Literatura

Habib El-Bhar é especialista em oceanos

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Imagem: Pierre Molinier – L’odalisque turbulente (1967)

[/vc_column_text][vc_column_text]O mar de sacolas plásticas; as esposas robôs de plástico; as esposas de maridos inevitavelmente reais. Julia Raiz estreia na coluna de Literatura da R.Nott Magazine com dois textos incríveis.

 


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“O Sr. Nakajima dá na boca da esposa uma colherada de pudim de leite, a sua sobremesa preferida.”

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Habib El-Bhar é especialista em oceanos e diz que se continuarmos produzindo sacolas, até 2050 o mar vai ter mais plástico que peixe. Uma sacola cheia de peixe no mar. Um mergulhador com a cabeça dentro da sacola sem poder respirar. O menino sentado na areia e as sacolas que boiam até o horizonte. Duas crianças enchem uma sacola de areia, esvaziam, enchem de novo, as alças cedem, elas notam tudo, cochicham algo uma na orelha da outra, tomam impulso, coordenadas balançam e jogam a sacola de areia pro alto. A sacola cai e bate na água, não afunda, dança no raso cuspindo areia. 1 bilhão de sacolas plásticas são consumidas todos os dias. As crianças voltam mais velhas, com um graveto comprido espetam o olho do homem morto, querem ver até quando a gelatina resiste sem esparramar. O pescador pega três pelo rabo e joga no tanque, tira com uma colher o que pode de escama, abre o maior de fora a fora: plástico. Um peixe feito de sacola plástica, que pula lá de dentro viva demais para permanecer dobrada. 400 anos leva o peixe pra se desintegrar na natureza. Mergulha, sente que a seguram pelo tornozelo, é uma sacola de água pedindo pra ela ficar, o canto de uma sereia branca de plástico. No Quênia produzir sacola plástica pode gerar multa de 19 mil dólares ou prisão de até quatro anos. O litoral, dizem toda hora, é paradisíaco, sacos a perder de vista. Em 1885, durante a Conferência de Berlim, decide-se que o Quênia passaria a ser administrado pelo Reino Unido. 70 anos é o tempo que leva para os ingleses se desintegrarem na natureza. A população local acorda alarmada esta manhã com o aparecimento de um corpo adulto, sem vida, em Kangemi, bairro da capital queniana Nairóbi. A polícia ainda não comentou sobre a possível causa da morte, nem por que o corpo continuava ensopado mesmo no verão, asfixiado pelo que parecia uma espécie de plástico branco. Kangemi fica a 700 quilômetros da praia mais próxima. Três mulheres caminham até o mar de mãos dadas, a da direita foi abandonada por um homem em junho, depois de ele ter alucinações com peixes ocos. Ela diz que não há vida sem ele, ela diz em suaíli que vai voltar para o mar lavar a alma mais uma vez. A mãe chora curvada, vomita peixe com pedaço de sacola plástica. Quem inventou o plástico sintético foi o inglês Alexander Parkes em 1862.

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”♦♦♦”][vc_column_text]O Sr. Knightscope, no celular, usa um chapéu de cowboy e jaqueta holográfica.

 

O Sr. Knightscope segura uma mulher robô pelo queixo, a outra mão na nuca.

 

A robô usa uma camisete de listras pretas, tem a boca colorida e a cabeça sem pelos.

 

A Sra. Adriana é quem segura o celular.

 

A Sra. Adriana está sentada ao lado de um homem que baba ao abrir a boca para comer.

 

A Sra. Adriana está sentada ao lado do seu marido.

 

O marido da Sra. Adriana diz oooolá! para uma vizinha que passa.

 

A Sra. Adriana pensa que gostaria de dizer sem aumentar tom de voz:

 

Você é um retardado mental que caga na calça.

 

A Sra. Adriana pensa nos homens japoneses que se casam com robôs.

 

Os homens japoneses, quando passeiam, encaixam os dedos das esposas nas grades.

 

Os homens japoneses, quando passeiam, viram os rostos das esposas para acertar um ponto de vista.

 

Os senhores da equipe de marketing escrevem:

 

Quando os maridos acordam estão seguros de que as esposas continuam ali, do seu lado da cama.

 

Uma esposa robô nunca vai querer ir embora: não pode.

 

A Sra. Adriana gostaria de ir embora.

 

A Sra. Adriana também está ali quando o marido acorda.

 

O marido da Sra. Adriana só às vezes acorda seco com um cheiro tolerável.

 

O Sr. Nakajima se pergunta a quê cheiram bonecas de silicone.

 

O Sr. Nakajima é um homem de verdade que carrega uma cesta de piquenique.

 

O Sr. Nakajima tira foto de sua mulher sentada numa toalha xadrez vermelha e branca.

 

O Sr. Nakajima dá na boca da esposa uma colherada de pudim de leite, a sua sobremesa preferida.

 

O Sr. Nakajima tira foto da mulher e depois mostra a câmera pra ela.

 

O Sr. Nakajima busca aprovação.

 

A Sra. Nakajima tem peitos rígidos e empinados.

 

A Sra. Nakajima é jovem.

 

A Sra. Nakajima é sempre jovem.

 

A Sra. Nakajima não é velha.

 

A Sra. Nakajima nunca é velha.

 

A Sra. Nakajima não tem um marido com metade do cérebro estourado.

 

O marido da Sra. Adriana está com o olhar colado no portão.

 

O marido da Sra. Adriana está assistindo um carro entrar na garagem.

 

A Sra. Adriana continua falando sozinha.

 

A Sra. Adriana clica na setinha à direita.

 

A Sra. Adriana encontra uma boneca de cabelos loiros e lisos.

 

A Sra. Adriana pousa o indicativo e o polegar na tela.

 

A Sra. Adriana traz os olhos da esposa alheia para perto:

 

Tão perto quanto possível sem estourar os pixels.

 

A Sra. Nakajima é uma mulher de origem distante.

 

O marido da Sra. Adriana cai no chão.

 

O marido da Sra. Adriana faz uma careta de boca aberta e olhos fechados.

 

A Sra. Adriana finge não ver.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

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