imagem: Josef Koudelka – Gaivota (Escócia, 1977)
A coluna R.You! deste mês é de propriedade da fabulosa Raira Machado, que nos apresenta seus textos ligados à auto-ficção, performatividade e teatro. E como vem acontecendo em diversas colunas dentro da R.Nott Magazine nos últimos meses, o Mar aparece mais uma vez para nos deslumbrar com sua enorme onipresença.
O corpo flutua no mar. Poderia dissolver ali. Pesa como chuva forte de uma noite inteira e as medidas oscilam com o ritmo da maré. A água – nem fria, nem quente ou já acostumou. Já perdeu a noção da beira, os barulhos mudaram. Se conseguir dormir, pode acontecer um afogamento após perder o ar, não conseguir lutar o suficiente, perder a força aos pouquinhos, morrer e ver o céu. Mas se abrir os olhos enquanto todo corpo funciona, pode ver o céu também. Eu já morri vendo o céu. Vocês sabiam? É claro que não. Sou eu. Vou buscar. Não agora. Meu corpo. Naquele quarto que tem cheiro de colônia de bebê. Tá tão gostoso esse mar. Não quero pensar numa onda grande forte. O cheiro de lavanda, impossível não lembrar. Vinte e sete anos para estar aqui conseguindo me manter boiando na superfície sem as minhas correntes. A maré engana, às vezes. Tem alguma coisa me segurando aqui, não sei se é boa ou ruim. Dizem que o medo protege também. O rosto quase submerso, sobra nariz, boca e os olhos, os ouvidos entupidos. Essa vontade de querer sumir lutando contra o susto do afogamento. Aqui, ninguém sabe o meu nome. Oitenta e sete anos, aquele livro tem. Os olhos são dois só, estão gastos de tanto ler. Eu quero mais. Meu sangue e essa água salgada correndo por todas as veias vias feitas de um caminho. A ferida no meu calcanhar daquele sapato apertado pode cicatrizar com o sal da água. Vou buscar depois. Deixa ele. Meu corpo. Se eu quiser passar a noite, alguém vai querer me arrancar daqui? Vou sair no jornal com o nome carregando qual adjetivo?
“Mulher viva está há dois dias boiando no mar e se recusa a sair, ignorando qualquer tipo de contato. Os bombeiros já tentaram diálogo e não obtiveram retorno.”
Eu não quero decidir para onde vou
Pinguinhos de céu caem
Na boca fechada
Em cima da sobrancelha
Se me levarem
Vão decidir por mim
Meu corpo
De novo
Não agora
Deixa ele!
Se o mar tivesse sido a minha placenta eu teria saído muito mais corajosa pro mundo.
Domar os Cavalos
Tem um gosto amargo disfarçado de pasta de dente e enxaguante bucal. Uma postura que resiste em ficar ereta. O dia pode estar bonito mas não consigo focar na sua beleza, talvez no seu som que insiste em entrar na carne com toda sua confusão passarinho polícia obra música do vizinho carro jornal cachorro latindo. Não consigo focar em nada, só na minha insuficiência diante das tantas coisas que não tenho controle e não insisto pra executar. A paralisia não precisa ser visível. Porque os homens não choram com frequência? Lembro de que desde que nasci, carreguei na testa o nome sensível invisível, na testa o nome invisível sensível como se fosse a única força que regesse meus cavalos. Uma professora que me disse que eu só seria uma boa profissional se aprendesse a domar os meus cavalos. Eu fingia entender exatamente o que ela dizia. Nunca consegui contabilizar os cavalos. O lado bom é de que quando a substância aquosa escorre dos olhos, não é oprimida ha ha ha quem disse que não? Quem disse que isso não vai ser usado contra mim? Que merda. Me desdizendo. Com frequência. Logo agora que consegui terminar de formar uma frase um sentido um fluxo. Será que eles têm uma mutação poderosa, colete à prova de balas e sentidos? Ou tem um gosto tão ruim quando escorre na boca que eles se controlam pra não sentir a acidez? Eu sei que os dias estão mais a base de cimento do que de respiro, mas porque diabos os homens não choram com frequência? Acho que se tivesse um estudo sobre isso eu entenderia mais esse desgoverno. Eu sei, não dá pra entender tudo, acompanhar tudo. Senão estarei eu, com mais acúmulos do que não escolho, do que das minhas escolhas. Aquela história. Domar os cavalos, escutar a respiração e pensar positivo ha ha ha quem estou tentando enganar? Tá tudo errado mesmo e eu não consigo me controlar. Porque os homens não choram com frequência?
Raira Machado é um tesouro, saias palavras vem de um lugar profundo da alma, uma jovem brilhante