Literatura

O há muito esquecido e supremamente importante affair com a esposa do major

imagem: Ellsworth Kelly – Vermelho e Azul, da série “Line Form Color” (1951)

“A técnica mais eficiente dizem que é pendurar o porco, e, com um punhal bem afiado, acertar um golpe único no seu coração. Não no seu coração, no coração do porco.”

Ia te dizer “mudei de estratégia” mas a verdade é que voltei à primeira. Já se passaram 15 anos e parece que dá pra ficar aqui de novo. Sabe que pra matar um porco é preciso observar se ele passa bem, se não tem cansaço excessivo ou febre ou infecções. Depois o porco fica 24h em jejum a base de água morna e antes de ir pro abate leva um banho de água fria pra melhorar a circulação. A técnica mais eficiente dizem que é pendurar o porco, e, com um punhal bem afiado, acertar um golpe único no seu coração. Não no seu coração, no coração do porco. E depois a sangria. Não no coração do porco, no meu coração. Me sinto, às vezes, pendurada num gancho e às vezes solta na lama, feliz e esquecida de que todos estamos correndo perigo. Leio a Duras falando do seu irmão mais novo morto, um amor de todos os instantes, um amor fortalecido por um inimigo comum. Te amo como a alguém que não está mais aqui? O que é um amor de todos os instantes? Quando penso em você penso: essa criança selvagem, e louca (alguns dizem), esse garoto que sozinho ganhou a guerra mundial. Preso a um meteoro em direção à queda certeira. Não é sangria de porco, mas me dói. Além da cicatriz no ombro, estou com um roxo na canela. Me bati no degrau de uma escada, que não deveria ter sido subida, porque estava distraída pensando em estratégias que me falham. As estratégias, tentadas até aqui, me falham como colegas de trabalho preguiçosas que, numa manhã sem mais nem menos, chegam e dizem: não dá pra mim, você vai ter que dar conta disso sozinha. De qualquer jeito, voltei à primeira estratégia, ignorando o conselho de Montaigne: amo Paris por isso quero vê-la a salvo das discordâncias. Mas se daquela primeira vez escrevia o nome dele no final dos cadernos e no banco da praça e no pulso e na nuca (escondia soltando o cabelo) e escrevia cartas com uma mesma frase repetidas muitas vezes, desta vez não ouso escrever seu nome. Muita feitiçaria, muita renúncia. Tirando que, se olho pra coisa toda com frieza, estamos muito longe da identidade: você pra mim é uma mistura de gente, eu mal sei quem você é tirando que puxa as calças com as duas mãos num movimento automático que não percebe e que vai morrer com orelhas gigantes. Eu tenho muito medo da falta de medo que você tem com as palavras e de como você nunca passa despercebido. Uma verdadeira criança sem modos. Às vezes eu queria pagar pra alguém te pegar na rua e te dar uma surra. Depois eu acho que não gastaria um centavo com você, pra nada, nem te comprando um doce na padaria (não faço ideia se você gosta de sobremesa). Enquanto eu escrevo nossa ligação vai ficando mais fraca e nossa ligação vai ficando mais forte. A Smith quando conheceu o Smith pensou: é com ele que vou me casar. E se casou e tiveram dois filhos com nomes que começam com J e ele morreu 14 anos depois de um ataque fulminante do coração e no começo dos anos 90 eu tava nascendo e o uso do e-mail nem tinha se popularizado. Então eu penso enquanto você estiver vivo está tudo bem. Tem coisas que com o tempo a gente se acostuma. Como escritora eu nunca tenho certeza do que eu amo mesmo ou do que eu só quero escrever a respeito. Eu quero escrever a seu respeito. É possível que eu fique com raiva se penso que você não me escreve, com certeza fico com raiva se penso que você não escreve sobre mim, mas o que me deixa mesmo triste é pensar nos momentos que você não tá escrevendo at all

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

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