Literatura

Laura não sabe mais sobre o vento do que você

De uma poeta a outra: a curitibana Jessica Stori apresenta o livro de estreia da porteña Laura Szerman: Las palabras que otros dejan, publicado pela editora Milena Caserola em 2020.


 

I
deitada de bruços, escrevendo com o dedo na água, a poeta se hipnotiza antes de dormir. em nome do pai e da filha, a poeta argentina Laura Szerman escreve las palabras que otros dejan (2020).

II
entre o céu e o sonho, um cubo preto escrito, “la mujer invisible no tiene poderes”. segura o cubo, mas escolhe a obsolescência. quer as palavras deixadas, as que não foram esquecidas, as que escolheram deixar. quer o movimento para o obsoleto. fazer visível a agonia e o sorriso em tempo recorde.

III
para alcançar o obsoleto, a poeta conta suas histórias dormindo, já não importa se é a velocidade que passa de mão em mão ou o tempo da conjuntivite, se registra o voo do acontecimento, a mudança de expressões, as características que te fazem comum, as personalidades mínimas, a implicância com o fogo e não o seu orgulho. dois minutos para dizer, a poeta escolhe tossir. dois minutos para dizer, sufoco e coceira na garganta. dois minutos para dizer, soluço.

fazer a poesia soluçar.

IV
“todo estilo é um meio de insistir em alguma coisa”, Susan Sontag diz, e a poesia em prosa de Laura e seus y’s intermináveis me colocam ao lado de vontades objetificadas em palavras, ao lado da insatisfação com o que vê, quer ver mais, quer prever os próximos movimentos. o sorriso se não for registrado a tempo, corre o risco de já ser outra coisa, “ya es outra mueca”. se a promessa é o paraíso, ganha-se uma árvore, mas em seguida o bosque queima. há um preparo para se viver como peixe num mar de fogo, o peixe sabe desviar em qualquer situação. “até o mar daqui a pouco estará como o fogo”, lembro de Cesare Pavese escrevendo em 1936. a sua insistência vem de uma insatisfação criadora, procura maneiras de conseguir dormir no quadrado disponível, maneiras de continuar sonhando, maneiras de estar sozinha. repetição e insistência para “escuchar el ruido del mar en un vaso de agua”. tão simples, tão completo, tão impossível.

V
pela obsessão em registrar as pausas entre os acontecimentos, em cada uma dessas pequenas narrativas criam-se imensas armadilhas de captura do ignorado. fecha-se os olhos para fazer ruas inacessíveis se encontrarem através de pontes imaginárias. fecha-se os olhos para ver um riso inteiro que é a cara toda, que é o pé, que é a cara, “cuando se reía entera, la boca excedía la cara, la gente, los limites y la espera. y los pies tenían la actitud de su cara o su cara la de los pies.”

VI
o que Laura quer lembrar? o tchau dito de dentro para fora ou o peso do seu coração de girafa? o que é essa tentativa de hipnose e de encontro com o sonho, quando sabe o que é estar encalhada na areia como baleia? o medo é sentido pelo nariz e as palavras escapam nos dedos. é por isso que são essas as palavras que importam, são as impossíveis de capturar, mesmo com toda a preparação de armadilha. por isso o delírio de uma poeta dormindo, sonhando, escrevendo, por isso uma poeta correndo para registrar o máximo de gestos possíveis.

VII
“no pierdan tiempo em mis pantanos”. não há previsões verdadeiras, caso contrário não encontraríamos suas frustrações ao esquecer uma nova palavra ou por não ser telepata. Laura não sabe mais sobre o vento do que você, não sabe mais sobre isso do que você, a poeta erra e “interesan las palabras que otros dejan”, interessa tocar no obsoleto e saber que é coisa, assim como é coisa o exagero.

VIII
“al olvidarte empiezo a digerir la distancia de otra manera”. esquiva-se dos quilômetros sabendo ser a língua a possibilidade de ir e a poesia a capacidade de ver a lua em qualquer lugar. ler Laura é como fazer a viagem da mosca, ser, enfim, a mosquinha desejada encontrando o vento.


 


Laura Szerman nasceu e vive em Buenos Aires. É jornalista, tradutora e radialista. Seu livro de estreia, Las palabras que otros dejan, foi publicado durante a pandemia da Covid-19, em setembro de 2020, pela editora Milena Caserola. O livro pode ser adquirido no site da editora, através do link: https://milenacaserola.com/producto/las-palabras-que-otros-dejan-de-laura-szerman-2/

 

Jessica Stori
Jessica Stori é escritora e historiadora. Tem 26 anos e vive em Curitiba. É graduada e mestra em História. Suas áreas de pesquisa são a crítica literária feminista, o pensamento decolonial e a memória. Integra a Membrana Literária, coletivo de escritoras/es. Publicou Carne e colapso em maio de 2020 pela Editora Urutau.

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