foto: Rafaela Lagarrigue
Juliano Samways abre a coluna ‘Ruído’ falando sobre a onda Retrô pela qual passamos. Ou na qual sempre estivemos?
“Até onde se vestirá a onda Retrô nesse universo finito de combinações, sentimentos, angústias e pequenas alegrias da produção musical?”
Pensemos em uma biblioteca (melhor seria uma vídeo-audioteca) com prateleiras repletas de timbres variados, oscilando, por exemplo, de uma guitarra Fender aveludada claptonmaníaca para uma visceral hendrixniana, ou até mesmo de outra Fender calculista e econômica gilmouriana para uma arrogantemente brilhante blackmoreana. Quantas formas de tocar uma Fender ainda poderão nos tocar? Entre sonoridades e batidas, grooves de baixo, arranjos, desarranjos, harmonias e melodias, gama de imagem-movimentos sessentistas, setentistas, oitentistas, re-sessentistas, noventistas, re-setentistas, re-re-sessentistas, re-oitentistas, dos anos rebeldes aos sedentários, a nossa biblioteca exala um vasto universo de sons e possibilidades para a criação (ou repetição?) artística.
Essa é a Googleteca, acessível a todos que possuam uma boa conexão de internet. Quem acessa essas informações musicais, as empoeiradas melodias dessas prateleiras, não se torna também parte desse mofo musical digital? Em um passado não muito distante, essa base de dados que retorna pela web foi fomentada por diversos tipos de fonogramas em forma de mercadoria: LP, fita cassete, CD, DVD, outrora produtos (gravações oficiais e licenciadas) e anti-produtos (as famosas gravações piratas e cassete) de um mercado e anti-mercado da música. A portabilidade e acessibilidade à informação musical, a massificação da informação, potencializou algo que já acontecia e que já era usual no ramo das mercadorias, uma espécie de estética, que aqui intitulamos de Retrô. Palavra de origem latina que indica um olhar sobre o passado, o Retrô é uma ferramenta anacrônica por natureza, julgamento do presente revestido de adequações do que já se foi: é uma repetição.
Repetir pode ser revolucionar? Vade Retrô! Não é demonizar a repetição, mas sim uma crítica à simples repetição, ao repetir novamente. Ferramenta da própria indústria musical, em outras épocas onipotente e agora quase inexistente, a repaginação, a reutilização de conceitos, que já povoou e salvou várias vezes o mercado fonográfico, agora parece se tornar a única engenhosidade dos artistas que estão a pipocar pelo novo mercado das redes anti-sociais. Imaginem uma cópia de Syd Barrett, careta, compondo música eletrônica em um desses micro-apartamentos em Pequim. Quantos novos Lou Reeds Lennons Mccartneys com camisa dos Ramones dançando um sambinha meio tango? Quantos terão seus sucessos partilhados nesse universo da estética Retrô? Daí também os vários programas atuais do tipo reality com apelo ao antigo, ao já estabelecido, aos cânones de um mercado adormecido. Esse é o fenômeno Retrô da música, uma espécie de wikirock, youtubemania, música das redes agorafobia.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (aquele que só acreditava em um Deus que fosse capaz de dançar) já apontava para a questão da repetição de conceitos. Dizia ele que em um universo materialmente finito, com um tempo infinito, todas as coisas necessariamente voltariam. As atualizações da matéria, atualizações de possibilidades, por mais que sejam trilhões, um dia retornariam. O tempo faria todas as coisas retornarem, pois nunca cessa, e mais do que isso, faz com que o processo eternamente retorne o mesmo. Essa proposta do “eterno retorno do mesmo”, aplicada ao universo musical, resulta em um repertório finito (a matéria é finita), porém ilimitado (o tempo não para de passar) de combinações. Pois bem, não precisamos esperar pelo infinito, pois a indústria cultural musical virtual da Era da Informação faz o “mesmo” retornar em um universo muito menor de tempo.
Até onde se vestirá a onda Retrô nesse universo finito de combinações, sentimentos, angústias e pequenas alegrias da produção musical? Universo que se desenhou na roupagem criada por vários artistas advindos do mundo comercial, ou mesmo até na roupagem feita à margem deste mundo, por outra finita gama de bandas independentes; quem, afinal, não se submeteu formalmente a esse universo dos selos e grandes gravadoras?
No universo da internet (palavrinha que sempre retorna ao texto), no universo dos conceitos, a pergunta que aqui colocamos é simples, porém com possíveis respostas de grande complexidade: qual o problema das coisas retornarem? E ainda aprofundando a questão, que também se torna ética: por que não dar a uma coisa o simples direito de acabar, morrer, e não ressuscitar?
O tal do Nietzsche, novamente repetido, respondia a este dilema de estética musical justamente por ser de uma ética musical: se algo sempre retornará, se eternamente faremos a mesma coisa, façamos então com que eternamente “valha a pena”. Porém, as sábias palavras de Nietzsche parecem não responder aos dilemas que a sociedade da desinformação coloca: conceitos iguais a re-conceitos, o retorno dos mesmos conceitos. É a estética como o fim das épocas, afirmando que todas as épocas são de fato uma só, como se todas as tendências da moda, dos valores, dos elementos culturais fossem somente um.
Pior do que padronizar e fazer retornar o igual, alguns ainda apontam o argumento de que algo somente será bom e renovador se não estiver constando nos anais da Googleteca. Outros ironizariam até mesmo este texto, como uma cópia de algum outro já publicado, repousados na máxima teológica: não acredito em um Deus que não saiba control-C control-V. Apostamos, talvez, no artista de carne e osso, numa espécie de arte orgânica com saliva e suor, que faz da sua vida seu itinerário de contato com o público, como se a arte fosse o público, como se os acesso e plays em redes sociais fossem opostas à ideia de audiência. Mas é o sabor insosso desse porvir da arte não mais digital que deixamos aqui.
Nesse eterno Retrô do mesmo, não sabemos a qual época não pertencemos.