Literatura

Por que Laranja? Burgess e os outros.

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Anthony Burgess

[/vc_column_text][vc_column_text]Uma breve apresentação e reflexão sobre a Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, usando as relações do autor com dois pares de suas grandes referências: Shakespeare e Joyce; Huxley e Orwell. Por Vinicius F. Barth.


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Clockwork Orange traz em seu título uma declaração a esse respeito: como pode algo orgânico ser regido por peças inorgânicas, peças mortas?”

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Depois?

Ele beijou os fornudos ricudos amareludos cheirudos melões de seu rabo, em cada fornido melonoso hemisfério, na sua riquega amarelega rega, com obscura prolongada provocante melonicheirosa osculação.

(James Joyce – Ulisses; trad. de Antônio Houaiss)

 

Levantei-me na hora, e lá estava aquela forela starre vingativa toda sacudida e grunhindo enquanto tentava se levantar do chão, então eu lhe dei um belo dum chute malenk no litso, e ela não gostou disso, porque gritou – Uaaaaa – e dava pra videar o litso cheio de veias e manchas ficando roxo onde eu havia depositado o velho noga.

(Anthony Burgess – Laranja Mecânica pt. 1 cap. 4; trad. de Fábio Fernandes)

[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Minha leitura da Laranja Mecânica de Anthony Burgess é ainda relativamente recente. Veio numa onda de leituras, aí por volta de 2013, de romances distópicos e de ficção científica, como os de Philip K. Dick, Arthur Charles Clarke, e, especialmente, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. Com eles, veio a notável edição da Laranja publicada pela Aleph, em 2012, com tradução de Fábio Fernandes.

 

O fato é que, além de questões ideológicas e/ou emocionais, essas leituras me surpreenderam em caráter estritamente literário, em especial os textos de Burgess e de Orwell. Este em termos da formatação da narrativa, do suspense e do enredo. Aquele em termos linguísticos, e de como a invenção de um linguajar fictício passa a nos integrar e nos atingir a partir do momento que o internalizamos. Falo aqui do slang, a gíria dos protagonistas. Voltarei a isso.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]

A despeito do grande sucesso cinematográfico e da posterior consolidação como ícone da cultura popular da segunda metade do século XX[1], Laranja Mecânica já foi rankeado entre as 100 obras literárias mais importantes escritas em inglês no seu século. E isso, num século de Joyce e numa nação de Shakespeare, não é pouco.

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Shakespeare e Joyce

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Sou, por ofício, um romancista. Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro. O romancista faz o tempo passar para você entre uma ação útil e outra; ajuda a preencher os buracos que surgem na árdua trama da existência. É um mero recreador, um tipo de palhaço. Ele faz mímica e gestos grotescos; é patético ou cômico e, às vezes, os dois; ele faz malabarismo com palavras, como se elas fossem bolas coloridas.

(Anthony Burgess, A condição mecânica)

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A identidade literária de Burgess está intimamente ligada a esses dois autores, e também a Christopher Marlowe, dramaturgo e poeta que viveu no período elisabetano. Não à toa, Burgess, que além de romancista é compositor, roteirista – tendo sido co-escritor, inclusive, de um seriado sobre Sherlock Holmes nos anos 1980 – e crítico literário, dedicou muito de sua produção à investigação sobre esses autores anteriores, que vieram a integrar a Laranja Mecânica dentro de várias dinâmicas de construção de texto.

 

Alguns exemplos que eu citaria de sua produção crítica são Here Comes Everybody: An Introduction to James Joyce for the Ordinary Reader, ou, posteriormente, ReJoyce, em que o autor destila o seu entusiasmo pela obra de James Joyce através dessa “introdução de Joyce para o leitor comum”; Shakespeare, um elogiado estudo crítico e biográfico em que Burgess narra a vida do bardo inglês com grande riqueza de detalhes – e algumas inferências; Nothing like the sun, trabalho ficcional inspirado pela vida pessoal e amorosa de Shakespeare, num texto que mantém o trabalho criativo com palavras em uma maneira joyceana; e por fim, cito a sua tese de bacharelado na Victoria University of Manchester sobre o Doutor Fausto de Marlowe, peça tida por alguns como sendo a primeira dramatização existente da lenda alemã de Fausto.

