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Suspiria, de Luca Guadagnino (2018)

O que falar sobre este filme? Bem, primeiramente tenho que adentrar brevemente minha experiência antropológica por Roma. Todos nós conhecemos (ou talvez simplesmente tenhamos ouvido falar) a obra homônima, de 1977, feita pelo artífice do suspense, Dario Argento, em uma fase peculiar do cinema italiano marcada pela ascensão de uma geração de diretores que exploraram de forma significativa o cru contido na limitação técnica e orçamentária, e fizeram do enquadramento e do corte uma forma de condução do espectador não somente pela narrativa, por aquilo que ela contém ou possa conter, como também por aquilo que ela não contém. Produção que instiga o espectador a ponto de sair do cinema realizado com a emoção de ter se defrontado com um suspense de primeira qualidade, uma observação entremeada entre endorfina e adrenalina… sensação esta que tive a primeira vez que assisti a Suspiria, de Argento.

Mas voltando a Roma, onde resido no momento, nos primeiros dias de fevereiro me defrontei com um cartaz afixado nas avenidas no qual estava escrito “Suspiria”. Mas que coisa! Como vi à uma certa distância e de dentro do transporte, pensei que fosse alguma montagem teatral com releituras do filme ou algo experimental adentrando a fluidez de bordas conceituais em uma obra híbrida. Outro dia, tive que cruzar a rua e ler o cartaz. Era um remake. Sempre torço um pouco o nariz para remakes porque quando básicos, se mantém à sombra da obra inicial (quase sempre retumbante a ponto de receber um remake), quando mais experimentais, acabamos instintivamente por comparar uma obra à outra, o que gera uma condição um tanto árdua para o realizador que se vê na “necessidade” de criar uma obra nova, porém que soterre o encantamento da primeira. E ainda seguramente se defrontará com puristas que o criticarão dizendo que “bom foi o primeiro!”.

Pois bem, nos dias subsequentes fui ao Nuovo Cinema Aquila, no Pigneto, uma zona de Roma. Um espaço muito interessante onde já no primeiro dia fiz amizade com o senhor da bilheteria, chamado Fábio, que já em seguida me apresentou a outro senhor e, juntos, permaneceram fazendo bela propaganda do filme na minha cabeça. Causaram-me grande excitação ao falar que este filme trazia elementos da psicanálise, Baader-Meinhof(um grupo guerrilheiro da Alemanha Ocidental) e uma profundidade que não existia no primeiro. De qualquer forma, tal excitação não foi maior que a esperança de que o filme de Argento fosse imbatível, uma crença quase cega de um hooligan esperançoso, de que o primeiro filme se mantivesse soberano frente ao novo “oponente”. Seguramente preciso rever o filme agora sem a surpresa do novo, com a cabeça fria. No entanto, não foi possível. Minha rejeição pela obra foi muito grande, ora por inconscientemente compará-la ao filme de 1977, procurando na nova versão o que havia em comum e não o que ambas possibilitavam de rompimento e inovação, ora por ter pré-concebido uma obra que respeitasse alguns parâmetros, a meu ver, imprescindíveis numa obra que pretensamente vendida como uma homenagem ao criador do verdadeiro Suspiria. Eu havia revisto o “clássico” uma ou duas noites antes e estava com a sequência de planos muito fresca na cabeça. Havia também revisto obras como Profondo Rosso (Prelúdio para matar, no Brasil, 1975), L’uccello dalle piume di cristallo(O pássaro das plumas de cristal, no Brasil, 1970) e Inferno(1980) nos dias anteriores, imaginando defrontar-me com um grande “pastichão” (e aqui na melhor forma do termo), mas me deparei com uma obra nova. Possivelmente belíssima na sua individualidade, mas por usar o nome de uma grande obra gerou em mim seu abafamento enquanto potência, ressoando apenas como uma tentativa. Parcialmente condicionado estava eu a prejulgá-la como algo inferior à magistral versão primeva, no entanto, sua condição de romper com o meu condicionamento e, possivelmente, de outros cinéfilos, viu-se rebaixada pela simples presença da marca, a nomenclatura Suspiria. Esta é uma obra clássica e, assim como um outro italiano, o Ítalo Calvino, sugeriu, por que ler os clássicos?, listando inúmeros motivos e formas de reconhecê-los ou classificá-los, um filme clássico também se insere na história do cinema, na mente do cinéfilo, na retina já cansada do espectador estupefato pelo primeiro contato com aquela obra que existe há tanto tempo e ele se indaga como pôde viver todos estes anos sem conhecê-la, já compreendendo, ainda que inocentemente, que a obra posta a sua frente é, sim, um clássico. E Suspiria é este tipo de filme “clássico”. Um filme em que o ritmo da montagem, a cor, a surrealidade dos espaços e das formas, parafraseando O Gabinente do Dr. Caligari(Robert Wiene, 1920), mas inovando, rallentando, crescendo….detalhes musicais que compõem essa tessitura audiovisual grandiosa de Argento.

Portanto, a obra sobre a qual eu deveria ter escrito esta crítica, que indiretamente na sua ausência acabo por referenciá-la negativamente, não alcança a dimensão da sua Mater Superiorum. Berlin, Guerra Fria, Baader-Meinhof, todos estes elementos já davam por si só uma grande obra. Mesclam-se a uma escola de dança (e aqui é um dos pouquíssimos eixos de conexão plena com a obra de Argento) próxima ao Muro de Berlin onde uma estudante chega em uma noite chuvosa. Mesmas lições, método árduo, um suspense sobre uma professora durona, assassinatos e desaparecimento entre as paredes da escola. No entanto, para além do literário, atingindo o sensorial, o número de referências visuais que remetem ao primeiro filme é mínimo. Não se vê nessa obra o jogo de cores, o corte, o ritmo, o tradicionalismo Argentiano, ainda que a obra traga referências à trilogia de Le Tre Madri (Mater SuspiriorumMater Tenebrarum e Mater Lacrimarum) composta por SuspiriaInferno e La Terza Madre (O Retorno da Maldição, no Brasil). Flerta-se com terror psicológico, tortura, remorso, opressão sexista e geracional, fazendo-me rememorar em alguns momentos A Serbian Film(Srdjan Spasojevic, 2010), e o grotesco faz-se presente como forma de expurgo, um passado que ecoa entre nossas mentes e história, que se oculta entre o silêncio e o esquecimento. Temas muito interessantes, mas que como ouvi de um amigo crítico de cinema de Belém do Pará a respeito do filme Branco Sai, Preto Fica (2015), “um tema tão bom que saí do cinema com vontade de ver um filme sobre isso, porque o filme não fala disso, mas de outra coisa”. Saí do cinema com vontade de rever Suspiria, não o de 2018, mas o de 1977, talvez da mesma forma com que o leitor saia desta página, desejoso de ler uma crítica, visto não tê-la encontrado em tais linhas, mas uma mera (a)descrição do filme de Guadagnino.

Revisão Textual: Everton Bastos

Rodrigo Freitas
Historiador, professor e artista, tem publicações e pesquisas na área do audiovisual. Se volta ao estudo das relações humanas e da arte como manifestação. Tem particular interesse no cinema do Leste Europeu e já dirigiu alguns filmes de categorias e metragens diversas. Integrou o Núcleo de Crítica de Cinema.

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