[vc_row][vc_column][vc_column_text]
Imagem: Escena de guerra – Goya – 1812
[/vc_column_text][vc_column_text]Leandro Cardoso, rememorando o ocorrido entre professores e policiais militares em Curitiba no mês de abril deste ano, nos fala sobre a formação da dor; e sobre como a literatura pode – e deve – manter a ferida aberta.
[/vc_column_text][vc_column_text]
“Assim age a literatura em sua função de testemunho – seja da dor, da barbárie ou do que for; e age assim porque é, talvez antes de qualquer outra coisa, possibilidade de reencarnação da experiência.”
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Certamente não há exageros em dizer que grande parte de nós ficou chocada com as lamentáveis cenas da investida da Polícia Militar do Paraná contra professores, alunos e demais servidores públicos no último 29 de abril. Os relatos e as imagens feitos pelos que estavam presentes na Praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cívico da capital paranaense, chocam ao darem testemunho da desmesura com que uma manifestação pacífica foi – novamente sem exageros nossos – massacrada. Esse testemunho, por sua vez, é fundamental para que o evento não seja esquecido e transcenda a memória e a carne dos que foram obrigados a passar por aquela situação, evitando, assim, que o sangue derramado se coagule na triste história de um estado já reincidente em repressões violentas e chocantes. A literatura, um produto estético que surge da relação entre autor e mundo para reencarnar no leitor, abre-se, pois, à possibilidade de ser uma forma de testemunho, um discurso que surge em uma situação específica em que um evento percebido assoma à mente de quem o percebe de tal forma que acaba impregnando as mais diversas manifestações desse sujeito – sua testemunha. E por quê?[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Porque a formação das imagens parece se dar, no poeta, como em qualquer pessoa, por um processo bastante ativo, visto que a atribuição de contornos ao objeto percebido sofre influências de diferentes fatores: conhecer alguém em um dia de fúria, ou em um dia de peace and love pode emprestar traços significativos à imagem que dele criamos, assim como quando olhamos a fachada da nossa própria casa ao sairmos para trabalhar ou ao nos despedirmos dela rumo a novos ares. E ainda que corramos o risco de cairmos nos vícios da crítica biográfica, é impossível negar a influência que a situação da percepção, assim como o seu agente e o seu objeto, têm sobre o trabalho do poeta.
A produção literária pós-Holocausto é um bom exemplo para pensarmos essa questão, pois é possível observar, nela, um esforço em oferecer ao leitor elementos que o levem a tomar consciência e, mais que isso, a experienciar algo específico do evento testemunhado. Em outras palavras, pode-se dizer que nela os poetas buscam oferecer, ao leitor, uma possibilidade de encontro na dor, marcando-o com um ferrete que, mesmo não aceso no fogo que os assinalou, ainda assim está em brasa:[/vc_column_text][vc_column_text]
Funesfuga
[/vc_column_text][vc_column_text]
Paul Celan por Mauricio M. Cardozo (trecho)
Leite breu da aurora bebemos de tarde
bebemos de dia bem cedo bebemos de noite
bebemos bebemos
cavamos a cova no ar não se espreme ninguém
um homem na casa brinca com cobras e escreve
escreve à Alemanha, anoitece
cabelos de ouro, Margarete.
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Outro exemplo: durante as manifestações ocorridas em Junho de 2013, veio à luz a antologia Vinagre – uma antologia de poetas neobarrocos, em que vários autores davam testemunho das marchas que viam. Agindo assim, pois, eles também levavam seus leitores às ruas, a eles oferecendo uma experiência daquilo de que o poema era um testemunho:[/vc_column_text][vc_column_text]
Sófocles Livre
[/vc_column_text][vc_column_text]
Fábio Aristimunho Vargas
– Que gesto abriria
(ri Creonte) o código-fonte
da democracia?
Antígona cala
as teclas. Junta uns asseclas.
E a Ágora é quem fala.
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Assim age a literatura em sua função de testemunho – seja da dor, da barbárie ou do que for; e age assim porque é, talvez antes de qualquer outra coisa, possibilidade de reencarnação da experiência. A literatura cria um espaço atemporal em que é possível experienciar aquilo do que ela é testemunha – Leminski, já que falávamos de Curitiba: lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz? Para terminar, porque clássico é aquilo que fala, também, além de seu contexto, deixo aqui a primeira parte – Cuarto de banderas – da Escena del Teniente Coronel de la Guardia Civil, do grandíssimo Federico Garcia Lorca (Poema del Cante Jondo, 1921), que nos deu tantos testemunhos de intolerância, mas também de como é bela e forte a voz que canta, aos ouvidos dos intolerantes, descompassada.[/vc_column_text][vc_column_text]
Cena do Tenente-Coronel da Guarda Civil
Sala das Bandeiras
[/vc_column_text][vc_column_text]
Tenente-Coronel: Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.
Sargento: Sim.
Tenente-Coronel: E não há quem possa me desmentir.
Sargento: Não.
Tenente-Coronel: Tenho três estrelas e vinte cruzes.
Sargento: Sim.
Tenente-Coronel: Cumprimentou-me o Cardeal Arcebispo com suas 24 borlas púrpuras.
Sargento: Sim.
Tenente-Coronel: Eu sou o tenente. Eu sou o tenente. Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.
[Romeu e Julieta, azul, branco e dourado, se abraçam no jardim de tabaco da caixa de charutos. O militar acaricia o cano de seu fuzil cheio de sombra submarina. Uma voz, de fora]
Lua, lua, lua, lua,
do tempo da cacatua.
Cazorla mostra sua torre
e Benamejí a oculta.
Lua, lua, lua, lua.
Um galo canta na lua.
Senhor alcaide, as meninas
estão admirando a lua.
Tenente-Coronel: O que é isso?
Sargento: Um cigano!
[O olhar de mula jovem do ciganinho ensombrece e agiganta as pupilas do tenente-coronel da Guarda Civil.]
Tenente-Coronel: Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.
Sargento: Sim.
Tenente-Coronel: Tu, quem és?
Cigano: Um cigano.
Tenente-Coronel: O que é um cigano?
Cigano: Qualquer coisa.
Tenente-Coronel: Como te chamas?
Cigano: Isso.
Tenente-Coronel: O quê?
Cigano: Cigano.
Sargento: Eu o encontrei e então o trouxe.
Tenente-Coronel: Onde estavas?
Cigano: Na ponte dos rios.
Tenente-Coronel: Mas de quais rios?
Cigano: De todos os rios.
Tenente-Coronel: E o que fazias aí?
Cigano: Uma torre de canela.
Tenente-Coronel: Sargento!
Sargento: Às ordens, meu tenente-coronel da Guarda Civil!
Cigano: Eu inventei umas asas para voar, e voo. Enxofre e rosas em meus lábios.
Tenente-Coronel: Ai!
Cigano: Embora eu não precise delas, porque voo sem elas. Nuvens e anéis em meu sangue.
Tenente-Coronel: Aii!
Cigano: Em janeiro tenho flores de laranjeira.
Tenente-Coronel: [retorcendo-se] Aiiiii!
Cigano: E laranjas na neve.
Tenente-Coronel: Aiiiii! Pum, pim, pam. [Cai morto.]
[A alma de tabaco e café com leite do tenente-coronel da Guarda Civil sai pela janela.]
Sargento: Socorro!
[no pátio do quartel, quatro guardas civis golpeiam o ciganinho]
o pátio do quartel, quatro guardas civis golpeiam o ciganinho]
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]