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Estou entre os que adoram olhar o verso do texto, mas que são levados pra lá pela observação de sua frente; entre os que o atravessam e que creem que a travessia é o mais importante, afinal de contas “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
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De que serve a literatura? É preciso muita autoconfiança, quando não mera prepotência, para responder a uma pergunta como essa, que provavelmente demanda mais ponderações do que asserções. Basta fazer uma pesquisa simples para descobrirmos que não foram poucas as pessoas que se arriscaram a tal resposta, às vezes considerando expor a verdade suprema, às vezes mais uma verdade sobre o assunto, às vezes simplesmente colocando em xeque aqueles que já a tenham respondido. Há também quem busque disfarçar sua prepotência ou autoconfiança com uma reformulação da pergunta que muitas vezes não passa de velado eufemismo. Creio ser esse o caso deste texto.
Não tenho, ou ainda não tenho, a intenção de ser teórico da literatura, nem mesmo teórico do que quer que seja. Minha ganância na literatura é outra, meus desejos e minhas investidas buscam outro alvo dentro desse campo; entretanto, não consigo deixar de me preocupar com a utilidade de todo meu empenho dentro dos estudos literários, tenha ele relações diretas ou indiretas com a literatura, seja ele válido ou não. E nem digo da utilidade para o próprio campo de estudo, pois isso, por incrível que possa parecer, é algo que muitas vezes depende menos da qualidade do que se desenvolve do que do lugar e da condição em que se encontram os que desenvolvem; digo daquela utilidade para o mundo exterior aos estudos literários, já que é muito difícil não olhar pra fora do seu próprio e confortável horizonte quando ele nem é tão amplo assim. Falo daquele papo de “o que você dá ao mundo fazendo o que faz” que é encarado com pouca paciência por muitos dos que estão dentro do dito campo – dos quais sem dúvida nenhuma eu faço parte. Falo de mim, então, mas sei que não estou sozinho.
Quero dizer que é difícil perceber se você interfere de maneira positiva no ambiente social em que se insere, ou se não passa de peso morto, quando você trabalha com um objeto que, aparentemente, não serve pra muita coisa que não divertir, passar o tempo, onerar alunos ou seduzir o sono quando ele insiste em permanecer em pé ao lado da cama. Bom, tudo isso já é uma utilidade para a literatura; temo, porém, que não sejam esses os motivos pelos quais escolhi trabalhar com ela. Mas principalmente sei que não são os motivos pelos quais eu gostaria de definir o meio pelo qual decidi me colocar na sociedade profissionalmente; não me basta ser o cara que é pago para ler, veja só que maravilha! (como se só lêssemos o que gostamos e o que queremos), ou que é deboísta de humanas mesmo, então que se dane porque o que a gente faz direito é miçanga (de acordo com uma auto-esteriotipação disfarçada em um olhar cínico sobre si próprio cuja maior realização é desobrigar aqueles que o proclamam de colocar-se em questão para si mesmos). Dizer que gosto de literatura e que assim ganho meu dinheirinho de maneira honesta e sem perturbar ninguém tem deixado de me agradar ultimamente, visto que cada vez mais soa um egoísmo mesquinho, pra não dizer outra coisa.
Muitas vezes, responder a essa pergunta é, em última análise, mais um convencer-se do que um convencer os outros; mas não dizem por aí que é difícil convencer alguém de algo sobre o que nem você próprio se convence? Talvez com cinismo seja possível, mas tudo bem. Fiquemos com o que se diz e sem outros rodeios: num exercício de Zeno, escrevo sobre minha própria consciência, e se não convencer ninguém de nada, que ao menos me sirva de terapia. Vamos ver.
