Visuais

Costume e Efemeridade em Ozu

imagem: still de Era Uma Vez em Tóquio (Tōkyō Monogatari), de Yasujiro Ozu (1953)

Tarik Alexandre retorna à R.Nott Magazine para discutir o cinema de Yasujiro Ozu e sua relação com o tempo, com costumes tradicionais e com a nostalgia.


“Mas, para Ozu, não há redescoberta e tampouco rememoração que possam trazer esse tempo de volta, senão a constatação de que o que se passou é um tempo deformado, retirando dos costumes sua importância primordial. O resultado é sempre nos depararmos com cenas de solidão”

Há alguns autores que todo mundo gosta de citar e que, no entanto, poucos efetivamente leram. Um dos casos mais flagrantes e muito mais pertinentes do que Joyce, Mann, Musil, Foster Wallace e Virginia Woolf que correm na boca dos intelectuais aos montes, é o de Honoré de Balzac. A Comédia Humana com seus vinte e tantos volumes é gigantesca e deve dar pra contar nos dedos quem – se alguém – a leu completamente (eu, particularmente, não conheci ninguém que tivesse feito essa proeza). Aliás, nem eu mesmo fiz e penso que sequer o faria. Mas sendo um dos grandes clássicos da literatura e sua obra gigantesca, penso que vale a sua menção por um detalhe bastante específico e que, em suma, foi o trabalho da sua vida como escritor, a saber, sua meticulosidade em analisar a vida dos costumes.

Entre os títulos mais famosos, como A Mulher de Trinta Anos e Ilusões Perdidas, Balzac se demora a demonstrar os acontecimentos da vida cotidiana e as questões que os envolvem: problemas amorosos, as demandas pelo sucesso na vida artística e financeira, as misérias do mercado editorial, etc. Sempre com uma riqueza de detalhes assustadora, Balzac faz nessas explicações da vida e dos costumes o esforço de apresentar as origens e os desdobramentos terminais desses hábitos: como em Ilusões Perdidas, descreve-se desde o processo de fabricação do papel até as crises políticas da imprensa e seu mercado de resenhas compradas, seja para elogios ou críticas. Lucien de Rubempré, um jovem entusiasta a poeta, filho de um boticário sem grande notoriedade, passa pelas delícias e tragédias de se inserir no nicho literário e jornalístico de forma que sua carreira oscila entre a opulência do sucesso e uma derrocada assustadora que quase beira ao suicídio e a desgraça de sua família como um todo; e David, o inventor genial que passa por golpes comerciais em função de sua descoberta de um tipo de papel mais barato e eficiente. É evidente que, assim como os demais autores já mencionados, Balzac passa pela acusação de prolixo e tedioso, ainda mais tendo em vista a quantidade de tempo e registro gasto nessa dissecação dos detalhes. No entanto, esse processo de explicitação e demonstração de pormenores se tornou uma moda entre muitos outros autores, sobretudo para além da literatura.

Entre os nichos que parecem ter se valido de forma significativa desse interesse, tenhamos como horizonte o cinema japonês do começo do século XX, como Akira Kurosawa, que, em algumas entrevistas, citava explicitamente Balzac enquanto referência para seus trabalhos e criação de narrativas. Entre tantos outros cineastas do período (Mizoguchi, Kobayashi, Yamamoto, etc.) que realizavam um processo de cinematografia relativamente semelhante no que diz respeito ao registro do cotidiano, nos chama mais a atenção o processo de Yasujiro Ozu.

A princípio, os trabalhos mais significativos de Yasujiro Ozu, apesar de possuir uma filmografia grande e com algumas películas até mesmo perdidas, possuem características formais semelhantes entre si (mesmo não possuindo enredos idênticos), de forma que podemos nos dar o luxo de focar especialmente em Era uma Vez em Tóquio (1953) e A Rotina Tem Seu Encanto (1962). Em geral, os filmes de Ozu possuem um sistema de câmera fixo, com uma mesma lente que registra as cenas de forma bastante demorada e sem qualquer tipo de entusiasmo mais explícito. Aliás, o ponto fundamental e peculiar do cinema de Yasujiro Ozu é justamente esse: a apresentação dos costumes da vida japonesa sem qualquer tipo de exaltação ou eloquência que possa lembrar o cinema hollywoodiano. E, dentro do aspecto da falta da eloquência, possamos imediatamente tomar como mote para essa serenidade, além do seu modo de filmar, a construção narrativa de seus longas-metragens.

