imagem: da série Perdoa por excesso de paixão (2017-9)
Neste mês, a R.Nott Magazine entrevistou Everton Leite, artista curitibano graduado na Faculdade de Artes do Paraná e Mestrando no programa de Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas. Seu belo trabalho percorre os meandros dos espaços íntimos, familiares, caseiros e ainda flerta com a literatura. Venha conhecer!
- Como, onde, quando e por quê.
Bom, meu nome é Everton Leite e sou artista visual, ilustrador e educador. Comecei a me interessar por Arte na adolescência, cursei ensino médio no Colégio Estadual do Paraná, e no contraturno frequentava as oficinas e cursos da Escolinha de Artes, foi nas oficinas que fui entendendo um pouco das linguagens das artes e pegando gosto pela licenciatura junto com meus professores. Quando entrei na Faculdade Artes do Paraná, logo após o ensino médio, meu interesse era me formar professor e atuar na rede pública. Mas logo nos primeiros anos do curso em Artes Visuais fui incentivado pelos professores a desenvolver um trabalho artístico.
Como eu era muito jovem, tinha 17 anos quando ingressei no curso, comecei a explorar e experimentar com elementos cotidianos da minha casa e esse interesse foi só aumentando com as leituras e atividades propostas pelos professores. Mas foi em uma aula, da professora Rosanny Teixeira, que fui apresentado ao texto “A poética do Espaço” de Gaston Bachelard que me aprofundei nas pesquisas sobre memória, casa e cotidiano.
A partir dessa leitura meu trabalho foi mudando e comecei a explorar as narrativas, objetos e memórias que guardava em casa. Além disso, por ser um artista com formação acadêmica, fui atravessado por várias leituras teóricas, poéticas e literárias que me possibilitaram organizar esses objetos de interesse em arquivos, que até hoje utilizo para as minha produções.
Com o tempo os arquivos foram crescendo, ganhando ordem, objetos, novas narrativas e diversas classificações e divisões e hoje acredito que sou um artista-colecionador, com uma coleção sobre memórias, narrativas e objetos de minha família e de meu cotidiano. Hoje sou mestrando em Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e junto à professora Helene Sacco estou desenvolvendo uma pesquisa para levar esses itens dos meus arquivos para os livros e impressos de artista, pois são objetos de fácil circulação e baixo custo. Por fim, esses livros serão organizados numa biblioteca-dissertação e disponibilizado para download público.
- Everton, seus trabalhos são muito ligados a temas da esfera pessoal. Por isso te pergunto: de que maneiras você acha que o cotidiano particular de um artista, sua relação com a casa e suas memórias de infância podem reverberar na percepção do espectador, que muitas vezes provém de um universo de experiências totalmente distinto?
Acredito que as minhas memórias pessoais estão muito ligadas ao imaginário social da concepção de algumas famílias e de algumas infâncias. Apesar de trabalhar com coisas tão pessoais, os espectadores dos meus trabalhos sempre que possível confidenciam que a imagem despertou uma memória na pessoa. Em trabalhos como “A casa começa na cozinha e termina no jardim”, muitas vezes escuto relatos das pessoas reconhecendo o brinquedo de madeira que uso para ilustrar o livro e narram suas memórias de infância com o brinquedo.
Mas dentro do meu processo criativo, quando estou produzindo meus trabalhos, penso que estou fazendo para alguém em específico, como um escritor dedica seu livro para alguém especial, eu dedico algum trecho do meu trabalho para alguém. Por exemplo, em “Retratos para preenchimento: maria zulmira”, um dos meus primeiros trabalhos, fiz o trabalho pensando nas minha avó materna (Zulmira) e minha bisavó materna (Maria), na saudade e no vazio que elas causavam no meu núcleo familiar. Quando mostrei esse trabalho ao público, ouvi vários relatos de memórias das avós dos visitantes da exposição. Desta forma acredito que quando um trabalho artístico está no mundo, mesmo aqueles são dedicados a alguém ou que carregam uma carga pessoal, eles poderão proporcionar uma experiência, seja ela estética, visual ou afetiva, te tirando de um estado apático com o mundo.
- O espaço privado da casa é um tema central dentro de várias das suas séries, como em Para as casas que nunca morei, Bodas de Prata, A casa começa na cozinha e termina no Jardim, Álbum de Figurinhas: casa. Em que momento de sua trajetória você se deu conta de que a Casa, e tudo o que envolve esse espaço, era um tema relevante para o seu pensamento e sua produção?
