Imagem: Rattenkönig c1683
A dicotomia do rato entre a impureza e a evolução. Marlon Anjos pensa a respeito da figura desse animal como um devorador de conhecimentos do submundo, oculto da iluminada mediocridade que arrasta a raça humana.
“Esses novos roedores, que conquistaram o coração das crianças e ali fizeram seus ninhos, expõem, de alguma forma, a necessidade dos artistas em terem a sua obra aceita. Atos rebeldes e subversivos perdem espaço para atos medíocres e bem aceitos.”
“De natal, um rato eu desejei, na esperança de palavras provocantes para um poema que trata da educação da espécie humana. No fundo, eu queria escrever sobre o mar, minha poça d’água báltica; mas o bicho venceu. Meu desejo foi satisfeito. Debaixo da árvore, a surpresa que me esperava era o rato”.
Günter Grass, Die Rättin, 1986
O livro de Günter Grass serviu de inspiração para esse texto. Assim como os ratos fazem com o papel, esse livro foi devorado. Igualmente aos roedores, não pude vomitar o conteúdo do estomago, nem o arrotar. Pois tudo que está aos pés dos ratos é objeto para adoração e deve se manter no centro do corpo.
Alguns contos apresentam o poder da arte frente a qualquer animal. Evidenciam a capacidade mágica de habilidades artísticas em encantar outrem e as coisas. O poder dos contos é desconhecido, talvez por isso, unidade ou conjunto de estórias são protegidas em livros. Que uma vez aberto, ou devorado, revela o sentido do passado no presente. De tal modo que a loucura de épocas passadas corporificadas em contos deve se mesclar ao furor contemporâneo.
Certa vez, Deus fez de uma arca um zoológico, ordenando que Noé levasse sete casais de animais puros, e um casal de animais impuros. Alguns interpretes da bíblia afirmam que Noé não levou os ratos; queria exaltar o seu senhor ao máximo, deixando-os para morrerem afogados no exterior da arca, junto às criações que Deus tinha se arrependido de criar. O seu arrependimento lavaria o mundo ao desfazer a carne e o espírito dos impuros. Os ratos, talvez os mais impuros animais, mereciam a punição, pois desde sua passagem no Éden, de furo a furo, se alimentaram dos ovos da criação e se rebelaram contra o domínio da criação divina, o Homem.
Contudo, sabemos que nenhum barco está livre de ratos. As grandes navegações selaram a amizade entre homens e ratos; a bordo das caravelas e outras embarcações, espalharam-se de seu local de origem. Poucas vezes homem e roedores estiveram tão próximos como numa embarcação, eles infestaram as navegações e se alimentaram da mesma comida que os homens.
Os ratos, esses bichos que foram proibidos de entrar na mítica arca de Noé, acabaram por entrar, sutilmente, na vida das pessoas. De tal forma que as crianças os carregavam para onde fossem, alimentavam-nos em público, dando de comer aos ratos e levando-os para passear. Talvez essa tenha sido apenas uma forma de aborrecer seus pais e familiares. Uma maneira de declarar a sua rebeldia. Assim, os ratos tornaram-se bichos de estimação pendurados nos cabelos de seus donos, aninhados em seus ombros, dessa forma frequentaram missas e batizados juntos às crianças.
Quando ocorreu a adoração satânica rática, crianças vestidas à maneira de seus animais totêmicos invadiram a igreja de São Bonifácio, passando pelos moinhos d’água, celeiros, do mercado até a prefeitura, ocuparam a cidade e declaram a blasfêmia. Os ratos reivindicaram o seu antigo lugar de prestígio negado na arca. Guarnecidos com caudas peladas, saquearam até a sacristia em busca de pão, vinho e carne – nem mesmo a hóstia consagrada deve ter fugido de seu cardápio.
Do alto do púlpito faziam discursos eloquentes contra o grupo de ratos humanos. As pessoas da região não gostavam dos ratos, dos novos ou dos antigos, qualquer um deles era visto como praga. Conselheiros da cidade ousaram por decidir por penas de torturas, estiramento e o ferro em brasa.
Em 1284, entre os dias de São João e São Paulo, em Hamelin, na Alemanha, foi chamado um flautista para higienizar a praga de roedores que arruinava a cidade. Isso porque os ratos conseguiram conquistar e encontrar espaço no coração das crianças, além de encontrar refúgios nas dispensas familiares e instituições religiosas. Nem mesmo os gatos ousaram disputar com os ratos o domínio da região.