Há umas colunas (aqui), aleguei que a tradução pode revelar um exercício de relação com o outro, relação essa que o fruir a literatura só tem a potencializar. Não sei se gosto de expressões como “a literatura me faz viajar a outros mundos, me apresenta a outras culturas, me leva a outros tempos, etc., etc.”, mas não posso deixar de considerar que tais efeitos causados por ela são, de fato e em vários sentidos, fantásticos. Além do mais, cheguei a ela justamente por isso, e por isso aqui me mantenho. Conhecer o Miguilin de Guimarães Rosa e os campos gerais que o cercaram durante sua meninice e o receberam novamente já adulto foi, por certo, uma das melhores experiências de convivência que a literatura me possibilitou. Buscar identificar elementos textuais que me levaram a essa experiência foi tão recompensador quanto tê-la, ainda que de uma outra forma: uma me ensinou a doçura de Miguilin e a inocência no olhar de uma criança colocando em mim os olhos, o raciocínio e a voz do menino, enquanto a outra me revelou a perícia do autor por trás das palavras: esta é experiência de quem estuda a literatura; aquela, de quem a lê; este é aquele que olha a frente de um bordado, aquele, o que olha o verso. E achar-se entre o que olha a frente e o que olha o verso tem muito a ver com o colocar-se com esse conhecimento na sociedade.
Há, porém, um fato curioso nessa dupla condição, chamemos assim, de quem estuda literatura, uma vez que geralmente se estabelece um abismo entre a frente e o verso do texto, com grandes hostes posicionadas de cada um dos lados trocando acusações: “vocês estão dentro de uma torre de marfim!”, gritam uns, enquanto os outros vociferam “assassinos! vocês matam a literatura ao não levar em conta os meandros de seu feitio!” Briga tosca, que busca mais terreno para cada um dos lados do que para a própria literatura. E não é fácil tomar partido nesse campo de batalha, até porque ambos os lados estão certos em alguma medida: desprezar as experiências que um texto possa despertar as relegando unicamente ao inconsciente, ao exclusivamente subjetivo, é ato que beira o improdutivo, pois, nas últimas consequências, exime qualquer um de tentar provocar uma reflexão naquele que lê propondo-lhe determinado texto; por outro lado, desconsiderar aspectos textuais que parecem conduzir o leitor a determinadas sensações, ou ao menos que parecem servir-lhes de gatilho, e assim relegar a literatura à experiência do sagrado, à experiência do místico (lê e sente; caso não sintas, é porque não tirastes o véu), mal vendo que é necessária a educação do olhar daquele que acaba de se ver em terreno muitas das vezes completamente desconhecido é igualmente improdutivo, se não mais.
Mas eu falava de mim e de como me vejo, ou quero me ver, estudante/professor de literatura na sociedade. Falava de como penso na utilidade da literatura durante essa tentativa de não me sentir um completo inútil com uma estante cheia de livros. Falava do que tenho para oferecer, então, e de que serve o que tenho para oferecer. Estou entre os que olham frente e verso dos textos e entre os que creem na utilidade de ambos os olhares. Estou entre os que são contrários à acomodação daqueles que se colocam em um dos lados do abismo (eles existem em ambos os lado, é forçoso que se diga) e se recusam, por puro comodismo, a estabelecer meios pelos quais os dois lados possam se relacionar e aproveitar conhecimentos e experiências uns dos outros. Estou entre os que adoram olhar o verso do texto, mas que são levados pra lá pela observação de sua frente; entre os que o atravessam e que creem que a travessia é o mais importante, afinal de contas “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Ensinar é guiar travessias, apontar caminhos, sugerir percursos, apresentar explicações para os detalhes que surgem durante a caminhada e esperar que as pessoas que se embrenharam contigo na travessia possam aproveitá-la não somente para conhecê-la, mas para experienciá-la, para viver sensações, sentimentos e olhares outros durante o trajeto. Quem ensina literatura, portanto, ensina um objeto incrivelmente produtivo para que se viva com o outro, ou para que se viva o outro; ensina algo que conduz a experiências e emoções às vezes imprevisíveis; mas não deve ensinar emoções, não deve ensinar experiências. O que não significa, em absoluto, que este guia não deve apontar caminhos, muito menos que não deve mostrar como eles foram abertos, já que a arte não está só no efeito que produz, mas também no como produz ou induz determinado efeito. A condução por coleiras certamente não é o melhor jeito de se aproveitar um passeio, mas contar das experiências que ele possibilita e se recusar a esclarecer os caminhos que podem levar a elas, se não é prender-se em torre de marfim, é no mínimo tratar cinicamente a capacidade de passear do outro.
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