Literatura

Não se esqueçam dos caseiros de Nova Alvorada

imagem: Eric Fischl – Crescendo na Companhia de Mulheres III (1987)

“Que bonito era o rosa vivo das buganvílias na frente da única chácara que se avistava na curva do Bairro do Carmo.”

Carlinhos

Quem passasse pela propriedade onde ficava a casa do vice-prefeito podia sentir sem esforço o cheiro do bode preto amarrado a um tronco frágil. O bode era vesgo como normalmente são os bodes. Diziam do vice-prefeito, irmão do prefeito da conhecida família Bello Oliveira, que ele estava envolvido até os tornozelos com magia negra. De negro o vice-prefeito não tinha nada porque era bem branco e seu último parente indígena, porque Nova Alvorada era uma terra indígena, tinha sido enterrado junto com o antigo nome da cidade há 70 anos. A família Bello Oliveira tinham por causa do bode, diziam, conseguido comprar terras extensas no Mato Grosso. Na propriedade do vice-prefeito também se podia espiar, atrás das cercas vivas, empesteada pelo cheiro cansado do bode, uma casinha de madeira. Ali moravam os caseiros. O pai, motorista de um micro-ônibus que prestava serviços pra prefeitura informalmente, gostava de abrir sua porta para dar carona a meninas novinhas, puxando másculo a alavanca emperrada. Era baixo o pai e tinha um topete. A mãe ninguém podia adivinhar a idade mas parecia usar roupas de mulheres muito mais velhas, talvez que já tivessem morrido, e tinha um corte de cabelo que não favorecia seu rosto. Falava pouco, andava sem ruído e tinha uma adoração não declarada pelo bode e seus cascos fendidos. A filha mais nova era uma gracinha, com os dentes da frente separados, e a mesma cor de pele do pai e o mesmo tom de cabelo do pai e o mesmo sorriso sedutor também do pai. Quem não se parecia com ele era o filho mais velho que se chamava Carlinhos, tinha marcas de espinhas antigas no rosto e uma fama de bom beijador. Para chamar a família do caseiro se podia apertar a campainha que ficava justamente ao lado da campainha da casa principal. Por isso alguns erros eram cometidos, algumas pessoas importantes eram perturbadas em horários inapropriados. A mãe atendia as duas campainhas, além de alimentar e escovar o bode. Fazia isso com muito diligência, podiam dizer que até com carinho, depois corria acender uma vela azul celeste e rezava pelo filho, invocando o bode por um nome secreto. Carlinhos conseguiu um trabalho de empacotador e depois passou a encarregado do estoque até alcançar o posto de sub-gerente do supermercado Nova Alvorada. Agora podia aprovar ou desaprovar pedidos de compra no crediário. A mãe estava feliz: o rapaz tinha escapado do trabalho na fábrica da Nissin Miojo. Fez um curso de computação na Microlins e não passava madrugadas na lanhouse como os outros moleques do bairro explodindo cabeças de soldados estrangeiros e obedecendo comandos em inglês. Sabia montar e desmontar um computador como ninguém mas essa era uma habilidade inútil pra um funcionário de supermercado.

Taís

Que bonito era o rosa vivo das buganvílias na frente da única chácara que se avistava na curva do Bairro do Carmo. Que bonito era o sorriso de Taís com os dentes inclinados pra frente por chupar dedo até a idade escolar. Um sorriso igual ao do pai e também os cabelos em cachinhos pretos sempre presos num rabo de cavalo baixo. Baixo também seu tom de voz. Poucas pessoas da casa principal podiam dizer que ouviam a voz dela em momentos em que não era solicitada. Taís, um passarinho escuro e quieto, mínimo. Limpava as gaiolas com cuidado e fiapos de palha de aço entravam debaixo das suas unhas enquanto areava as panelas. Não reclamava. A pequena e quieta Taís não piava, tinha perdido a mãe de uma doença do coração. Dizia o “Zé Povinho” – gostavam de usar essa expressão os da casa principal – que a mãe da garota era prima de primeiro grau do marido por isso tinham saído de Vargem do Salto pra se instalarem, com mais discrição, em Nova Alvorada. Talvez por isso Taís fosse assim quieta por ser filha de primos. Mas a rotina da família proprietária, no final de semana passado, foi interrompida por aquela dupla de aves pareadas – filha e pai – que aconteciam de morar ali, há quanto tempo? Taís primeiro tropeçou e perdeu o tampo de cima do dedão, manchou de sangue o estofado da cadeira do quintal – que terá de ser profissionalmente lavada; depois foi picada na pálpebra do olho direito porque, estendendo roupa, apertou uma abelha que tinha pousado no pregador. Pra estragar tudo de vez, queimou seriamente a mão tirando a lasanha do forno sem usar o pano de prato. As bolhas inchavam altas. Porque era domingo a casa principal estava cheia de visitas da cidade mas a mãe, uma mulher muito atenciosa com a pequena família de caseiros, pai e filha, parou a feitura da sobremesa de Bis Branco pra levar Taís no posto de saúde. Na ida, antes de chegarem, no entanto parou na floricultura da beira da estrada, aquela que tem um E.T do tamanho de um jogador de basquete na entrada. Taís ficou quietinha no banco do passageiro olhando sem piscar pra mão pulsante – a dona comprou adubo pras samambaias e zamioculcas. Não pras buganvílias que florescem selvagens, como querem, a tampar parte do portão de madeira da entrada da única chácara que se avista na curva do Bairro do Carmo.