O flautista, com seus encantos, o auxílio da música, poderia por meio da arte transformar seu instrumento em um raticida. Cobraria uma moeda por cabeça de rato. Com sua flauta hipnotizou os ratos, que se afogaram no rio Weser. Talvez por ironia, os ratos que não morreram no dilúvio divino encontraram seu fim na água profunda.
Apesar do sucesso, as pessoas da cidade se negaram a pagá-lo pelo serviço prestado, afirmando que ele não havia apresentado nenhuma cabeça dos animais como combinado. Além disso, afirmaram que era muito dinheiro para pagar a alguém que apenas tocava flauta. O homem deixou a cidade, furioso pela avareza e a ingratidão dos cidadãos de Hamelin, voltou várias semanas depois, e quando todos estavam na igreja, tocou mais uma vez a flauta atraindo agora as crianças. De braços entrelaçados e sorrisos evidentes, as crianças da cidade o seguiram. O flautista as levou para uma gruta, onde selou a parede, deixando que fossem tragadas pela terra. Foi dito que em 26 de junho do ano de 1284, cento e trinta crianças seguiram o aliciador que, segundo consta, teria tocado maravilhosamente bem a flauta.
Daí que podemos pensar que quem encanta ratos também encanta crianças. Ou seja, quem domina o impuro, domina o público.
O nojo inato aos ratos fez com que os homens, por muitos anos, os riscasse da lista dos animais que respiram. Ódio e desejo em eliminá-los. Assim, os ratos não foram apenas perseguidos mais também negligenciados. Para esses animais apenas restou conhecer a partilha entre os iguais. Conhecer o porão, a dispensa e cada esconderijo distante do olhar perseguidor. Desta maneira formaram o rei dos ratos, um símbolo da união para o bem comum.
Morrer de fome tornou-se uma benção de Deus, uma maneira de ajudar Cristo a carregar a cruz. Os ratos não participariam dessa dieta. Os roedores não estavam dispostos a pagar o pedágio do jejum para se manter no Éden.
A expressão rato de biblioteca possui a sua verdade. Em tempos de fome, comeram o que havia. Os ratos engordaram com a sabedoria desses locais, tornaram-se eruditos de tanto comer pergaminhos velhos, livros e enciclopédias, as páginas de livros empoeirados foram saboreadas cotidianamente. Não há biblioteca ou convento que não tenha aumentado a sua inteligência. Isso fez com que os ratos pudessem reivindicar o seu espaço na mítica arca. E foi por meio do conhecimento dos homens que viram a oportunidade de crescer. A questão dos ratos sempre foi um preceito bíblico: Multiplicai-vos! E assim fizeram.
Primeiro apareceram nos comércios os ratos brancos de olhos vermelhos, conhecidos como ratos de laboratório, depois aqueles que eram alimentos de cobras e aves; como a coruja, por exemplo. Vale frisar que o rato também é importante para a cadeia alimentar, sendo alimento de animais silvestres. Contudo, como alimento ou como animal doméstico, os ratos tornaram-se públicos.
Os punks, que desde o surgimento constituíram uma minoria, mas em alguns bairros dominaram, foram associados com a imundície e com a impureza. Talvez por isso os Punks compravam ratos, que carregavam com carinho em seus ombros, seus bolsos ou em seus peitos com as camisas abertas. Não davam um passo sem o animal eleito, provocando nojo em toda parte. O asco encontrava seu corpo equivalente, e o rato passeava pela cidade. De alguma forma, formaram um todo com seus roedores. Desde que viram punks andarem com ratos, eles teriam entrado na moda. É inegável, o movimento punk foi uma revolução.
Assim sendo, cento e trinta ou mais voltaram a caminhar e festejar a novidade ratídica. Seu culto rático herético foi creditado como movimento moderno. Séculos escondidos em velhos conventos, bibliotecas empoeiradas e despedaçadas, entre outros lugares, para surgir na modernidade ocupando o espaço abaixo dos holofotes.
Ocupar o cinema e a animação foi apenas uma questão de vaidade, uma vingança pelos séculos na ignomínia. Em Pink Floyd, The Wall, em 1982, para citarmos um exemplo, participaram do emotivo e simbólico velório. No vídeo o rato talvez seja o único vínculo de carinho recíproco que o protagonista estabelece – uma maneira de reconhecer o valor dos roedores para os homens. Ao encontrar o roedor em uma planície, a criança carrega junto ao peito o rato e lhe presenteia com um lar, retira o seu suéter do próprio corpo ainda quente para acomodar o roedor. Esse belo vínculo de amizade apenas poderia acabar em tragédia. Adoecem juntos. Após a morte do roedor, o mesmo é lançado na água. Essa cena pode representar a primeira desilusão da vida do protagonista. Contudo, os ratos devem ter gostado tanto dessa interação que na caixa musical de Skinner até tocaram another brick in the wall.
