imagem: Gregorio Vardanega – Envol No. 5 (1968)
[desliga a webcam e olha as mãos]
as duas faziam o mesmo movimento. eu as via de cima e o som era pouco, quase nada, mas dava para ouvir o roçar. o primeiro dedo passava por todos os outros, depois voltava para palma, as duas mãos faziam o mesmo movimento e eu as olhava, ficava ali por minutos e depois trazia cada uma delas para perto do ouvido e tentava entender o que o roçar estava dizendo, o que minhas mãos falavam. eu as olhava de perto, os minutos nunca eram os mesmos, sempre um novo lado da vida.
[na janela, entre a suspensão e a queda, um cabelo]
antes de ir, com as malas todas na porta e a sensação de falta, olhei pela janela e ali estava o fio, um único fio de cabelo, fraco, preso à parede e em contato com todo aquele vento, com a violência que decidia por ele, “você não está mais seguro”, você vai soltar e logo correrá pelo ar, descontrolado, enroscando, caindo, ninguém mais vai te pegar pela mão, ninguém mais vai te jogar.
[no avião dorme]
e eu sabia disso quando decidi largar tudo para visitá-la como quem visita uma avó, uma amiga, uma mãe. a cada dia eu a via diferente, mas sua imagem me vinha com cuidado, repetida, devo cuidá-la, ela vai cuidar de mim, vinha de novo. eu queria beijar as mãos que fizeram as minhas mãos, beijá-las e tornar-me parte do seu corpo, da sua vida, me assimilar ao mofo do teto ou aos ácaros dos pelos da gata.
[como louca sonha]
como louca: ouvir meus dedos.
como louca: deixar morrer cabelos.
como louca: ir à casa dela.
[a sorte]
já não havia na vida palavras pela metade ou vontade de fazê-las entrar para dormir, já não interessava servir ou conquistar confiança. havia doçura nos olhos de mais de trinta anos, naqueles que entendiam meus movimentos inquietos à noite, que me tiravam de casa sem muito a dizer. “eu preciso ir”, chorava, “então vá”, com sorte. eu vou por ela, antes dela ir, preciso beijar suas mãos, entende?, “então vá”. e a sorte me acompanhava, me dizia quando esperar, quando me sentar, quando comer, quando andar. era meu impulso, minha intuição, a escolha mesmo quando longe do desejo.
[o fôlego]
sair de casa com um só objetivo: as mãos de uma senhora. cuidar de suas mãos por alguns minutos e voltar para a minha sorte e refazer meus dias, minha ida, minha chegada, meu desespero em bater numa porta conhecida pelo mundo, a vida como nunca. tocar suas mãos dentro das minhas, reescrever minha história, vê-la me deixar entrar, fazer parte dos tacos do chão, eu tenho certeza de que todos nós tropeçamos, não quero que você caia, mas te ver cair vai me fazer chorar. eu choro e você continua olhando. recupero o ar e começo a andar.
[nas ruas sem fio de luz]
vou até sua casa andando e convoco meu deus para encontrar uma feira no caminho. uso as mãos, uso a coluna, estou viva. enquanto uma mão pega, a outra escreve e mais outra observa. torço para que todos estejam vendo o amor sair de mim.
[na rua daguerre]
na rua daguerre vi bem a cara dos donos das lojinhas, pintei na minha cabeça, fiz presente aquele cheiro, quantos cabelos soltos não consigo ver, quantos pés marcados nesse chão, eu não vou dormir aqui, mas gostaria de sonhar agora. rua estreita, pessoas se olhando como se fossem só eles, é sempre só a gente, comentários em bolhas e eu tentando estourar pulando com o alfinete. demorei para chegar em sua porta, gritar seu nome, venha me receber, me deixe entrar, usar teu banheiro, tomar da sua água, me deitar com você, ser uma mobília, ser vista.
[não fala a mesma língua]
duas pedras, tomates passados, peras comidas e um milho de recordação. oi, meu nome é larissa, vim ver agnes varda.