Literatura

um caso de sulpícia(s)

 

Mas de que serve superar doenças, se tu

indiferente assistes os meus males?

 

sulpícia é um dos pouquíssimos exemplares de poesia feminina em roma. tudo indica que teria vivido no período de augusto, provavelmente filha de sérvio sulpício, e que, como sobrinha de messala corvino, teria participado do círculo de poetas em torno desse patrono. a mínima poesia de sulpícia sobreviveu até os nossos dias dentro do corpus tibullianum (poemas ligados ou tradicionalmente atribuídos ao poeta tibulo), na série que vai do poema III, 13 ao III, 18.

nesses dísticos elegíacos – verdadeiros epigramas em sua brevidade – ela se dirige a cerinto, provável pseudônimo para cerinto cornuto, seu amado. assim, o que temos é uma inversão das tópicas gerais da elegia erótica romana, sempre nas vozes masculinas. aqui é a mulher quem pena pelo desinteresse de um homem; em vez do lugar comum do homem submetido à mulher. interessante é notar que na elegia há uma inversão dos papéis regulares da cultura patriarcal romana (o homem submetido à mulher, perde sua virilidade política e submete-se à escravidão do amor; a mulher torna-se domina, senhora de seu escravo).

ora, a elegia era, em grande parte, um jogo literário em que as inversões poderiam funcionar como humor na cultura romana. a pergunta que se poderia apresentar é: como podemos ler a inversão da inversão? reverter o processo, tal como faz sulpícia, é apresentar o mundo amoroso tal como ele era? ou, mais que isso, é duplicar o sentido da elegia e formular uma contrapolítica amorosa por dentro do gênero? até pouco tempo atrás, a poesia de sulpícia era vista como mera curiosidade feita por uma amadora; porém nos últimos 30 anos estudos diversos surgiram, com interesse nessa poética complexa que emerge dos poemas. a questão de gênero (genre & gender) nos dá possibilidade de entrever outras possibilidades para a poesia antiga; ao mesmo tempo em que podemos ver uma mulher em pleno domínio da técnica epigramática e da tópica da elegia erótica.

no entanto, ao mesmo tempo, houve quem indicasse que os poemas não teriam sido escritos por uma mulher, mas sim por um homem que assumiria o papel de sulpícia como exercício literário. o argumento é que tal exposição da vida amorosa seria um risco para uma aristocrata romana. o jogo todo se torna ainda mais complicado se levamos em consideração outra série de poemas do corpus tibullianum, que vão de III, 8 a III, 12, tradicionalmente atribuídos a um amicus sulpiciae (amigo de sulpícia) que teria desenvolvido os epigramas da poeta até o formato de uma elegia.

como em quase tudo na literatura antiga, restam-nos muito mais perguntas que respostas. a meu ver, independentemente da origem da escrita (homem, mulher, amadora, profissional, número de máscaras para sulpícia, cerinto, o amicus escritor), o que temos é uma possibilidade da voz feminina na poesia romana. e essa voz se faz como poesia e como inversão de aspectos dos gêneros. por isso apresento abaixo os 6 poemas de sulpícia em traduções minhas e do curioso obscuro (pseudônimo de aires de gouveia, 1828-1916); além disso, apresento ainda a tradução de um dos poemas atribuídos ao amicus, para que vocês tenham uma ideia das diferenças e pensem nas possibilidades interpretativas.

 

I.

Tandem uenit amor, qualem texisse pudori
quam nudasse alicui sit mihi fama magis.
Exorata meis illum Cytherea Camenis
adtulit in nostrum deposuitque sinum.
Exsoluit promissa Venus: mea gaudia narret,
dicetur siquis non habuisse sua.
Non ego signatis quicquam mandare tabellis,
ne legat id nemo quam meus ante, uelim,
sed peccasse iuuat, uultus conponere famae
taedet: cum digno digna fuisse ferar.

 

I (III, 13)

Chegou-me emfim o amor, e tal que eu mais desejo
de a qualquer o mostrar, que de oculta-lo em pejo.
Cytherea o guiou, rendida aos versos meus,
e veio-m’o depor no selo a amar, sem veus.
Venus os dons solveu; minha alegria pura
narre, quem sua amante embalde inda procura.
E quanta e quanta foi, nem quero eu escrever;
porque, antes dele, alguem não vá curioso ler.
Mas ter pecado encanta; e enoja-o fama escura:
saibam que digna fui co’um digno do prazer.

