Literatura

A minha geração é irônica de formação

Ao que parece estamos mergulhados (e afundando?) em um oceano cada vez maior de ironia, e não sabemos bem o que fazer com isso. A sua geração também padece desses sintomas? Leia a coluna de Guilherme G. Flores e pense a respeito.

 

 

a minha geração é irônica de formação.

ou ao menos o penso.

ou ao menos o digo da boca pra fora, pra cumprir com esta coluna de literatura.

ou ao menos aquela frase já não serve mais pra nada.

o problema é que a frase ficou, com ou sem minha concordância, então vamos seguir com ela, certo? é mais fácil pra todos.

a minha geração é irônica de formação.

quando falo de ironia, não penso só naquela velha técnica de dizer algo pelo seu oposto.

pra quem não entendeu, por exemplo: “eu te acho inteligente pacas”.

mas ironia pra mim não é isso.

não é só isso.

em geral, eu entendo por ironia a coexistência de dois ou mais discursos potencialmente incompatíveis dentro de um mesmo discurso que se apresente como unívoco.

pronto, fiquei teórico. metade dos leitores vão abandonar o barco (agora fui autoirônico).

mas voltemos ao leitor inteligente: ele percebeu o que é o oposto daquilo. na verdade, dizendo que eu o achava inteligente eu queria (ou assim se supõe) dizer que ele “é burro pacas”.

viram? dois discursos: o realizado e o que pode ser depreendido a partir do contexto. vualá, chegamos no ponto.

a ironia só acontece — ou só pode ser percebida, o que dá no mesmo — quando o contexto original nos dá essa chance, ou quando o nosso contexto nos faz percebê-la mesmo onde ela talvez não estaria, se contássemos apenas com o desejo do autor.

enfim, ele se deu mal, porque eu vi aquela ironia sim, eu saquei tudo que ele queria dizer por trás daquelas outras coisas que ele falou, eu percebi que nada do que ele falava era sério de verdade. mas não saquei certinho o que ele quis dizer com tudo aquilo, se nada era tão sério…

bem, a minha geração vê isso em muito lugar, em parte — acho — porque ela foi aprendendo a ser assim. nós somos capazes de gostar de algo exatamente porque é péssimo i.e. porque nós, no fundo no fundo, achamos péssimo.

exemplos: a-ha, rocky balboa, roberto carlos. a lista é infinita.

tudo bem, alguns de nós realmente gostam disso, mas um grupo maior gosta porque é ruim. o intenso revival dos anos 80 é provavelmente o sintoma mais notável da minha geração. todo o ridículo dos anos 80 agora é revisto como kitsch no sentido mais cult possível (citei duas palavras-chave que não pretendo desenvolver).

só que.

a ironia e a autoironia são brinquedinhos perigosos, porque confusos. já tentei demonstrar que a ironia não precisa estar essencialmente num discurso: basta encontrarmo-la (num uso verbal arcaico e horrendo, por exemplo; mas pode ser mero mau gosto).

e.

ela é uma máquina infinita: uma vez identificado um caráter irônico (pensando no kierkergaard, rapaziada), não é mais possível delimitar com clareza onde começa e onde termina a ironia. por exemplo, dos três exemplos citados anteriormente, eu gosto de um, mas não vou dizer qual — eles permanecerão como índice de ironia.

enfim, a ironia da minha geração sempre se arrisca a cair naquele poço confuso da indistinção.

e ele até tem pontos positivos: um deles é eliminar a pretensa distinção qualitativa entre o cinema do stallone e do godard, passo fundamental para revermos o lugar da cultura na nossa sociedade. isso faz parte de um processo mais profundo de reconhecimento do outro, de apagamento das categorias metafísicas etc. (usei metafísica, é. mas será que eu sei do que estou falando?).

a dureza é que, em geral, diante do abismo do fim dos valores transcendentais (malandragem, o nietzsche venceu), a minha geração pena pra recriar valores sem transcendentalidade: caímos na ironia como caráter de recorrência. em geral, é mais fácil simplesmente gostar do a-ha e do roberto carlos do que ter de explicar a beleza das sinfonias do shostakovitch, ou os paradigmas do saber na épica de john milton.

e, convenhamos, é muito mais bacana no boteco, dá pra descolar uns pegas para todas as orientações sexuais.

além do mais, já aprendemos que não há um fundo real que justifique o que é melhor. são modelos humanos, históricos, datáveis, passíveis de avaliação epistêmica, antropológica, etc. são arbitrários. o futuro pode preferir (e demonstrar por a + b) que a poesia musical do a-ha deixa cummings no chinelo

last but not least (bordões em textos irônicos funcionam superbem, tente aí, ah metatexto também é joia, ah, gíria velha é supimpa), defender a importância do pensamento de leibniz para o desenvolvimento da metafísica ocidental tende a diminuir a nossa vida sexual.

mas eu estou me alongando.

a questão maior, pra mim, é que minha geração é irônica por formação. a gente foi aprendendo a ser assim.

é talvez nossa defesa.

ou condição de existência.

a próxima geração virá — está vindo — irônica de berço.

caberá a eles, com tem cabido a nós — e eu ainda não sei avaliar se houve sucesso — reinventar uma política da ironia.

Guilherme Gontijo Flores
Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.

You may also like

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

More in Literatura