imagem: Urubu, por Larissa Schip
Neste mês, a R.Nott Magazine teve a honra de interrogar a pesquisadora e filósofa Cassiana Stephan a respeito do Cosmopolíticas, projeto global de intervenção intelectual e artística nascido durante a pandemia de 2020.
- Caríssima e querida Cassiana, obrigado pela presença. Começarei com uma pergunta simples e – espero que – gentil. Eu suponho que houve um determinado momento em que vocês, Cassiana Stephan, Lilas Bass, e os demais colaboradores do Cosmopolíticas, identificaram a necessidade de algum tipo de Ação e de Atuação dentro do contexto, usando as suas palavras, de “crise ético-política” no mundo contemporâneo. Essa ação se converteu no que veio a ser o Cosmopolíticas, tal como ele se apresenta hoje. Tendo esse contexto social e político em vista, antes de apresentar o projeto em si, peço que você me fale sobre Ética.
Falar sobre Ética – pergunta difícil, mas ainda assim gentil. Talvez seja possível afirmar que foi justamente a ética que deu ensejo ao Cosmopolíticas, ou seja, o nosso projeto é oriundo do entrecruzamento de diferentes atitudes éticas que, de modo geral, perspectivam a transformação de si e a intervenção circunstancial no mundo. Nesse sentido, eu diria que a atitude ética é um esforço criativo do si em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo.
Penso que tal esforço é ativado, em certa medida, pela profunda infelicidade que sentimos perante as misérias que corroem o mundo (misérias econômicas, políticas, morais, sanitárias, intelectuais, espirituais, sociais). O que quero dizer é que a nossa infelicidade pode ser considerada como um estímulo ético e que não devemos confundi-la com a insatisfação neoliberal. Não se trata disso, de forma alguma. O infeliz não cura sua infelicidade com doses homeopáticas (ou compulsivas, em alguns casos) de dinheiro, poder, fama e apatia social. Na verdade, parece-me que o infeliz jamais cura sua infelicidade e talvez seja por este motivo que o trabalho criativo atrelado à ética seja um trabalho incessante, que dura até o último minuto de nossas vidas. Mais precisamente, para falar de forma positiva, a busca pela felicidade, princípio ético que remonta à Antiguidade greco-romana, acompanha-nos até a morte.
O Cosmopolíticas é, portanto, um esforço ético que surge de uma grande infelicidade relativa aos nossos nichos de socialização, demasiado saturados por uma repetição acrítica de jogos narcísicos, autoritários e tirânicos. O nosso esforço ético repousa sobre a criação de uma rede de solidariedade que visa operar, manejar, manipular os diferentes conhecimentos que adquirimos no decorrer de nossas vidas – conhecimentos teóricos e práticos, eruditos e cotidianos – para fazer acontecer algo no mundo.
Ademais, vale ressaltar que no Cosmopolíticas não nos atemos – mas tampouco repudiamos – aos moldes institucionais que delimitam nossos vínculos sociais. Então, o Cosmopolíticas é um projeto híbrido ou ambivalente: ao mesmo tempo acadêmico e não acadêmico, institucional e não institucional, marginal e não marginal. A própria estética do nosso projeto resguarda em si esta ambivalência, a qual parece representar muito bem aquilo que quero dizer quando falo em “esforço criativo”.
O Cosmopolíticas também representa o modo pelo qual gostaríamos de atuar academicamente: não queremos que os círculos acadêmicos se fechem em si mesmos, isto é, enquanto acadêmicas e acadêmicos queremos dialogar com o mundo sem nenhum tipo de preciosismo intelectual.
Por fim, vale ressaltar que nossa iniciativa não é nem um pouco inovadora. Pelo contrário, ela é extremamente clichê e démodé, já que remonta a Maio de 68 (https://cosmopoliticas.com/2020/09/08/voce-quer-saber-o-que-pensa-o-urubu/) e à Antiguidade helenístico-romana de estoicos e cínicos (https://cosmopoliticas.com/este-espaco/).
- Como, onde, quando e por quê. Conte-nos primeiramente sobre a sua formação e trajetória acadêmica. Depois disso, conte sobre quais foram os fatores que levaram ao nascimento do projeto Cosmopolíticas, e como isso se organizou.
Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, onde também fiz meu mestrado e meu doutorado em Filosofia, mais especificamente, na área de Ética e Política. Atualmente, realizo minha pesquisa de pós-doutorado na UFPR e continuo a pensar a potência ético-política do amor, entrecruzando a Antiguidade e a contemporaneidade, mas também filosofia, história e literatura. O que mais posso dizer? Realizei doutorado sanduíche na Universidade de Lille e fui laureada com a primeira bolsa Michel Foucault, outorgada pelo Centro Michel Foucault em parceria com o Instituto Memórias da Edição Contemporânea (IMEC).