Ozu traz o âmbito doméstico como interesse em seus filmes: A chegada de um casal de idosos em Tóquio para passar férias na casa dos filhos de forma que esses filhos precisam se revezar para cuidar dos pais, atrapalhando a rotina de trabalho; ou então a necessidade de casar a filha com um bom pretendente, já que ela ainda permanece na casa do pai, uma vez que ele é viúvo. Ao longo das narrativas, todos os problemas são tratados com algum convencionalismo – os filhos que se sentem na obrigação de cuidar dos pais mesmo que não se sintam confortáveis com a ideia, casar a filha para promover uma vida de sucesso para ela já que ainda não encontrou um marido – de maneira que as personagens parecem quase cínicas na medida em que todas as atitudes são tratadas com uma aparência de boas maneiras, sem no entanto serem verdadeiramente os gestos sinceros ou coerentes com suas reais intenções. Esse sentimento é constantemente revelado pelas conversas em que ora as personagens sorriem, ou tratam levianamente certos acontecimentos como se fossem desimportantes. Finalmente, quando as tramas dos filmes parecem estar prestes a se solucionar, elas se tornam secundárias, ou de resolução com mínima importância, porque simplesmente a solução foi da ordem do convencional ou então ela foi colocada como desimportante.

Eis aqui um fenômeno curioso em Ozu: a resolução dada para os problemas da ordem do comum se desdobram em outras esferas que não propriamente as esferas do costumes. Parece emergir uma cisão entre o que poderíamos chamar de “registro balzaquiano” dos costumes e o registro fomentado por Ozu, pois notamos que aquilo para Balzac seria o ponto crucial, a saber, que o modo como as personagens vivem suas tramas é que consolida suas resoluções através da narrativa, em Ozu o final de seus filmes pode ser absolutamente dicotômico entre aquilo que foi realizado enquanto tradição e o sentimento tido pelas personagens. Penso que a colocação de Ruy Gardnier em seu artigo para a contracampo seja pertinente ao que conversamos:

“[…] o comportamento não é tanto questão de moral, mas de idade: é a condição de mãe de família que faz Shige desapegar-se da família de seus pais, assim como a própria Noriko, depois de oito anos, já não pensa tantas vezes em seu finado marido quanto pensava antes. Essa convivência com o tempo não é nada fácil, e leva uma das personagens a perguntar “A vida não é frustrante?” a Noriko, ao que ela responde de forma serena com uma afirmativa. Uma vez que é impossível parar o tempo, o jeito é ter com ele uma relação mais honesta, reconhecer sua força, aceitar de bom grado submeter-se a seus rearranjos.

Dessa dicotomia emerge, portanto, uma característica anterior: a condição do tempo como passageiro. Em outras palavras, seria dizer que o tempo para Ozu tem uma dimensão de modificação dos costumes que causa dobras entre o agir e o sentir, enquanto em Balzac é condição necessária para a narrativa quase como uma relação causal. Para Ozu, o tempo possui uma capacidade transformadora de forma que a sua passagem gera um descolamento entre o que supostamente seria tradicionalmente aceitável e o desejo de felicidade da personagem. Em Balzac, todavia e, pelo menos, em Ilusões Perdidas, não notamos senão uma convicta vontade de fazer dos costumes algo para si próprio, seja atualizando-os ou ainda rebelando-se contra eles. O fato de o tempo passar suscita ações (podemos entender como perfomances?) em relação às atitudes das personagens e que, no interior dos filmes do Ozu, a correspondência entre o costume adequado à idade e a vontade da personagem que sofre a ação são completamente discrepantes, o que parece conduzir a esse estado de aparência ou cinismo abordado anteriormente. Há uma Comédia entre ambos os artistas, mas que parece cindir nos seus modos: Balzac como crítico dos costumes por serem levados a sério demais, Ozu por notar que os costumes não conseguem ser levados a sério demais.

Desta feita, Ozu parece conversar diretamente com o que propõe Proust com a noção de tempo perdido (temps perdu) enquanto tempo da passagem, em que o ato de perder é de não ser mais capaz de reavê-lo. Efetivamente, o ato de estar vivo e rememorar, como é o caso da Recherche, são também a constatação de que se precisa “perder” esse tempo para que o reencontre. Mas, para Ozu, não há redescoberta e tampouco rememoração que possam trazer esse tempo de volta, senão a constatação de que o que se passou é um tempo deformado, retirando dos costumes sua importância primordial. O resultado é sempre nos depararmos com cenas de solidão, com as personagens em silêncio, para além da adaptação de sua nova condição (ser viúvo, estar sozinho na casa), em que o passar do tempo desfez toda a importância do agir costumeiro ou da etiqueta.

Diante desse tempo que faz dos costumes efemeridade, se constata uma busca pela felicidade nos longas de Ozu e essa busca nunca está na trama em si, mas sim na constatação inevitável de que as tradições e os costumes não são suficientes para promover o bem-estar das personagens. Olhar para o passado não é a estância que parece resolver competentemente a crise do viver e a solidão diante das novas circunstâncias. A nostalgia não é suficiente.

