Literatura

O mais, o mais maravilhoso fio

imagem: Kansuke Yamamoto – S/Título (1930)


A primeira cena, a Escritora pensou, podia ser a de Délia no balcão, olhando para o reflexo de si mesma na bandeja. Pronuncia devagar o nome das três colegas de trabalho, na cintura o avental de todos os dias, imagina quem seria se servisse mais milkshakes do que café com leite. Depois a Escritora mudou de estratégia, pensou que seria mais curioso começar com Paulo na frente do espelho, tingindo seu cabelo de verde pra preto de volta. Começar pelo meio, com uma mudança de identidade, revelar uma personagem mais sóbria, mais complexa. Escolhesse o que fosse, as duas cenas estavam marcadas pela transformação, um Paulo moreno ou uma Délia agrupando as colegas pra anunciar sua demissão. Estou indo embora, Mas no meio do expediente, Sim no meio da tarde descobri que tenho uma doença rara.

Pensou que os dois personagens poderiam compartilhar essa mesma doença rara, a Escritora teria que pesquisar um nome pra essa nova condição ou investir numa que já existe. Délia, a garçonete, e Paulo, um boneco Ken, compartilhariam essa doença rara que vai deixando o cérebro cada vez mais lento, introspectivo, encharcado por um interesse profundo em si mesmo. Paulo e Délia, doentes como estão, passam muitos minutos por dia olhando o próprio reflexo em superfícies diversas. Paulo queria ter seu cabelo escuro de volta, uma menina, sua dona, tinha pintado sua cabeça de verde porque agora os garotos de K-pop estavam com tudo. O que Paulo mais queria além do cabelo preto de volta era comer o cu da sua amante, mas ele não tinha nem genitália nem imaginação, era tão liso lá embaixo quanto era em cima, sem genitália e sem cabelo. Seu cabelo, na verdade, era só uma mancha de tinta espalhada pela cabeça. A Escritora não sabe nada de Délia além de que a garçonete queria pedir demissão. Délia talvez quisesse começar a escrever contos.

O primeiro conto de Délia começaria com um homem recebendo uma multa. Uma multa que corresponde a um lugar onde ele esteve, num horário em que ele esteve, mas referente a um carro que não é o dele. A multa diz que esse homem era no momento da infração o condutor de um outro carro, um Santana branco. O homem desconfia de perseguição política. Estão armando pra ele. Decide, em vez de contestar a multa, refazer o trecho que percorreu no horário da infração. Tinha ido a uma cidade do interior verificar a situação eleitoral, não sabia muito bem por que, ele seguia ordens embora elas escapassem do seu entendimento. Mesmo assim não pensou em levar a situação para o líder do partido. No meio do trajeto, começou a sentir muito sono, mal conseguia manter uma distância segura do próximo carro e a pessoa que estava no assento do carona achou que o homem fazia de propósito, piadista que era. Mas a verdade é que o homem estava mesmo com as pálpebras fechando por causa de um sono incontrolável. Délia parou neste ponto da história, não sabia como continuar dali.

A amante de Paulo é uma mulher adulta e humana. Talvez o mais inteligente a se fazer, pensou a Escritora, fosse cruzar a história de Délia e Paulo pra além da doença. Délia e Paulo poderiam ser amantes. Délia, uma garçonete de meia idade que quer escrever contos, e Paulo, um boneco Ken sem pelos. Délia vai escrever apenas thrillers com perseguições políticas ou tem outros interesses? Paulo não tem mechas para separar, só precisa erguer a mão e começar a espalhar a tinta por toda a extensão do couro cabeludo. Mas não faz isso porque está mergulhado no próprio reflexo como se todas as coisas que quisesse com tanta força antes, principalmente a libertação, estivesse ao seu alcance ali e agora: ele tinha se transformado naquilo que se contempla antes de contemplar. Isso é o bastante para estragar todos os planos de mudança que a Escritora tinha em mente. Délia, parada no balcão, não enxerga nada pra além de seu contorno retorcido na bandeja, uma massa ondulante e infinita que brilha conforme ela se move. Mas se move pouco. Pedir demissão não é mais um desejo ardente em Délia porque agora ela não mais entende o que é simplesmente sair andando e mesmo que se esforçasse também não conseguiria se lembrar que existem três moças que trabalham com ela e que estão por ai atarefadas servindo café com leite e não milkshakes. As três moças da lanchonete têm nomes mas isso não importa a ninguém.

 

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

    You may also like

    Leave a reply

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    More in Literatura