 

De modo resumido, capturamos as influências dos autores anteriores sobre Laranja Mecânica – ah, a angústia da influência! – principalmente em termos de construção formal da língua de seus protagonistas. De acordo com a introdução ao romance na edição da Aleph (2012), Burgess demoninou como rhyming slang um tipo de gíria rimada que mistura cockney (o modo de falar da classe operária britânica) com um vocabulário típico de crianças em fase de aprendizado de fala. Além disso, vemos, principalmente através das falas de Alex, o pseudoelisabetano, chamado por outros de “inglês shakesperiano ou bíblico”, aproximando-se do rigor formal das peças de Shakespeare e Marlowe, “talvez para transmitir mais maturidade, ou por estar na moda” (p. 29).[/vc_column_text][vc_column_text]

(…) – Muito muito muito tempo se passou desde aqueles bons e mortos dias. E o pobre Georgie, me contaram, está a sete palmos e o bom e velho Tosko é um miliquinha brutal, e eis-te aqui e eis-me aqui, e que novas trazes, velho drugui?

– Ele fala gozado, não fala? – perguntou aquela devotchka, tipo assim dando risadinhas.

(Laranja Mecânica, pt. 3 cap. 7)

[/vc_column_text][vc_column_text]Tudo isso se mistura com outros elementos linguísticos, ainda, como é o caso da inclusão de termos eslavos que tiveram sua grafia alterada, buscando um tipo de língua anglo-russa. Babushka vira baboochka; rassudok vira rassoodock. Cada palavra tem o seu significado que deverá ser inferido pelo leitor – embora as edições costumem trazer um glossário. Essa é a língua/gíria chamada Nadsat. Um ponto genial e bastante funcional para Burgess, indo na esteira do invencionismo linguístico e sonoro de James Joyce.

 

Há que se pensar, e deixo essa questão em aberto, no processo provocado pelo Nadsat enquanto absorção do conteúdo: em termos de Violência, Burgess parece superar os seus antecessores, tratando do Mal e do Livre-Arbítrio dentro de uma sociedade moderna. Há quem comente que o Nadsat atua como uma névoa, uma cortina, uma barreira que nos permite turvar um pouco o ato da violência explícita, tornando-a não-explícita.[/vc_column_text][vc_column_text]

Então ele agarrou com força a devotchka, que ainda estava krikikrikando num compasso quatro por quatro muito horrorshow, prendendo os rukas dela por trás, enquanto eu rasgava isso e aquilo, os outros fazendo hahaha ainda, e grudis muito horrorshow exibindo então seus glazis rosas, Ó, meus irmãos, enquanto eu me desvestia e me preparava para o mergulho. Ao mergulhar, sluchei gritos de agonia, e esse vek escritor sangrando que Georgie e Pete estavam segurando quase ficou bizumni de uivar com as slovos mais indecentes que eu já tinha escutado e outras que ele estava inventando na hora. Então, depois de mim, era justo que o bom e velho Tosko tivesse sua vez, o que ele fez de uma forma bestial, fungando e uivando com sua mascareta de P. B. Shelley sem estar nem aí, enquanto eu segurava ela.

(Laranja Mecânica, pt. 1 cap. 2)

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Ilustração para Laranja Mecânica por Dave McKean

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Huxley e Orwell

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Sartre, em seu O que é a literatura?, diz:

(…) Apesar do que desejamos, chegamos a essa conclusão, que parecerá chocante para almas elevadas: o Mal não pode ser redimido.

(Anthony Burgess, A Condição Mecânica)

[/vc_column_text][vc_column_text]Nesse texto, A Condição Mecânica, em que Anthony Burgess comenta aspectos de maldade e liberdade dentro do estado moderno, é trazida uma consideração a respeito de um dos slogans do super-Estado orwelliano, descrito em 1984. Diz ele sobre “Liberdade é escravidão”: “Uma das interpretações possíveis é a de que o fardo de tomar as próprias decisões é, para muitas pessoas, intolerável.” Huxley, nessa conversa, diz: “Não somos nossos próprios senhores. Somos a propriedade de Deus. Não é para nós uma felicidade encararmos as coisas desse modo?” (Admirável Mundo Novo, cap. 17)

 

Essa discussão, central em Laranja Mecânica, retoma pontos discutidos profundamente por Huxley e Orwell em Admirável Mundo Novo e 1984, respectivamente. Lembremos que o herói de Huxley era nomeado simplesmente como Selvagem. E por que não? Era tão selvagem quanto os outros, Winston e Alex, cada qual em seu ambiente social autoritário e destituído da qualidade – ou da possibilidade – da individualidade. Individualidade esta que deve ser exterminada, seja pela Estabilidade, pela Paz e pelo Partido, pelo Bem.

