Visuais

A conquista da realidade

A realidade é coisa delicada, mas continua estando à nossa volta. O que há além do monitor, e onde está a arte nesses mares de HD em que vivemos?

“Que é que se faz com tamanha carga de realidade sobre a nossa realidade, e o que aprendemos? A lição dos renascentistas foi deixada e absorvida. Qual é a lição que deixa a nossa era?”

 

O Alto Renascimento, período estrelado principalmente pelo ‘triunvirato’ Leonardo / Miguel Ângelo / Rafael (todos tributários a Donatello, a quarta tartaruga ninja) é conhecido também como o da ‘conquista da realidade’. Desde ao menos o tempo de Giotto, italiano contemporâneo de Dante e um dos marcos fundamentais do movimento que veio a culminar no Renascimento, a perspectiva e a perfeição das formas humanas (ao modo dos grandes mestres gregos da Antiguidade) foram obsessivamente buscadas pelos pintores. A temática básica ainda era a Bíblia, embora vez por outra surgissem cada vez mais reencenações de mitos antigos. A Igreja, sendo na grande maioria dos casos a empregadora desses artistas, afim de que ilustrassem as histórias aos fiéis para um melhor entendimento dos textos sagrados, viu cada vez mais as figuras bíblicas tomarem forma, corpo, rosto e alma. De mosaicos bizantinos de formas duras, sérias, pálidas, passando por retábulos de figuras harmoniosamente amontoadas e sem planos distintos (embora, certa e inegavelmente belas, sempre), as figuras santas passaram a compartilhar o espaço do humano, a fazer-se presentes na comunhão e na oração, a serem testemunhas vivas do ato religioso. Pois os mitos em si passaram a ser criaturas vivas, tinham rosto, eram familiares e vigilantes. Para que se chegasse até isso, séculos de ‘tentativa e erro’ se passaram até que se resolvessem as fórmulas matemáticas da perspectiva e da composição harmônica no quadro. Desde Giotto, o caminho tomado pelos italianos era um caminho sem volta, rumo apenas ao que veio a ser o Alto Renascimento, onde havia, pura e simplesmente, a mais perfeita realidade. Depois disso vieram a crise e os desvios da regra; toda uma nova rota a se traçar.

 

De lá pra cá muito mudou em termos de que realidade buscam os artistas. Diversas foram as escolas, as regras e as tendências. Caravaggio fazia com que os mais brilhantes santos caíssem como sacos de batatas em direção à existência mundana e terrena. Tintoretto e El Greco entortavam a perfeita composição, re-iluminavam. E foram tantos outros. A realidade impressionista se alcançava através dos olhos semicerrados. Depois de séculos da perfeição dos traços renascentistas, seus traços eram pouco definidos, como uma severa miopia. Quase todo o século XX embrenhou-se na realidade de dentro, do subjetivo, do sujeito que revela a sua versão do real. Que vanguarda mais popular que o surrealismo? Que século mais fértil no imaginário fantástico e fantasioso que esse de Picassos, Magrittes, e, não nos esqueçamos, de Tolkien, C. S. Lewis, Giger? E ainda assim, que realidade era essa proposta pelos futuristas, que almejavam vir com tudo abaixo?

 

A realidade, vimos na nossa edição inaugural, é coisa delicada, de se pegar com as pontas dos dedos[1]. A ‘realidade retratada’ entra quase em contradição com a noção própria de ‘realidade’. E, no entanto, desde Giotto nos bota calafrios aquela figura no canto da tela que nos olha fixamente; aquele retrato de olhos brilhantes; o Rubens autorretratado que nos inquire em profunda reflexão. E a tela pintada, forma material, concreta e real em si mesma? Amontoados de tintas sobre telas ou madeiras ou papeis? A conquista da realidade foi a conquista da ilusão, o argumento final que comprova que esse acúmulo de materiais que vibram em diferentes frequências, dispostos numa superfície, podem incorporar um significado maior, oculto, sagrado. Religião e ascendência insuflando vida na obra de arte. E não tem sido assim desde o começo, Egito e muito antes? A arte é o transporte ao oculto.

 

Discuto isso para que pensemos no tipo de realidade que almejamos ainda hoje. Qual é ela, afinal, nessa era da ‘conquista da realidade’ pelos meios tecnológicos? A sagrada realidade, cada vez mais milhões de megapixels, 720 bits, gráficos, tudo para que se erga o entretenimento ao patamar da realidade. O arrebatamento do espectador frente à Última Ceia de Leonardo é o mesmo causado pelos gráficos do novo Playstation 4? Os cinemas ultimamente, por sua vez, andam saindo da tela e atirando cores e cheiros na nossa cara, não bastassem as primorosas computações gráficas que dão forma a mundos impossíveis. O que significa, afinal, tão tremendo apelo aos sentidos? Depois de um século de abstratos e subjetividade, modernismo e desconstrução, por que nos apegamos tanto agora ao Realismo? Nos cinemas de Huxley, sentiríamos por meio de sensores os beijos de língua entre o casal protagonista: o apogeu do entretenimento, soma. A realidade, me parece, é coisa delicada. Controlá-la com joysticks é, ao mesmo tempo, um desejo de pelo menos algumas décadas de idade, que conquista cada vez mais pessoas, e que, nesse momento, parece se aproximar do seu estágio máximo, a conquista.

 

Que é que se faz com tamanha carga de realidade sobre a nossa realidade, e o que aprendemos? A lição dos renascentistas foi deixada e absorvida. Qual é a lição que deixa a nossa era? Qual a consequência de se ver um conto de fadas acontecendo não na imaginação mas no nosso plano de realidade, ou de se assistir aos gols da copa do mundo praticamente de dentro dos calções dos jogadores?

 

Meu ponto, afinal: que se faz com a arte quando há tamanho apelo visual no resto do mundo visível? Todo esse mundo acaba de ser conquistado pelo perfeccionismo em alta definição, o ‘renascimento’ da era digital. Diferentemente dos mestres do passado, esse mar de pixels parece ser pouco profundo, pouco há de carne, de sagrado. Talvez a resposta para tamanha sofisticação venha na simplicidade, no retorno à imaginação. Como no passado, a regra não está mais no maneirismo, na imitação dos mestres florentinos. Deve-se distorcer, interferir, dar o velho tabefe na televisão pra ver no que dá; ver o mundo com uma riqueza que não nos é dada ou imposta. Deve-se duvidar. Superar o impacto emocional, fácil e superficial desse grande soma que é a realidade fabricada. Assistir à vida passar por meio de monitores LCD e LED é hoje a regra, não a exceção. Devemos ver a vida com nossos olhos. Talvez, aí, reconquistemos uma outra realidade, essa que grandes mestres materializam em forma de obras de arte. Vejamos o mundo com os primeiros olhos que um dia se fizeram.

 

[1] Ver Issue #01, “Realismo & Representação” por Sandra M. Stroparo.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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