Foi na Abadia d’Ardennes, sede do IMEC, que tive a oportunidade de conhecer Lilas Bass. Acho que ali o Cosmopolíticas começou a nascer, ou seja, ele surge de nossa afinidade que não se justifica pelos limites cartográficos ou linguísticos, mas que depende da transgressão destas barreiras. Quanto à arquitetura “digital” do Cosmopolíticas, esta começou a ser construída no início da pandemia da Covid 19, em março de 2020. Para que o Cosmopolíticas se tornasse fisicamente possível, nós contamos com a ajuda de muitas pessoas, inclusive de algumas que já não estão mais no projeto.
Acho que nosso projeto, talvez como todo o projeto intelectual e artístico, surge de uma mistura de afetos: amor, saudades, tristeza, desilusão e, em alguma medida, esperança. Mas, essa esperança não diz respeito ao futuro e sim ao presente; dito de outro modo, o Cosmopolíticas desponta como a esperança de viver diferentemente o tempo presente e, assim, de enfrentar com um pouco mais de força a nossa condição atual.
- Vocês já realizaram dois ciclos de Conferências: ‘Revoltas’ e ‘Animalismos’, além de uma série de entrevistas. Como esses temas foram escolhidos e quais foram os grandes aprendizados tirados desses ciclos? Já existem outros previstos para o futuro?
Revoltas e Animalismos – temas escolhidos em virtude de nossa vontade de agir. No caso do primeiro ciclo, gostaríamos de pensar coletivamente em que medida o sentimento de revolta (um mix melancólico de amor e cólera) nos move em direção ao tempo presente, permitindo a nossa própria modificação e a modificação do contexto ético-político que nos envolve. No caso do segundo ciclo, trouxemos a urgente problemática do vínculo entre animais humanos e não-humanos porque entendemos que o aperfeiçoamento ético da nossa relação com o mundo depende da consideração de nossa própria animalidade, mas também da inclusão dos outros animais no escopo de nossas preocupações sociais. Com o Animalismos acho que tornamos clara a dimensão pós-humanista do Cosmopolíticas.
Também realizei três entrevistas com grandes e antigos amigos meus… A Andreia Porto e a Larissa Schip sempre estiveram presentes em minha vida de uma forma muito positiva e mais do que isso eu admiro demais o trabalho delas. Por admirá-las, decidi entrevistá-las. Já a entrevista com o Daniel Galantin marca a nossa reaproximação e a retomada de nossas alianças foucaultianas. Além disso, também admiro o trabalho do Daniel e acho que a maneira pela qual ele percebe a crise que tangencia a vida de pesquisadores no Brasil é bastante lúcida. Com efeito, os três são grandes colaboradores do Cosmopolíticas: a Lari é nossa artista oficial (amamos a estética da Lari, ela é a criadora do Urubu), a Andreia nos ajudou demais com as redes sociais (nos estimulou a criar e nos ensinou a usar o facebook, o instagram e o youtube) e o Daniel tem nos ajudado com as traduções e intermediações.
Com relação ao aprendizado, ainda não posso mesurá-lo. O Cosmopolíticas me traz aprendizados que ultrapassam a esfera da consciência. Ainda estou me apropriando de tudo o que experienciei até agora…, mas para mencionar ao menos um aprendizado, eu diria que o Cosmopolíticas nos mostra que conversas profundamente intelectuais não precisam ser enfadonhas e que ainda precisamos superar determinados formalismos acadêmicos, os quais muitas vezes são elitistas e excludentes.
E sim, existem outros ciclos previstos para o futuro. O próximo ciclo se chamará “Amores” e contará com a parceria da R.Nott Magazine.
O “Amores” acontecerá em agosto ou setembro (ainda precisamos definir o mês) e colocará em questão, de modo geral, as diferentes formas de amar por meio da problematização da relação entre o amor e a morte – a qual pode ser entendida como finitude, mas também como a transformação dos amantes que se amam no interstício do tempo presente, ou ainda, dos amantes que se amam e que, assim, se movimentam em direção ao tempo presente.
- Quem são as pessoas que movem o Cosmopolíticas, e quem são as pessoas que o Cosmopolíticas busca? E para que, afinal?
Hoje, o Cosmopolíticas conta com muitas colaboradoras e colaboradores – na verdade, conta com grandes amigas e amigos. Vou citar algumas das pessoas mais ativas no nosso projeto, aquelas que têm nos ajudado a pensá-lo e repensá-lo, mas também a organizá-lo e reorganizá-lo de acordo com nossos princípios éticos de criação – os quais prescrevem a igualdade e a fraternidade entre o real e a ficção. Estas pessoas são: Hugo Vedovato, Gabriel Castro, Nailane Koloski, Olivia Tersigni, Larissa Schip, Daniel Galantin, Luciane Boganika e Vinicius Ferreira Barth.