(trad. Curioso Obscuro)

 

II.

Inuisus natalis adest, qui rure molesto
et sine Cerintho tristis agendus erit.
Dulcius urbe quid est? an uilla sit apta puellae
atque Arrentino frigidus amnis agro?
Iam nimium Messalla mei studiose, quiescas,
heu tempestiuae, saeue propinque, uiae!
Hic animum sensusque meos abducta relinquo,
arbitrio quamuis non sinis esse meo.

 

II (III, 14)

Eis o odioso natal, que na molesta aldeia,
e sem o meu Cerintho, hei de passar! que idéa!
Que ha melhor que a cidade? a aldeia ás moças diz?
Volve-as, no prado Arezo, o frio Arno gentis?
Não cances mais, Messala, em me estudar jornadas,
nem corras tanta vez incomodas estradas.
Mas, pois que o arbitrio meu não vale sobre os teus,
cá deixo, no partir, minh’alma e os olhos meus.

(trad. Curioso Obscuro)

 

III.

Scis iter ex animo sublatum triste puellae?
natali Romae iam licet esse suo.
Omnibus ille dies nobis natalis agatur,
qui nec opinanti nunc tibi forte uenit.

 

III (III, 15)

Sabes que ela tirou da mente a triste viagem?
E vai passar em Roma o aniversário.
O aniversário, então, nós dois o festejemos,
pois veio inesperado para ti.

(trad. Guilherme Gontijo Flores)

 

IV.

Gratum est, securus multum quod iam tibi de me
permittis, subito ne male inepta cadam.
Sit tibi cura togae potior pressumque quasillo
scortum quam Serui filia Sulpicia:
Solliciti sunt pro nobis, quibus illa dolori est,
ne cedam ignoto, maxima causa, toro.

 

IV (III,16)

Eu gosto que, seguro de mim, muito a ti
permitas, e eu não caia como tola.
Mais te agrade a toga e a puta com um cestinho
que Sulpícia, de Sérvio simples filha:
preocupam-se comigo os que por ela sofrem,
por que eu não saia ao leito de um qualquer.

(trad. Guilherme Gontijo Flores)

 

V.

Estne tibi, Cerinthe, tuae pia cura puellae,
quod mea nunc uexat corpora fessa calor?
A ego non aliter tristes euincere morbos
optarim, quam te si quoque uelle putem.
At mihi quid prosit morbos euincere, si tu
nostra potes lento pectore ferre mala?

 

V (III,17)

Cerinto, tu não tens piedade da menina
Se a febre me perturba e turva o corpo?
Ah! eu nem tentaria superar a dura
doença, se achasse que também não queres.
Mas de que serve superar doenças, se tu
indiferente assistes os meus males?

(trad. Guilherme Gontijo Flores)

 

VI.

Ne tibi sim, mea lux, aeque iam feruida cura
ac uideor paucos ante fuisse dies,
si quicquam tota conmisi stulta iuuenta,
cuius me fatear paenituisse magis,
hesterna quam te solum quod nocte reliqui,
ardorem cupiens dissimulare meum.

 

VI (III, 18)

Não quero ser, querido, um férvido tormento
parece que passaram poucos dias –,
se em tola juventude algo eu cometi
que mais me doa agora confessar,
do que ter te deixado a sós, noite passada,
pois quis dissimular o meu ardor.

(trad. Guilherme Gontijo Flores)

 

III, 11 (amicus Sulpiciae)

Qui mihi te, Cerinthe, dies dedit, hic mihi sanctus
    atque inter festos semper habendus erit.
Te nascente nouum Parcae cecinere puellis
    seruitium et dederunt regna superba tibi.
Vror ego ante alias: iuuat hoc, Cerinthe, quod uror,     
    si tibi de nobis mutuus ignis adest.
Mutuus adsit amor, per te dulcissima furta
    perque tuos oculos per Geniumque rogo.
Mane Geni, cape tura libens uotisque faueto,
    si modo, cum de me cogitat, ille calet.               
Quod si forte alios iam nunc suspiret amores,
    tunc precor infidos, sancte, relinque focos.
Nec tu sis iniusta, Venus: uel seruiat aeque
    uinctus uterque tibi uel mea uincla leua.
Sed potius ualida teneamur uterque catena,               
    nulla queat posthac quam soluisse dies.
Optat idem iuuenis quod nos, sed tectius optat:
    nam pudet haec illum dicere uerba palam.
At tu, Natalis, quoniam deus omnia sentis,
    adnue: quid refert, clamne palamne roget?              

