Literatura

Recado de Nascimento ao Haiti

imagem: Dora Maar – Sem título (Mão-Concha) (1934, detalhe)

 

a vida no planeta tem 4 bilhões de anos

e aprendemos a escrever ontem

aprendemos a amar ontem

.

Nos nasceu uma menina
como ditaram os prognósticos
e a notícia que me chegou em julho
de um embrulho de tecido e pouca carne
anos depois do encontro do homem
que é seu pai
e escreve
e da mulher
que é a sua mãe
e ensina
perto da rodoviária
quando meu amigo desistiu de embarcar
para uma viagem ao Chile
onde trabalharia com qualquer outra coisa
que não fosse encher de combustível
carros conversíveis, chamar o gerente, não ser olhado na cara
foram os dois tomar suco natural de caju
três línguas domina sua mãe e vende livros
três línguas domina sua mãe e tem outra filha
que é muito mais que uma bailarina
e sabe montar quebra-cabeças como ninguém
você nasceu aqui, mary, marie, maria
ela nasceu lá
onde a terra tremeu e soterrou as carteiras e os lenços
as pessoas e os cachorros
onde brotou ONG e soldado conterrâneo
quando te vi pela primeira vez você não sabia nem
ver com os olhos, estava amassada
deitada no berço construído de madeira e véu
sob o lençol que eu te escolhi e um vento de inverno
torço para que você nunca morda a mão de quem te alimenta
e sempre morda a mão de quem te alimenta
que se lembre: o mar está cheio de água e é molhado
e isso é algo que aparenta ser muito simples
mas quase todos os dias vai esquecer
de que a vida no planeta tem 4 bilhões de anos
e aprendemos a escrever ontem
aprendemos a amar ontem
sua mãe te pariu ontem no meio disso tudo
do caos do frio de pessoas do sul querendo justiça
e empregos que nunca foram seus
quando seu pai foi pra casa de ônibus
com ganas de lavar os pés molhados de todos
do terminal à sua casa
imaginando que podia performar milagres
porque afinal tinha feito você
e escapado da construção civil,
desviado de algumas tentações,
caído em tantas outras enquanto
andava pela cidade de mãos dadas
sua mãe te esperou calada
não, te esperou rindo
eu te esperei com vergonha
especialmente
do que o mundo não poderá te oferecer
e mesmo que não esteja comigo
dormirei com sua pequena orelha
colada em minha cara
certa de que nos visita uma preta pantera
com mirra pregada à pata.

Julia Raiz
Julia Raiz é escritora e pesquisadora na área dos estudos feministas da tradução. Edita os sites Totem & Pagu – firrrma de poesia e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Participa em Curitiba da grupa de escrita membrana. Seu livro de estreia “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela Contravento editorial, também publicou o megamini "p/ vc" pela 7Letras em 2019.

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