Objetivamente, buscamos conversar com jovens intelectuais, artistas e militantes. Queremos escutar pessoas consagradas, mas também queremos dar espaço àqueles e àquelas que, como nós, estão apenas no início do caminho intelectual e artístico. Tudo o que desejamos é dar visibilidade ao pensamento, à arte, às produções de nossas amigas, amigos e colegas – e vale ressaltar que dar visibilidade significa: queremos escutar e entender nossas amigas, amigos e colegas, queremos parar para escutá-los, silenciar-nos para ouvi-los. Com efeito, forjamos nossos encontros, contudo, também estamos abertos a encontros e reencontros espontâneos.
Ademais, se há um perfil no Cosmopolíticas, é o do anti-narciso. Não negamos o fato de que somos todos narcisistas, mas acreditamos que precisamos controlar nosso narcisismo, isto é, exercer mais poder sobre nós mesmos e menos poder sobre os outros. Percebemos que o universo acadêmico pode ser bastante narcisista, então tentamos fugir destas injunções para nos colocarmos na trilha das alianças demoníacas, medúsicas, subterrâneas. No fundo, o que quero dizer é que no Cosmopolíticas ninguém é melhor do que ninguém.
- Cassiana, repetirei para você a mesma pergunta que fiz para o prof. José Carlos Baracat Jr. na entrevista realizada na R.Nott em agosto de 2016 (acesse aqui): você acha que a leitura de literatura e filosofia antigas ainda seja capaz de causar incômodo ou algum sentimento de identificação nos leitores do nosso tempo, principalmente entre os mais jovens?
Acho que sim, embora eu perceba uma certa resistência dos jovens em relação à literatura e à filosofia antigas. Foucault, por exemplo, dialoga com a Antiguidade para pensar a ética e a política nos anos 80, ou seja, Sócrates, Platão, cínicos, estoicos e epicuristas são extremamente importantes para a ética foucaultiana; mesmo assim alguns pesquisadores de Foucault evitam se aproximar dos textos e fontes antigas manejadas por ele. Por outro lado, também percebo uma certa resistência de pesquisadores da Antiguidade em relação a autores como Foucault, Deleuze, Nietzsche e Sarah Kofman (para citar apenas alguns) que ressignificam, reatualizam, recontextualizam a Antiguidade no intuito de pensar e modificar o tempo presente. De todo modo, apesar destes maniqueísmos acadêmicos típicos do Historiador da Filosofia em seu sentido mais tradicional, acho que muitos jovens são influenciados pela literatura e pela filosofia antigas. O caráter ético-político do Cosmopolíticas tem grande influência do estoicismo e do cinismo no que tange à concepção de que o mundo é plural. Esta “convicção” filosófica do mundo plural, que nos parece ultra contemporânea, é mais antiga do poderíamos imaginar; ela nos remonta, como mostra Foucault, ao estoicismo e ao cinismo, mas lendo as pesquisas de Jean-Pierre Vernant e de Sarah Kofman sobre a Antiguidade, descobri que esta convicção é ainda mais antiga, ou seja, ela é arcaica. Pois bem, não é à toa que filósofos contemporâneos voltam o olhar para a Antiguidade. Lendo os antigos, podemos nos desidentificar do tempo presente no intuito de nele intervirmos diferentemente.
- Ainda na esteira da pergunta anterior: como filósofa e como alguém ligada a movimentos de Contracultura, você diria que existe, atualmente, Contracultura? Ou o Mercado (com o aterrador M maiúsculo) já absorveu a tudo e a todos? Se ela existe, onde está?
Minha visão acerca dos focos de resistência vinculados a movimentos é um pouco pessimista. Acho que quase tudo já foi fagocitado pelo Mercado, sobretudo alguns movimentos políticos que buscam por uma espécie de representatividade mercadológica e publicitária. Também acho que a palavra “resistência” vem sendo cada vez mais banalizada. Talvez o próprio Cosmopolíticas a banalize em certa medida – tenho algumas ressalvas em relação à dramaticidade do meu próprio projeto… Seja como for, se há contracultura hoje eu não a enxergo na vida acadêmica e nem mesmo na vida do intelectual. Acho que essas vidas ainda são confortáveis demais para caracterizarem uma contracultura. Talvez eu veja a contracultura nas ruas, com as novas gerações de punks anarquistas que vivem em ocupações e com os artistas, mais especificamente com aqueles que não se submetem aos jogos de elitização da arte e da cultura. Algumas militâncias mais marginais também resguardam esse aspecto desobediente da contracultura, penso sobretudo em certas militâncias feministas e antifascistas. Mas é difícil escaparmos do Mercado… hoje, uma pretensão política deste tipo pode soar até mesmo ingênua. Contudo, não precisamos desejar o Mercado, não é por aí que devemos buscar a inclusão social e, de modo geral, a modificação estrutural da civilização. Enfim…acho que eu precisaria estudar e pensar mais para responder esta questão…
- Fale-me sobre Hipocrisia (ética/política/acadêmica/artística).