Bom, como disse antes, acho que foi nas leituras que fiz sobre a poética da casa, principalmente com os textos de Bachelard, que entendi como este espaço era rico e poderia contribuir muito no meu processo criativo. Quando entrei na graduação em Artes Visuais, meus colegas já tinham muitas questões internas resolvidas e já estavam se debruçando sobre outros temas mais universais ou de ordem política. Eu ainda muito jovem fiz um movimento contrário e passei a olhar para dentro, para as minhas memórias de infância, para as lacunas na história da minha família e provocar meu olhar como artista criador para as minúcias da casa e do meu cotidiano na busca de me entender como sujeito, como artista e narrador das histórias da minha família.
Hoje além das narrativas e da memória também tenho interesse na casa enquanto matéria, ando a explorar as diferentes materialidades e as lógicas de construção dos espaços. No trabalho “Para casas que nunca morei” eu já trago a presença da telha de barro, usada em telhados e ando fazendo experiências com tijolos e madeiras.
Acredito que ainda não esgotei as questões da casa, acho que ela pode me proporcionar ainda vários desdobramentos na minha pesquisa artística. Tem um poema da escritora portuguesa Matilde Campilho sobre a casa que resume bem o meu sentimento em relação a produzir a partir deste espaço:
Aprenderei amar as casas
quando entender que as casas
são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contém em si a possibilidade
de fazer gente*
* Two-lane blacktop. In: Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 116
- Sobre a série Insuficiências: fale sobre este título. Ademais, dando seguimento ao que você explicou sobre essa série em seu portfólio, fale sobre a sua relação com os discursos difundidos pela igreja cristã sobre o amor, e quais foram as dúvidas que você quis sugerir ao alterar os textos bíblicos para inseri-los neste trabalho.
Quando comecei a trabalhar na série Insuficiências, tinha tomado coragem de romper com a igreja evangélica que frequentava com minha família e me assumi homossexual. Com esse rompimento, passei a refletir sobre a formação religiosa que passei e traçar pequenas estratégias, como estudar gênero e teoria queer, para desconstruir alguns preconceitos internalizados e alcançar novos limites de liberdade. Ao mesmo tempo voltei a olhar para a Bíblia, o único livro que tínhamos em casa por um bom tempo durante a infância, e comecei a localizar passagens que eu e meus familiares gostávamos bastante. Na leitura fui percebendo que um livro que antes me trazia tanto conforto, agora me trazia mais dúvidas e senti que a minha história não cabia ali, numa tal de história universal e também nesta mesma reflexão não senti proximidade com a história da minha família, já que não tinha ninguém assumidamente homossexual.
Durante o período de leituras, passei a recolher fotografias da minha família materna com meus familiares para preencher algumas lacunas nas histórias que cresci ouvindo, na tentativa de dar “nome aos bois”. E foi nesta busca que encontrei a fotografia que desencadeou o Insuficiências. A foto era de um casamento, composta por 3 pessoas, dois homens e uma mulher, que não consegui localizar quem eram, unidos pelos braços, em uma paisagem rural. Com a foto e com esses personagens sem história comecei a fantasiar quem estava casando e elaborei narrativas ficcionais para esse possível casal homossexual na minha família, posando ao lado de uma amiga, em uma cerimônia íntima.
Fiz várias alterações nas imagens simulando diferentes casais e nos vazios que ficavam senti a necessidade de colocar as minhas dúvidas sobre todas aquelas leituras e histórias que havia reunido. Me apropriei de versículos afirmativos sobre o amor e alterei todos eles para perguntas. Imprimi as imagens e coloquei em monóculos, que foram distribuídos em uma caixa de madeira. Com o objeto-caixa, convido o espectador a tirar um monóculo de cada vez, provocando a pessoa a refletir sobre seus relacionamentos, suas histórias amorosas e até mesmo duvidar das certezas bíblicas.
O título veio no fim de todo esse processo, Insuficiências, pois todas minhas perguntas geram respostas insuficientes, poucas e duvidosas. E mesmo com toda a minha pesquisa para o trabalho ainda me restam muitas dúvidas.
- Everton, você acha que o Amor é uma ideia velha?
Não, eu acho que a ideia de amor é parecida com a ideia de oração. Quando criança, quando perguntava para minha mãe ou algum adulto por que os evangélicos oram e não rezam, eu sempre ouvia que a oração se renova toda vez que oramos.
Para mim, o amor se renova toda vez que amamos, aprendemos estratégias novas de amar, de suportar o amor e acredito que amamos cada um de uma forma diferente, seja na intensidade ou no cuidado. E pensando no futuro, com a geração que está crescendo, acredito que ainda vamos ser surpreendidos com novas ideias de amor e ser amado.
- Conte-nos a respeito do seu processo criativo.
