Literatura

Retrato dela aos quase 30

Uma homenagem inédita e das mais preciosas feita por Guilherme Gontijo Flores, em uma obra autoral que tem sua estreia aqui na R.Nott. Confira, vale a pena.

“vejam só, a copa com seus tratores segue em frente, terá começado antes deste post, & os nossos índios — estes que todos somos — seguem pagando pela alma selvagem…”

 

pré-escrito

eu & ela nascemos no re-início da democracia neste país, mas crescemos vendo quantos pingos ainda & sempre faltam nos i’s, se a gente quiser mesmo falar de democracia, ou ao menos de uma democracia que nos interesse. vejam só, a copa com seus tratores segue em frente, terá começado antes deste post, & os nossos índios — estes que todos somos — seguem pagando pela alma selvagem… ah, a lista mal iniciada dos males poderia seguir longe.

são 30 anos meus e dela (da democracia, da bem amada?), são 13 anos juntos (13 em que viramos maiores de idade: feliz coincidência?), são 2 filhos — 1 na barriga. é certo que na minha cabeça não haverá diferença clara entre erótica, poética, ética & política: a gente foi fazendo de tudo, como dava, como dá.

enfim, eu preciso (?) justificar ou me desculpar pelo poema: esta deveria ser uma coluna sobre literatura, não um espaço pra minha literatura, muito menos pra minha poesia amorosa. mas quem vai garantir que ela (a bem amada? a poesia? a democracia?) é menos política, menos poética e crítica por também amorosa?

esta coluna também é sobre vocês. mas esta coluna — aguentem — vai pra nanda, como tudo em tanto tempo.

 

||nem difere do outro retrato|nunca
escrito|o brilho dourado da infância|
nossa expressão irônica|ora trunca
o olhar & turva|então retorna em ânsia
pelos entornos|fora uma criança
corre&grita&pula|nesta espelunca
que soubemos moldar em casa|& nunca
para|por dentro outra criança|vai
que dá|que chuta&gira&espeta|&logo
devolve o velho brilho|em & ou ou
de quem hesita por saber se sai|
sorrio&interrompo aquele jogo|
vai que dá|& a pequena|dá que eu vou|

|nosso país insiste|& mais chafurda|
aonde?|alguém pergunta|gente lerda
que quer mais de meia palavra|& herda
a coisa toda|enquanto a tropa curda|
que tipo de soneto é esse?|a corda
enlaça no pescoço|estamos longe
disso|a casa é uma ilha|não tão longe
quanto se imagina|e a mesma corda
nos une a tudo|a gente tenta&inventa
as possibilidades da alegria|
enquanto a massa se extermina|a copa
se faz em gás lacrimogêneo|& assenta
a dor no olhar alheio|essa alegria
ilhada em dor|que tece nossa estopa|

|a casa está no mato|como tudo
é mato adentro&mais adentro como
tudo|que se desmata sem consolo
até que o último índio quede mudo
perante as invasões|que tomam dentro
aquilo que queríamos de fora|
agora mora a hora chora a dor a|
todas seriam rima cem por cento|
(drummond)|nada diriam da situação|
alguém disse o fracasso da política
nacional|nós procuramos o quê
nesse contexto?|talvez a política
do fracasso?|ninguém vai responder|
eu é que não sei|ela também não|

|faz tempo somos mais que dois|a história
não se repete|a gente é que repete
a interpretação clichê da história|
que mais parece um velho torniquete
para estancar a perda que não houve|
o seu retrato quase não difere|
eu penso|& a pele que inventei adere|
eu penso sem pensar que nunca houve
alteração no enquadramento|aquele
poema nunca foi escrito|agora
nós ficamos menores no retrato|
tudo depende se é possível o trato|
ela sorri comigo dor afora|
& o retrato extrapola além da pele||

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

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