Talvez aqui tenha sido a grande decepção de Wim Wenders em seu documentário Tokyo-Ga (1987) ao tentar encontrar vestígios dos costumes japoneses apresentados por Ozu: não sem surpresa, 20 anos após a morte do cineasta, Wenders não encontrou nenhum traço da identidade japonesa que Ozu havia registrado em seus filmes. Por todo o documentário, Wenders se questiona qual teria sido o motivo para o desaparecimento desse Japão que encontramos em Era Uma Vez em Tóquio ou A Rotina Tem Seu Encanto. Em outro texto com tema semelhante, cheguei a abordar que é possível que um dos vestígios que possam ter ficado da contemplação e da lentidão tenham sido os pachinkos, sendo um remanescente da nostalgia e da serenidade para Wenders. Notamos pelo documentário que a vida japonesa se tornou agitada, consumista, profundamente capitalizada e até mesmo repletas dos costumes estrangeiros, o que seria diferente do que era a expectativa de Wenders com relação ao que conhecia do cinema japonês. A conclusão acaba sendo um tanto inesperada, pois ele assume para si a possibilidade de que Ozu não exatamente registrasse os costumes do Japão pós-guerra, mas efetivamente os ficcionalizasse em prol de seus enredos. Penso que a decepção de Wenders nos interessa na medida em que há por parte do cineasta uma procura por uma noção de passado que não exatamente existiu ou existe, de forma que os costumes registrados pelo cinema de Ozu estivessem em um plano terceiro de forma a ser uma ficção fidedigna que levou Wenders a se deter em encontrá-los em vez de analisar outras questões por trás dos longas.

Gosto de me lembrar do texto Nostalgic Fashion do Vinicius Barth (lançado nessa mesma revista, clique aqui), que revisita o documentário de Wenders e olha para a ideia de nostalgia, especialmente revendo a cultura oitentista (vapor-synthwave) como um sintoma de alguma decadência. Decadência essa entendida enquanto gesto vazio, que não ressignifica nenhum passado ou lembrança, só meramente a reproduz. Barth tem suas relutâncias com isso, mesmo se intitulando um saudosista e admirador do passado. É compreensível. Talvez pelo mesmo motivo Ozu tivesse compreendido que as tradições, por si só, não seriam suficientes para dar sentido à nova vida e às novas demandas de felicidade que estavam surgindo. Contudo, o presente, o que vem à tona, é um desconhecido no qual não se sabe para onde se lançar (ambos os filmes terminam com as personagens olhando para o horizonte, vendo o mundo em movimento), como se a própria efemeridade também fosse insuficiente. A felicidade parece estar em um lugar que a permanência dada pela preservação dos costumes e a impermanência do tempo e as modificações dadas pelo futuro não são capazes de fazê-la aparecer. Não sei se disso concluiria apressadamente ser um destino melancólico e trágico sobre o futuro, mas talvez que a felicidade pudesse ser uma tentativa de equilíbrio entre essas forças de permanência e impermanência. Contudo, é certo que em Ozu a efemeridade é a própria crise: a incredulidade frente aos costumes é também a incerteza de como exatamente proceder.

Inevitavelmente somos levados a pensar na experiência do indivíduo dentro do tempo e da vida social quando assistimos esses filmes. Muito menos interessam pelo seu teor historiográfico de um Japão pós-guerra, ou pela maior influência dos hábitos capitalistas na vida doméstica japonesa e sim pelo elo conflituoso entre a vontade de felicidade e a felicidade enquanto molde. Penso que uma das interessantes respostas, ou fenômenos, seja em Bom Dia, em que as crianças constantemente questionam a posição estrutural dos costumes familiares e escolares. O caso da queixa pela televisão é, em particular, dos mais hilários e, ao mesmo tempo, contraventores, pois faz da experiência do consumo e do entretenimento frívolo um local de conflito para com os pais e toda a perspectiva costumeira de que as crianças precisam ser estudiosas e obedientes. Não há por parte das crianças em Ozu qualquer tipo de vínculo com o dever, e sim sempre uma insatisfação com costumes que, sendo impositivos, não tem para eles qualquer afinidade ou pertencimento.

Referências

https://txtmagazine.com.br/inutifilia-yasujiro-ozu-e-a-possibilidade-do-ordinario/

http://www.contracampo.com.br/75/eraumavezemtoquio.htm

http://www.imdb.com/title/tt0046438/

http://www.imdb.com/title/tt0056444/

https://www.imdb.com/title/tt0090182/

Tarik Alexandre
Tarik Alexandre, 26 anos. Nascido em Maceió (AL), reside na Grande Curitiba (PR). Mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com ênfase no estudo da melancolia a partir da teoria literária e filosofia na obra de Marcel Proust. Possui especialização em História da Arte e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Atualmente é graduando em Psicologia pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP-PR). É editor-chefe da editora independente Laboralivros e da revista virtual TxTMagazine. Entre as experiências profissionais participou do Programa Curitiba Lê, programa de incentivo a leitura da literatura e das artes promovido pela Fundação Cultural de Curitiba e o Instituto de Cultura e Arte de Curitiba bem como da prática docente. É grande aficcionado pela literatura do começo do século XX, entusiasta de cinema e temas retro-futuristas como vaporwave, synthwave, futurefunk, etc. Possui grande interesse em artes visuais, videogames, literatura, filosofia e cinema.

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