imagem: cena do mangá A Girl on the Shore (Umibe no Onnanoko), de Inio Asano.
Yellow Magic Orchestra – Rydeen (1979)
βῆ δ’ ἀκέων παρὰ θῖνα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης
Avançou em silêncio pela praia do mar altissonante.
Ilíada, livro 1, verso 34
Há praticamente uma semana eu falava de paisagens sonoras diante de uma banca de avaliação. Falava do murmúrio de ventos e de mares altissonantes escutados por ouvidos helênicos que cruzavam os mares até os confins do mundo em busca de tesouros e desafios, numa época muito anterior à nossa. Eu falava dos sons de magníficas cascatas e do rugir de tempestades. Falava dos mugidos de touros de bronze e dos rugidos de bestas selvagens. Falava disso e daquilo de dentro do meu apartamento, enquanto meu roomie movia-se em silêncio para não interferir na reunião. Falava de dentro de um apartamento que está inserido numa paisagem sonora que, para mim, já é bastante familiar, na qual se misturam os cantos de passarinhos de uma rua pacata com os distantes murmúrios de motores de veículos que chegam desde a avenida, somados a um ocasional cortador de grama. Eu falava sobre sons que estavam descritos num texto poético escrito há quase 2.300 anos. Ainda assim, podia imaginá-los perfeitamente.
No momento em que escrevo isto, escuto passarinhos piando, o baixo murmúrio do motor da geladeira na cozinha, escuto grilos, os ruídos intervalados de carros que passam pela rua principal a alguns metros daqui, o som da borracha dos pneus de um outro carro qualquer que manobra sobre a areia da rua em frente à casa, uma martelada distante de alguém que desempenha algum trabalho manual, o ruído das minhas teclas.
No fundo, quase inaudível, escuto o ruído branco. O infindo murmúrio irregular do mar.
Foram necessárias três visitas ao mar para que eu finalmente o ouvisse sem meus fones de ouvido. É um vício. A música, como trilha sonora, serve como um filtro para o que se vê. Ela altera a visão. O mar muda, a paisagem muda. O ânimo muda. Eu observei o mar com a tonalidade um pouco passional e emotiva – porém otimista – de Peter Cetera em Glory of Love, vendo as ondas com o mesmo olhar que via, comovido, as cenas de Karate Kid II (1986). Num outro momento em que estive diante do mar, o mar mudou. O mar mudou porque a escuta mudou. Eu o contemplava escutando In the Air Tonight, de Phil Collins. Era um mar familiar. Meu avô escutava o Phil Collins quando a gente ia à praia nos anos 1990. Um mar imenso e um mar familiar. Era desafiante e familiar. Era aquela bateria aos 3:41 e era imenso. Era nostálgico. Na quarta visita ao mar, eu escutava a música que encabeça esta coluna: Rydeen, da Yellow Magic Orchestra. Foi nesse momento que surgiu a ideia para este texto. Era sobre isso que eu precisava escrever. Que mar era esse que eu observava ao escutar Rydeen?
Foi na minha terceira visita que pude ouvir a voz do mar, a pura e absoluta voz do mar. O ruído branco e indefinido. O alto bramido, imponente. Fui até lá sem meus fones, por qualquer razão. Foi apenas ao chegar diante daquele colosso aquático que me dou conta: “Imbecil!”
Tanto tempo encerrado num apartamento, numa quarentena, ao falar de representações dos ruídos do mar e da vida, e chego ao oceano com fones de ouvido!
Depois disso, passei algum tempo, alguns quilômetros, andando por suas beiradas e ouvindo sua altissonante voz. Avançando em silêncio por suas praias. O mar altissonante, plurissonante. O mar πολυφλοίσβοιο. O mar do alto rugir. Eu estava certo, afinal de contas. A voz do mar é imensa. Ao falar de seu som nos poemas, eu sabia exatamente de que falava. Eu ouvia. Eu me lembrava. A representação do som é única, é magnífica. A representação nos faz lembrar do que sabemos e conhecemos com perfeição. Me lembrei disso diante do mesmo ruído que foi ouvido por meus antecessores gregos. O mesmo mar, o mesmo som, o mesmo sol, os mesmos ventos. Elementos de vozes constantes. Eles os ouviram, eles os representaram, e eu, lendo-os, escutei-os.
Já houve outros momentos nesta revista em que tratei das trilhas sonoras do nosso cotidiano (aqui um exemplo). Eu uso trilhas sonoras diariamente para moldar os filtros com os quais observo meus dias. De tão influenciado pelas músicas, pareço sofrer de um tipo de promiscuidade musical. Eu me animo, viro um herói, viro um melancólico, viro uma sex-machine, viro um poço de raiva, viro um vilão. Promiscuidade sonora. A quarta vez que observo o mar é ao som de Rydeen, da Yellow Magic Orchestra. Foi por acaso. Ando vidrado em YMO. De qualquer modo, é outro mar, sou outro eu. Eu sou um pirata, um aventureiro. O mar é, novamente, outro. O cansaço do trabalho recém-concluído, apresentado para essa banca de avaliação, some de imediato, evapora, tal como mágica. Eu ouço Rydeen e penso que, infelizmente, nenhum grego viu esse mar que eu vejo agora. Eles não podiam modelar mares com trilhas sonoras. Mais que isso, talvez ninguém mais veja o mar que Rydeen me traz. Aquele cansaço sumiu. Se fosse a Gymnopédie de Satie, talvez estivesse melancólico. Se fosse a Moanin’ de Blakey… Não, quem é que escuta Jazz diante do mar? Mas era Rydeen, e eu era capaz de tudo. Era um lunático de algum anime japonês influenciado por sequências de escalas pentatônicas sintetizadas em timbres coloridos que me impeliam a um futuro desafiador, excitante. Ao que quer que fosse que estivesse para além do horizonte, pra além-mar. Como quando eu era um menino. Eu ainda era.
Encarava o mar. Estufava o peito para o que quer que fosse. Otimista.
Mesmo neste país maldito.