.
— …
— Hm? — Ela para durante o movimento de pendurar a bolsa no ombro e o olha, com a boca entreaberta. Ele demora para enunciar a pergunta.
— Já dançaste ao som da desesperança?
— Todos os dias. Embora não esteja bem segura se é durante o despertar ou ao adormecer.
— Não sei se sabes de que falo.
— Sei mais do que tu.
— De que sei eu, afinal de contas… Segure meu copo um momento, beba se quiser. Não sei onde botei…
— Que quer?
— Aqui. Só um pouco.
— Não sabia que fumava, D.
— …
— Dançaste tu ao som da insignificância?
— Eu falava da desesperança.
— Dará no mesmo?
Tenho pensado nisto muitas vezes.
— Espera. Já viste esse prédio? Já reparaste nele? Olhe pra cima, mais ao alto. Quarto andar, a última sacada do lado esquerdo. (muito tempo ficaram ali olhando, sem que nada fosse dito. Deram dois passos à borda do passeio para saírem da rota dos outros. Baltasar, um dos cães, passa com uma estrela na boca logo debaixo deles, mas não é notado.)

***

Observa uma stripper loira de olhos aguados que finge ter orgasmos na vitrine de um peep-show enquanto ouve Dylan cantar Lay Lady Lay em seus headphones. Não sabe com certeza como adjetivar seus olhos, se ‘aguados’, se ‘literários’, ou um neologismo ainda não capturado que abarque ambos. Ashley – Miss Ashley – ainda tinha orvalhos embaçando as janelas de sua alma. Ele não tinha o mínimo de moedas em seu bolso para uma gorjeta. Sentiu ciúmes dos que tinham.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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