Muitos ratos já contribuíram com os humanos. A importância dos ratos nas pesquisas laboratoriais é inegável. Grandes feitos foram realizados usando esses animais. Assim, podemos afirmar que os ratos alteraram o rumo das ciências. Eles também aguçaram o nosso senso crítico. Comeram muitos filmes ruins, além de outras obras. Até a roupa do rei foi comida! Talvez não fosse uma vestimenta de bom gosto. Ensinaram-nos com esse ato crítico e cruel a sermos seletivos. Viraram até o carro chefe de várias marcas. O que nos leva a pensar num novo culto à figura do roedor, pois adentraram sutilmente em todas as casas modernas e tornaram-se seres de adoração. Tal que podemos afirmar que os roedores mijaram e defecaram novas marcações.
Em 2003, a equipe de pesquisa do Instituto Genoma Humano, e de várias outras universidades, compararam o material genético do homem com o de vários outros animais. Concluíram que o nosso DNA é mais parecido com o dos roedores do que com o dos carnívoros. Talvez por isso Banksy tenha visto esse animal de cauda pelada e focinho comprido como o totem do homem moderno, pois grafitou em uma parede em Bristol que o rato era o animal equivalente ao homem. Dessa forma, o rato foi eleito o animal da modernidade.
A maioria dos ratos possuí hábitos noturnos. Compensam a suas limitações visuais com grande senso de audição. Blek le Rat, na década de 1980, agiu como um rato, da noite para o dia imprimia suas imagens de roedores nas paredes das ruas francesas. Ele escreveu o rato como o único animal livre na cidade, aquele que espalha a praga em todos os locais, tal como a arte de rua. Em suas mãos o rato virou um anagrama para arte. (art – rat).
Neste momento, vale informar que me veio à mente uma pichação, no Butantã, próximo da USP, em que pode ser lido: Ratos Fazem arte! Artistas fazem dinheiro! Acho que quem produziu essa pichação sabia muito bem do que estava falando.
O rato, por ser guloso, foi sempre fácil de ser capturado. E Banksy os capturou. Utilizou a mesma técnica de Blek le Rat e os multiplicou pelas cidades. O fato de Banksy utilizar os roedores não agradou Blek le Rat, que os usava como sua marca, e revogou para si o totem, ocasionando uma briga de “patente” que percorre décadas. Seja como for, ou de quem for o direito de propriedade sobre os roedores urbanos, a briga humana apenas serviu para aumentar a adoração aos ratos.
Se os ratos podem, ao menos, ser associados aos pichadores e grafiteiros, ou melhor, aos artistas subversores, constitui uma questão em aberto. Eu gosto de pensar que sim.
O fato é que atualmente, com a grade explosão e demanda por animais fofinhos, os roedores domésticos estão em alta. De porcos da índia, chinchilas a hamsters, a cidade está repleta deles. Corporificam uma verdadeira febre entre as pessoas. Uma praga que explora o esteticamente aceito, devido à alta vulnerabilidade crítica.
A alta demanda pelos animais puros de pelos limpos retorna, apresentando o agradável como natural, e o Limpo como belo. O que demonstra o baixo nível da atual arte, especialmente a urbana, assim como nossos atos de rebeldias. O desejo por ratos limpos e fofos constitui um ato simbólico que demonstra, além das nossas preferências, o nosso comportamento. Esses novos roedores, que conquistaram o coração das crianças e ali fizeram seus ninhos, expõem, de alguma forma, a necessidade dos artistas em terem a sua obra aceita. Atos rebeldes e subversivos perdem espaço para atos medíocres e bem aceitos. O rato de hoje possui classe e não caminha mais no submundo, prefere os corredores iluminados das galerias e dos museus.
Temos que ter em mente que esses não são ratos de bibliotecas e nem de laboratórios, mas ratos domésticos. Tão domésticos como o quadro que é comprado para ficar em cima de um sofá. Não alcançaram a sabedoria, mas apenas o coração generoso dos homens. E mais uma vez a flauta demonstra seu poder de atração, arrastando as crianças para serem engolidas pela terra. Temo em dizer que os ratos biologicamente verdadeiros estão em extinção.
Cara, eu achei isso lindo