 

III, 11 (amigo de Sulpícia)

O dia que me deu Cerinto será santo,
será sempre festivo para mim!
Quando nasceste, as Parcas entoaram nova
escravidão às moças, teus reinados.
Eu ardo mais que as outras; amo o ardor, Cerinto,
se queimares por mim num fogo mútuo.
Que mútuo seja o amor, a ti furtivos gozos
peço; peço aos teus olhos, ao teu Gênio:
ó Gênio matinal, aceita incenso e votos,
se ele se abrasa quando pensa em mim!
Porém, se acaso suspirar por outro amor,
peço-te: deixa, ó santo, o lar infiel.
Sê justa, Vênus: gera igual escravidão
para os dois ou enlevá-o no meu laço.
Melhor será sofrer na pesada corrente
que nenhum dia pode desatar.
Ele deseja o mesmo, mas é mais silente,
pois tem pudor de confessar em público.
Mas tu, Gênio Natal, ó deus que tudo escuta,
anui; que importa se é secreto ou público?!

 

 

post-scriptum: “a outra sulpícia”

há registro de outra poeta chamada sulpícia em roma, que teria vivido sob o império de domiciano. ela é elogiada por marcial (epigrama X, 35 e X, 38) como uma poeta capaz de cantar o amor marital com caleno numa forma repleta de paixão e erotismo. marcial chega mesmo a compará-la a safo, enquanto ausônio (centão nupcial) diz que sua poesia era de fato sexualmente excitante. certamente é por isso que, um século depois, o bispo sidônio apolinário não indicava a leitura de suas obras. é provável que tenha morrido em cerca de 98 d.c., antes de seu marido. o que explicaria os louvores de marcial como um texto escrito no momento, como consolo ao marido.

infelizmente, temos apenas dois versos que nos chegaram através dos escólios às sátiras de juvenal (VI, 635). são os seguintes:

 

Si me cadurci restitutis fasciis
nudam Caleno concubantem proferat.

Se de novo, envolvidos todos os lençóis
me apresentar deitada e nua pra Caleno

 

a tradução da passagem é difícil pela sua especificidade: o escoliasta comenta exatamente o uso raro de carducum, as faixas que ajudam a sustentar o colchão e o leito; mas que também serviria para indica a vulva.

porém como é incerto o sujeito de proferat (“apresentar” “expor”), há outra em outra leitura, um pouco mais compreensível:

 

Lux me cadurci dissolutis fasciis
nudam Caleno concubantem proferat

E que a luz, revolvidos todos os lençóis,
me apresente deitada e nua pra Caleno

 

de qualquer modo, temos nestes dois versos um acontecimento único na poesia romana: a voz de uma mulher que deseja o sexo com seu marido, e não a cumpridora submissa do seu papel de matrona como procriadora da estirpe e mantenedora do lar.

 

dois livros bacaníssimos pra quem se interessar pelo assunto

* Stevenson, Jane. Women Latin poets: language, gender & authority from Antiquity to the eighteenth century. Oxford University Press: Oxford, 2005 (667 pp.).

esse calhamaço apresenta & discute uma lista imensa de poetas mulheres ao longo de quase dois mil anos. é uma chance rara de vermos o papel da escrita feminina numa história literária em que sempre predominaram os machos brancos.

 

* Skoie, Mathilde. Reading Sulpicia: Commentaries 1475-1990. Oxford: Oxford University Press, 2002. (376)

este livro apresenta, em vez de um estudo próprio sobre a poesia da primeira sulpícia, uma revisão de toda a história de sua recepção (sob o viés teórica da hermenêutica de gadamer) ao longo de cinco séculos. é uma peça importantíssima, já que com ela podemos ver como, ao longo dos últimos séculos os estudiosos formularam suas leituras para um caso excepcional da poesia romana, a voz feminina.

 

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

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