Hipócritas? Somos todos! Somos hipócritas na ética, na política, na vida artística, intelectual, acadêmica, familiar e, até mesmo, nas relações conjugais. Eu tento não ser hipócrita, mas esta é uma tarefa difícil. Nem sempre somos francos com nós mesmos e com os outros. Também não podemos esperar e nem mesmo exigir a franqueza dos outros para conosco.
Foucault nos mostra (lá vai mais uma vez meu momento citei Foucault), ao recuperar a Antiguidade greco-romana para pensar o cuidado de si e dos outros, que a franqueza faz parte da atitude ética. Com efeito, busco pelo meu próprio aperfeiçoamento ético e, por isto, sempre desconfio de mim mesma, mas a hipocrisia paira sobre as nossas relações sociais – talvez mais do que pairar, ela as constitua.
Para tentar evitar a hipocrisia, que tanto nos machuca, já que dela se segue a desilusão, parei de me vincular aos outros por jogos de interesse acadêmico, por exemplo. Decidi simplesmente deixar o meu destino fluir. Nos últimos tempos, passei por uma grande mudança de atitude em relação a mim mesma e aos outros e essa mudança se atrela ao processo de constituição do Cosmopolíticas: não espero mais nada dos outros e não exijo mais nada de ninguém. Antes eu exigia, de uma forma quase tirânica, franqueza dos outros (sobretudo dos meus colegas do universo acadêmico); mas aí temos um problema… um problema porque eu não estava sendo franca comigo mesma. O que quero dizer é que no decorrer do meu percurso acadêmico, acabei me perdendo: transformei minha vida filosófica em vida empresarial, deixei de ser um sujeito com potência ética para me tornar um sujeito de interesse e comecei a disputar, sendo assim, os interesses acadêmicos. Então, ao final do meu doutorado – que coincide com a criação do Cosmopolíticas – decidi recuar. Eu estava infeliz comigo mesma e decidi recuar parar retomar o impulso adolescente que me fez escolher o curso de Filosofia e não o de Direito.
- Nos espaços digitais do Cosmopolíticas são usadas muitas vezes as palavras ‘Ação’ e ‘Intervenção’. Além disso, podemos considerar Cosmopolíticas também como ‘Reação’? O que o Urubu diria a respeito disso?
Acho que o Urubu diria que o Cosmopolíticas é como uma sequência de jabs e diretos incitados por um instinto de autopreservação.
Se alguém perguntasse ao Urubu: – Como sobreviver à hipocrisia e ao narcisismo que a ela se atrela? Como resistir a este combo que arquiteta a nossa própria estrutura psíquica e social, mas também a dos outros? O Urubu diria: – Reagindo diferentemente (jab direto; jab direto; jab direto; jab direto; jab direto; jab direto…)
O Cosmopolíticas é uma ginástica.
- Fale sobre aquilo que você sempre quis falar e nunca te deixaram.
Eu sempre falo o que quero falar, é difícil me impedirem. Por isso, normalmente acabo desencadeando uma espécie de mal-estar entre muitas pessoas. Então, acho que vou falar sobre algo que nunca falei publicamente, isto é, vou falar justamente sobre o desconforto que causo nos outros.
Às vezes, sinto que uma boa parte do meu círculo social me odeia; mas para ser honesta, parei de tentar ser amada. Esta atitude já causa desconforto suficiente naqueles que tentam me impor a resiliência, a gratidão, a cordialidade e a crença. Pois bem, não sou um animal cordial, deixo esta tarefa para os burgueses, burocratas e devotos das instituições. (Inclusive, recomendo o filme brasileiro chamado “Animal Cordial”, pois foi assistindo este longa que me dei conta de que não sou um animal cordial.)
Em razão da minha falta de postura, algumas pessoas se afastaram de mim. Isso quer dizer que meu passado me condena.
Minha falta de cordialidade me torna uma pessoa antissocial, ou seja, uma pessoa incapaz de jogar os jogos que devemos jogar para termos sucesso econômico, profissional e familiar no sentido tradicional. Então, talvez eu possa concluir esta entrevista dizendo que estou fadada ao fracasso e que o Cosmopolíticas é minha derrocada – não sou, pois, um bom Urubu.
(https://cosmopoliticas.com/2020/10/19/aforismo-6-a-decepcao-do-urubu/)
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