Maykon & Michelly

As duas ficavam de cócoras pra catar os coquinhos laranjas que caiam do coqueiro. Com uma pedra pontuda batiam no coquinho até que ele cedesse e fosse possível comer os barulhinhos de dentro. A casca fiapenta do coquinho também dava pra chupar, tinha gosto doce enjoativo e seguro como os domingos quentes que se esperava que não tenham fim. Michelly e a menina vizinha levantavam ao mesmo tempo e sem combinarem em voz alta iam pra trás da casa da família de caseiros. A casa de alvenaria sem forro com um rack lustroso onde moravam as miniaturas de cavalos e hipopótamos e crocodilos da mãe Edilene que não suportava piolhos e temperava muito bem o feijão só com alho e louro. Na parte de trás da casa, durante a semana, quando os donos não estavam, e também em alguns finais de semana quando eles preferiam a casa na praia, as meninas brincavam de marido e mulher. Revezavam-se no papel do marido traído pela esposa que chegava em casa e pegava a mulher no flagra. O amante era o braço. Longos beijos ardentes no braço, o susto, o arrependimento e a parte mais aguardada: ter que conquistar o afeto do marido de volta com juras encharcadas, implorar prometendo sacrificar a própria vida, ficar de joelhos se for preciso, qualquer coisa pra alcançar o grande final: o desejo requentado pela reconciliação. Tudo corria bem quando não aparecia o irmão mais velho. Mais velho e de bermuda, com covinhas e a pele queimada, sobrancelha faltando um pedaço. A chegada de Maykon causava na menina vizinha reações ambíguas, não sabia se continuava a se ajoelhar pra Michelly ou se trocava de santo. Michelly, cabelos de luzes naturais, pele macia com pintinhas e verrugas claras. Maykon escuro, braço firme, cabelo passado à máquina. Eram uma só entidade, um arcanjo com duas faces. A menina vizinha se segurava pra não fazer papel de ridícula e dar um joelho pra cada um, ficando assim de pernas abertas atrás da casa sem forro. Pais diferentes os dois tinham e a mesma mãe Edilene. Numa das noites que a menina vizinha dormiu lá – porque sua mãe trabalhava até tarde embalando verdura na cooperativa da cidade – sonharam as três crianças com a mesma cena, sem saber. Nadavam na grande piscina olímpica, a proibida, nus, não existia mais porteira e a picape dos donos nunca achava seu caminho de volta pra lá. A casa de alvenaria tinha crescido tanto a ponto de roubar o espaço da casa principal. Da estrada podia se enxergar a maior piscina do mundo e as crianças dentro dos carros pediam para os pais pararem pra elas poderem ver de perto o milagre. O dia quente, eles não precisavam chupar coquinhos, podiam encher a boca de água e cuspir pra fora como se fossem belas fontes de decoração num pátio de mármore. Mármore, um material do qual desconheciam o nome. Querubins com as genitálias liberadas ao calor do sol. Maykon & Michelly acordaram satisfeitos na cama compartilhada sem estrado. Não repararam que ainda dormia a menina vizinha que em sonho deixava a piscina e os dois pra trás. Ainda nua sentou numa cadeira e entendeu que o que achava que eram piolhos eram na verdade um lagostim alaranjado preso no seu couro cabeludo. Precisou usar um balde com água da piscina para atraí-lo. O bicho caiu no balde e virou um minigado nelore que pulou da água, branco com sua carcunda, pra se enfiar na fresta mínima que separava a casa dos caseiros da casa principal. A casa principal da família proprietária que chegava de picape pra usufruir da sua piscina dourada.

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

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