Ruído

Meia-noite

imagem: still do filme Sombras da Vida (A Ghost Story, 2017), de David Lowery


 

Para N.K., minha amiga,
e para minha mãe, A.L., que também é minha amiga

 

I. Sono

Era sábado e mais uma vez acordo sem esperanças de que o mundo se modifique. Era sábado e já era tarde quando me levantei. Desde que ele se foi passei por uma mudança brusca de comportamento. Não tenho mais vontade de me levantar cedo, deixei de fazer parte daquele grupo de pessoas que Deus ajuda, daquele grupo de pessoas que corresponde ao ditado: “Deus ajuda quem cedo madruga”.

Sem esperanças, naquele sábado, acordo ao toque do meu celular que vibra em consonância com uma musiquinha estridente. Olho para o meu telefone com os olhos ainda embaçados e percebo a mensagem de uma amiga. Ela disse:

“Ele morreu. Era meia-noite e ele morreu…”

Sem mais nem menos senti a ausência que ela sentia. Sentada na cama, fui tomada por uma sensação bastante conhecida. Senti a desilusão que provavelmente ela sentia.

“A vida é uma mentira, uma máscara para a morte. Não é possível que tudo acabe assim. Não é possível que ele tenha desaparecido. Não é possível… Talvez ele esteja perdido em outra dimensão ou talvez não, talvez isto seja tudo, só isto mesmo: uma vida miserável feita para a morte.”

A coincidência entre a minha desilusão e a dela (a da minha amiga) é mais forte do que vocês podem imaginar. Ele (o meu ele) também morreu à meia-noite. No meio da noite que se faz outro dia.


II. Vigília

 

Decido, então, me levantar. Olho em volta e não enxergo nada. Escancaro as cortinas e não vejo o sol. Penso: “que horas são? Imaginei que fossem onze e meia da manhã… por que o sol não nasceu?” Olho para o meu celular e vejo “11:30”. Começo a duvidar do tempo e começo a duvidar do meu celular que, pelo visto, parou nas 11:30.

Estranhando o tempo, as horas e a tecnologia de última geração deste pequeno aparelho comunicativo, passo a procurar por um antigo relógio de pulso. Digo para mim mesma que o relógio deve estar guardado em alguma parte desta casa em ruínas, desta casa desestruturada pela melancolia que constantemente nega a ausência do objeto ausente.

Escuto um “tic-tac” bem fraquinho: tic—tac…tic—tac…tic—tac…tic—tac. Em vista do relógio perdido, começo a jogar em cima da cama todas as roupas que estavam abarrotadas no armário.

Nesse frenético movimento de busca, deparo-me com uma foto amarelada: lá estavam ele e ela. Os dois, jovens, cheios de vida e cheios de amor. Tão bonitos. Tão cheios de esperanças. E, de repente, o fim. Quanto mais penso no “fim”, mais acelerado e agudo se torna o ruído do velho relógio de pulso: tic-tac.tic-tac.tic-tac.Tic-Tac.Tic-Tac.TIc-TAc.TIc-TAc.TIC-TAC.TIC-TAC.TIC-TAC.TICTACTICTACTICTACTICTAC…

Ansiosa com esta pressão do tempo sobre minhas costas, derrubo uma gota de suor que cai na foto amarelada. Com a foto na mão esquerda, já um pouco amassada pela força de meus dedos angustiados, continuo a procurar pelo maldito relógio.

*

“Achei!”

Lá estava ele, o relógio de pulso, relógio que um dia foi da minha mãe. Ele era lindo, parecia um mapa astral, continha entre seus ponteiros o sol e a lua, o meio-dia e a meia-noite. Pelos meus cálculos, eu havia acordado perto do meio-dia, mas não pude confirmar a olho nu, já que o sol decidira não nascer naquela manhã. Imagino que ele estivesse muito cansado e desiludido para sair da cama e, por isso, deixou a noite reinar por mais tempo. O relógio de pulso, com sua mecânica arcaica, seria suficiente para comprovar minha hipótese.

Olhei para o relógio e o ponteiro estava no sol. Então, sim, eu não estava louca. Já era meio-dia. Segurei o relógio e a foto amarelada em uma única mão (ainda na mão esquerda), enquanto passava a outra (a mão direita) sobre minha testa na tentativa de lembrar da resposta para a seguinte questão: “E agora? Como é que se continua a viver?”

A mão na testa era reconfortante e denotava uma atitude reflexiva que há tempos eu não tinha. Ainda sem me recordar da solução para meu problema, olhei novamente para o relógio, que rangia seus ponteiros fazendo um TIC-TAC desesperado, e pensei: “o tempo resiste à perda”. Mais uma vez, olhei bem para a foto e pensei: “acho que direi isto à minha amiga”.

Levei a mão que estava junto à testa em direção ao celular. A outra mão ainda carregava a irrefutável memória de meu passado trágico e a urgência do tempo presente. Na escuridão do quarto e em meio às roupas sujas e velhas que ali jaziam, sentei-me sobre a cama. Ao rever a mensagem de minha amiga, escutei o grito e o silêncio que ao mesmo tempo compunham sua escrita:

“Ele morreu. Era meia-noite e ele morreu…”

Os três pontos da segunda frase significam o longo e profundo suspiro que ela emitira logo após assimilar a morte dele. Este suspiro, que antecede o silêncio, só foi proferido após um longo e agudo grito que manifestava a negação subjacente à afirmação da ausência dele na vida dela: “Não! Não! Não! Ele não morreu! Não!” Com efeito, isto não fica evidente na mensagem de minha amiga, mas como já tenho certa experiência no assunto sei que a negação implicitamente acompanha a caótica assimilação do “Ele morreu.”


III. Desilusão

 

Sabemos que após o estrondo de uma forte desilusão, só nos resta a ruína e é justamente sobre ela que precisamos continuar a viver para que possamos mascarar a morte que se esconde por detrás de nossos olhos petrificados pela dor.

O grito de quem anuncia a morte é aterrorizante. Mas, mais aterrorizante do que isto é o silêncio da voz que desaparece por natureza ou por violência, o silêncio da voz que nunca mais escutaremos.

Tomada por essa tristeza que se mistura com rancor, finalmente respondi a mensagem de minha amiga. Rompi com meu voto de silêncio e disse escrevendo: “só o tempo resiste à perda. Você verá com seus próprios olhos, com os mesmos olhos que viram a morte e que agora escutam o silêncio estático das fotos que resgatam uma memória perdida.”

Sentada sobre a cama, olhei mais uma vez para o relógio e para a foto que parecia ainda mais amarelada. Foi quando percebi que já era, pois, meia-noite.

Cassiana Stephan
Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o projeto de pesquisa intitulado “Filosofias do amor: sobre a relação entre espiritualidade, melancolia e ambivalência”. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/Brasil), na área de Ética e Política, com a tese intitulada “Amor pelo avesso: de Afrodite a Medusa. Estética da existência entre antigos e contemporâneos” laureada com o prêmio Filósofas de Destaque acadêmico 2020, outorgado pela Rede brasileira de Mulheres Filósofas em parceria com a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.

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