Meu processo criativo não tem muita ordem, mas uma coisa que se repete é escrever. Apesar de trabalhar com imagens, antes mesmo de rascunhar alguma coisa, começo escrevendo sobre uma ideia, a escrita me ajuda a organizar as ideias e as possibilidades de trabalhos artísticos. Mas esta escrita não é de projeto, é narrativa, como escrita de diário. Às vezes quando sou provocado por algum estímulo externo vou nos meus escritos procurar alguma coisa que se encaixe e começo a elaborar o trabalho na cabeça.
Outra estratégia que uso para criar são arquivos que organizei composto por um conjunto de objetos e fotos de família, documentos específicos da minha infância, adolescência e vida adulta, correspondências, gravações de narrativas orais e escritas, diários e registros fotográficos da minha casa, outros elementos do meu cotidiano e acontecimentos que me impactam. São nesses documentos que muitas vezes retiro materialidades ou soluções para meus trabalhos.
E acho também que o que me ajuda muito a elaborar meus trabalhos é visitar exposições e ver as estratégias que os artistas traçaram para desenvolver o trabalho.
Álbum de figurinhas: casa (2016)
- Vou te fazer uma pergunta que já fiz a outros artistas que também levavam uma carreira acadêmica em paralelo à produção artística. Você está cursando atualmente uma pós-graduação em nível de mestrado na Universidade Federal de Pelotas. Você vê a formação acadêmica como importante para a consolidação da sua produção artística? Sua produção é necessariamente uma parte integrante da sua pesquisa?
Sim, muito da minha prática como artista aconteceu em paralelo com as pesquisas na acadêmica, não enxergo como uma coisa separada, elas caminham juntas. Estou em uma linha de pesquisa no mestrado, linha de processos de criação e poéticas do cotidiano, que visa a união da pesquisa acadêmica-artística com os trabalhos artísticos. E é na Universidade, apresentando um trabalho artístico ou um artigo, que me possibilita enxergar novas nuances no meu trabalho ou até mesmo estratégias de como resolver outros trabalhos. Além da contribuição na indicações de leitura, a palavra escrita, seja ela teórica ou literária, sempre atravessa meu trabalho artístico.
- Quais são suas principais: a) influências; b) ídolos; c) heróis e d) pessoas que você inveja.
São muitas as influências, mas acompanho desde o início da graduação artistas como Rosângela Rennó, Rosana Paulino, José Rufino, Leonilson, Hudnilson Jr e mais recente venho acompanhando a produção de diversos artistas tentando ampliar o meu olhar para meu trabalho também, entre eles: Fernanda Gomes, Aline Motta, Íris Helena, Helene Sacco, Duda Gonçalves, Gabriela Bresola, Amir Brito Cadôr, Fabio Morais, Nelson Felix, Eliana Borges.
Eu também tenho uma relação muito estreita com a literatura, sempre trabalhei em espaços com livros, atualmente sou arte educador na Biblioteca Pública do Paraná e sou influenciado muito pelas obras de Manoel de Barros, Cora Coralina, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Conceição Evaristo, Matilde Campilho, Valter Hugo Mãe, Odilon Moraes e André Neves.
- Quais são seus projetos futuros?
No momento estou focado na minha dissertação, que consiste na criação de uma biblioteca imaginária de impressos de artista, para poder desenvolver a pesquisa me propus a desenvolver, editar e diagramar alguns livros de artistas, alguns em projetos solos e outros em conjuntos com outros artistas. No momento estou trabalhando em dois livros: “Me mande notícias de casa” com o artista Matheus Guilherme e “Morfeu” com os artistas Bernadete Amorim, Douglas Figueira Sciera e Letícia Sequinel.
- Fale aqui sobre o que você sempre quis falar, com toda a liberdade, ou responda aquilo que nunca te perguntaram.
Sempre quis que me perguntassem por que eu uso como nome artístico “Everton Leite” e não o meu apelido “Beto”, dado por amigos próximos da minha família e amplamente usado nos meus círculos sociais. Também a escolha do “Leite”, já que eu tenho mais proximidade com minha mãe que me deu o Cardoso que compõe meu nome completo – Everton Cardoso Leite.
Durante muito tempo pesquisei a história da família da minha mãe, pois era com quem eu tinha mais proximidade e mais acesso a documentos, narrativas e fotos. Quando fui fazer os mesmos passos com a família do meu pai fui repreendido várias vezes e não sei o nome nem dos meus bisavós. Como não me restou quase nada de herança familiar do meu lado paterno, adotei o Leite, sobrenome do meu pai e o Everton, pois foi ele que escolheu e registrou escondido da minha mãe, que preferia Thiago.
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