R.You

Fabulário: a arte de Tatiana Cruz

imagem de capa: Autorretrato no Fabulário

 

A coluna R.You! inicia o ano de 2021 com a arte da gaúcha Tatiana Cruz. Sem mais delongas, como é costume nesta seção, te convidamos a conhecer sua belíssima produção através de suas próprias palavras.


 

 

Difícil pensar poesia sem pensar em imagem. Pelo menos pra mim. A escrita começou antes da colagem, bem antes, ainda na infância. Tinha coisas que eu via, às vezes as mais prosaicas, bobas, e elas viravam uma bola quente subindo o peito até a garganta. As coisas que eu via aceleravam meus batimentos cardíacos, e eu recorria às palavras. Não me achava boa no desenho.

Atravessei a vida escrevendo e sabotando os meus poemas porque acabei fazendo do jornalismo o ofício para ganhar a vida: a objetividade, a desconfiança, o compromisso com a verdade pareciam roubar meu lirismo. Creio que isso me acarretou muito sofrimento. Preciso processar e devolver o que me atravessa de algum jeito. E tive de viver dois grandes desfechos para deixar fluir de novo a poesia em mim: o desfecho do jornalismo e o de um longo casamento. Atravessar esses desfechos me fortaleceram poeticamente. O livro que lanço agora entre março e abril, pela Editora Zouk, meu primeiro livro de poemas, Na minha casa há um leão, se inicia nesta travessia, e o que parecia um fim virou um começo.

Continuo não sendo boa em desenho, mas mais recentemente, em 2018, mais ou menos, à medida que o livro se cumpria, em edição, novos poemas, desapegos, a bola aquela de fogo do peito à garganta prosseguia e eu sentia que precisava colocar a mão em algo, concretizar a palavra em papel, cor, textura. Mesmo sem técnica, sem curso, nada, me deixei guiar total pela intuição. Pedi para meu pai a coleção Barsa de anatomia de quando era criança, trouxe para a minha casa e, com a ajuda de um estilete de corte de alta precisão, me dediquei primeiramente aos órgãos: eu queria abrir corações, separar ossos dos músculos, eu queria manipular corpos de forma a encontrar dentro deles os sentimentos, em lugares novos. E a minha primeira série de colagens foi assim, criando seres fabulosos, humanos com asas de borboleta e musculatura exposta decolando de planetas ou lagartas com ventre humano a parir pássaros. As criaturas fabulosas me abriram caminho para o Fabulário, perfil que criei no Instagram (@fabulario.collage) para compartilhar essa arte que nascia despretensiosa, ancorando o poema na imagem. Eu ficava muito calma.

 

 

Aos poucos, eu fui “complicando” a técnica, precisando experimentar. Foi assim que larguei o fundo branco das primeiras colagens e passei a trabalhar com muitas estampas de base. Ainda nessa fase se repetia a minha preocupação em colar partes em seres híbridos de forma que parecessem terem sempre sido assim. Era uma obsessão com alguma possível verdade, e, por isso, era muito exigente na precisão do corte e da colagem. Aos poucos, porém, fui desapegando desse cuidado e me abrindo a outras possibilidades, vivenciando o universo das sobreposições sem cortes bem definidos, com textos sobre imagens, camadas sobre camadas. Foi uma fase de mais liberação para mim. Incorporei na base das imagens não só revistas antigas ou enciclopédias e livros de medicina.

 

 

Neste período também comecei também a remexer o baú de fotos de família, documentos antigos, álbuns que eram dos meus bisavós, livros de receitas… Tem colagens muito especiais para mim deste período, porque cada partezinha delas é uma parte de uma história maior. Foi assim que nasceu a série Senhoras de Outro Tempo, de colagens aplicadas sobre aquarelas de um amigo, o artista visual, poeta e fotógrafo Andre Calazans (@zans.art). Em Outlander, eu estava tão absorvida abrindo o desenho com estilete que precisei retirar meu lenço do pescoço e arrancar dele fios que decorassem essa mulher de outro tempo, uma mulher que tinha que ser um pouco eu. Em A Noiva, eu usei parte do atestado de óbito do meu avô como busto, porque ela era a promessa do amor morta, e eu disse assim no poema que a acompanhou: “Algumas noivas conservam um certo cheiro de mato / E uma coloração antiga / Não pertencem ao nosso tempo / Pois que duvidam do tempo / São as dobraduras do tempo…”

 

 

Hoje, estou experimentando alguns efeitos digitais nas colagens manuais através de aplicativos muito simples e fáceis de usar no celular mesmo. Lá consigo duplicar, quadruplicar imagens. Criar giros. Animar alguns elementos criando poemas também audiovisuais. Mas de novo: tudo muito no arranque da intuição. E agora que meu livro de estreia na poesia vai sair do meu computador e ir para a casa de alguns leitores, quis também acompanhar todo o processo visual dele, criando a colagem da capa e das aberturas de blocos poéticos. Como estamos falando de uma casa onde há um leão, criei um desafio pra mim mesma: o de acomodar os poemas nos cômodos da casa, cômodos esses que, no livro, ganham os nomes que eu acho mais apropriado. Temos a Soleira da Porta, onde o eu lírico se agita muito, e o Fundos, Quintais, onde algumas percepções florescem em meio a um jardim urbano. Os poemas, assim, foram se acomodando na planta baixa de uma casa poética com medidas arquitetônicas deliradas por colagens que fui espalhando nela. Eu queria que o leitor pudesse chegar até o leão, entendendo imagem como poema e poema como imagem, ou pelo menos sabendo que é assim que eu entendo. Enfim, parece que é mais um desfecho, mas prefiro pensar que é um novo começo.

 

 


 

Tatiana Cruz é poeta e artista visual autodidata. Seu primeiro livro, Na minha casa há um leão sai no primeiro semestre de 2021 pela Editora Zouk reunindo poemas e colagens. É jornalista e especialista em Literatura Brasileira pelo Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fundadora do mapa global de poesia falada feita por mulher no Instagram, @1MinuteSlam, e co-fundadora do Sarau Nosotras, evento de literatura feito 100% por mulheres somente para mulheres.

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