Nossa Literatura traz, nesse mês, a poesia da grande Jessica Stori, autora que estreia na R.Nott Magazine apresentando seu novíssimo livro: carne e colapso.
ver toda casca como possibilidade
como meio termo do tempo que põe a escolha
arrancar ou não
ver ser ferida que nunca sara
ver ser dor
Meu livro surgiu no momento em que decidi me dedicar por inteira e consciente à palavra. carne e colapso nasceu da atitude de escrever o que me atravessava como mulher neste território que vivo. Mas o que me cortava não só em experiência, pois aqui tem muito de observação e falação sobre as outras, para as outras. Desde a relação de uma mulher dedicada a um deus pelo prazer que ele lhe causa, alimentando transcendências e matando culpas até os delírios de uma pessoa que conta todas as possibilidades do uso das mãos: o toque, a costura, a escrita. Também é sobre o uso da boca, o uso da língua, a que mora na boca, a que fala e conta histórias. Carne porque corpo, colapso porque queda e ruptura, possibilidade de outra coisa, outra contação, outra narrativa. carne e colapso vem da narração do descontrole e me levou à corrida, ao movimento de ser e me colocar como uma escritora brasileira.
fim da língua
posso imaginar pelo céu da boca
ler com a própria língua ensandecida por história
ela só quer casa
sua boca
dá pra pensar com céu e entender com língua
ela pode fritar ali dentro
se bater contra os dentes quando não gostar do final
mas isso não muda
a língua é o que se conhece por prisão
consagra o corpo isso é verdade
extrema unção da incapacidade de fugir
quer se livrar e tocar outro céu
imaginar outra coisa que não isso
mas a língua é o que eu tenho de definitivo
às vezes eu só queria saber como acaba
felina contra extinção
Suelen arrancou da carne
suas patas fizeram trilha
caminho de gata selvagem
do gesto início
desandou
a gata insatisfeita
comeu quem matava seu instinto
fortaleceu as entranhas
o sangue e o descaso
no silêncio do inimigo
hoje ela encara
no meio do mato
decide se vai
ver toda casca como possibilidade
como meio termo do tempo que põe a escolha
arrancar ou não
ver ser ferida que nunca sara
ver ser dor
sem saber se pode jorrar ou deixar risco
resíduo de tragédia
memória de unha pedaço de pele
corpo que acaba outro
dúvida possível
um gesto início
as patas fazem o trabalho do adeus
não perguntam
automáticas vão
empurram
enterram
salvam
fechou os olhos
tirou a casca
toda cicatriz traz um novo registro de como contar o tempo
p/ escritoras de mãos elétricas
eu quero sentir o peso das mãos escritoras
as mãos instrumentos mães de outra história
eu poderia acariciá-las o dia inteiro
para fugir dos conselhos daquele que me impede de ser genial
sem querer ser um gênio
não existiram mulheres gênios
essa palavra acabada em seu limite
se eu pegar nas mãos escritoras serei
eu quero sentir a força da sua mão em meu rosto aquoso
mão áspera de bater na terra no filho
no chão na bunda do porco Corre
a mão que escreveu um livro fechado e inconcluso
as raízes são muitas precisamos alcançá-las Quantas mãos buscar
eu quero receber destino e não ter mais um chefe
ser a mão que eu toco sem sugá-la
sem exigir dedos
uma mão que abraça outra
só é diferente
quando são mãos escritoras
não únicas
Escritoras de mãos rudes e elétricas
emoção brasileira
ainda não descobri como contemplar minha emoção brasileira
sei que sou artesã
uso os pés para escrever
tenho tato aranha minha sensibilidade espalha teia
aprendo a respeitar meu olhar caído
secar meu corpo giratório
eu tô no caminho do movimento
o pé indica veias que sobem em apreensão
às vezes infiltro preciso estancar
os cabelos me derrubam
me colocam no chão
borbulha vontade de pelos esporádicos
não saberia dizer a etnia
eu entendo a cabeça raspada em dia de sol
caprichos me levam a trancar a porta
hoje eu escuto pra pensar raiva
me reconheço também no soco
roubo com jeito de quem sabe devolver
é desigual
por isso pego
teu deus em letra maiúscula
o que está acima de mim
a emoção brasileira
que não me foge quando estou com sede
sono
medo de cair
vendo o tesão
vontade de descer
gritar com seu desleixo
e fingir
fingir acreditar em alguém
eu vivo no Brasil
e isso é muito
para se ter em um corpo