 

(Se ressoa ao leitor alguma memória recente de controle do Estado sobre o indivíduo em busca do “bem maior” em situações reais e recentes, atente-se. Esses autores que cito estão apontando, desde o início do século, para a supressão da liberdade individual, o que acontece sempre, em maior ou menor medida, de acordo com o espírito da época. Pergunto: pode o Mal ser curado? Através de drogas, da fé, do medo ou do tratamento Ludovico?

 

A felicidade iguala a estabilidade? O livre-arbítrio de Adão, Satã – se pensarmos principalmente no Satã de John Milton em Paraíso Perdido, e Alex deve ser punido com o extermínio ou com a inatividade? Se sim, há livre-arbítrio enquanto houver punição?)[/vc_column_text][vc_column_text]

Nós acreditamos na felicidade e na estabilidade. Uma sociedade composta de Alfas não poderia deixar de ser instável e infeliz. Imagine uma usina cujo pessoal fosse constituído por Alfas, isto é, por indivíduos distintos, sem relações de parentesco, com boa hereditariedade e condicionados de modo a tornarem-se capazes (dentro de certos limites) de fazerem livremente uma escolha e de assumirem responsabilidades. Imagine isso! – repetiu.

O Selvagem tentou imaginar, mas sem grande resultado.

(Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, cap. 16, trad. de Vidal de Oliveira)

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Oras, Clockwork Orange traz em seu título uma declaração a esse respeito: como pode algo orgânico ser regido por peças inorgânicas, peças mortas? Clockwork Orange, dentro da gíria cockney, refere-se a coisas queer, bizarras, ou por vezes homossexuais, de maneira pejorativa. Seria, no fim das contas, algo estranho e não-natural. Mas note-se que orang, na língua malaia, significa “ser humano”, informação de que Burgess se utilizou. “O cockney e o malaio se fundiram em minha mente para formar uma imagem de seres humanos, suculentos e doces como laranjas, forçados à condição de objetos mecânicos.” (Nota a A Clockwork Orange 2004).

 

Que pensar do inorgânico Grande Irmão? Winston carrega um fim semelhante ao dos nossos outros heróis, o fim mecânico imposto pelo Estado, o fim involucrado no amor estável e no extermínio: “Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.” (1984, parágrafo final, trad. de Wilson Velloso)

 

Por fim, retomo novamente Aldous Huxley para a consideração final sobre esse pensamento. Nossos selvagens, nesse trio de romances, eram pessoas que carregavam em si o sentimento, a Arte e a apreciação estética, suculentos e doces como laranjas, o que era considerado, dentro de todos esses Estados, como indícios de subversão ou de desvio de caráter. Veja-se o diário escrito por Winston no esconderijo de sua casa. Veja-se o amor que Winston sentia por Júlia: “Não tanto o amor como o erotismo era o inimigo (para o Estado), tanto dentro como fora do casamento.” Veja-se Alex:[/vc_column_text][vc_column_text]

Depois disso eu ouvi o adorável Mozart, o Júpiter, e havia novas imagens de diferentes litsos para serem esmagados e esparramados, e foi depois disso que achei que ouviria só mais um disco antes de cruzar a fronteira, e eu queria alguma coisa starre e forte e muito firme, por isso foi J. S. Bach, o Concerto de Brandemburgo só para cordas médias e graves.

(Laranja Mecânica, pt. 1, cap. 3)

[/vc_column_text][vc_column_text]Veja-se, por fim, esse que é chamado apenas por Selvagem, que numa certa altura do romance acaba sendo educado nos textos de Shakespeare, como se fosse um anômalo nessa sociedade que vive em eterno estado de inércia. Quando perguntado se, por acaso, sabia o que era um Filósofo, Selvagem responde:[/vc_column_text][vc_column_text]

– Um homem que sonha menos coisas do que as que existem no céu e na terra.

(Admirável Mundo Novo, cap. 17)

 

There are more things in heaven and earth, Horatio,

Than are dreamt of in your philosophy.

(Hamlet, I, 5)

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[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text][1] Burgess tinha divergências com a versão cinematográfica de sua obra. Em A clockwork orange: a play with music, uma adaptação ao teatro feita por ele mesmo, lê-se no ato final: “Um homem barbado, tal como Stanley Kubrick, chega tocando “Singin’ in the rain” no trompete, em refinado contraponto. Ele é expulso do palco aos pontapés.”[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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