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O demônio oral e o neon devorado

imagem: Elle Fanning em still de Demônio de Neon, de Nicolas Winding Refn (2016)

Gustavo Jugend comenta aspectos de ideais de beleza e narcisismo a partir do filme Demônio de Neon (2016).


Redrum. (…). É o nome da cor. Dizem que mulheres gostam de comprar batons que tem nome de comida ou sexo.

– Refn

“Em que espelho ficou perdida a minha face?”

– Meireles

Em seu Demônio de Neón1, Refn parte de um lugar comum para criar uma história que suscita, ao menos, inquietação. Trata-se de uma jovem modelo recém-chegada a Los Angeles e que, dado sua formosura excessiva, torna-se rapidamente objeto de desejo e inveja. O que poderia ser apenas uma trama óbvia e de lugares comuns se desvanece ao longo do filme – a saber – pelas imagens e sons de difícil apreensão em contraste com diálogos que, na maioria das vezes, não dizem nada, mas que quando dizem algo, são muito reveladores. No desenlace do filme a protagonista Jesse termina devorada por três outras mulheres: Ruby, uma maquiadora que a desejava sexualmente e havia sido rejeitada, e outras duas modelos, Sarah e Gigi que viam na beleza de Jesse a falência de sua própria aparência. De posse desse breve resumo, e sem querer de nenhuma maneira impor uma verdade ao filme, proponho agora a seguinte questão: por que tentar devorar uma beleza impossível? Tentarei indicar uma possibilidade de resposta a partir da história de cada uma das comensais.

Comecemos por Ruby, a maquiadora de modelos e tanatoprática – maquiadora de cadáveres. O primeiro diálogo que ela estabelece com Jesse se dá por intermédio do espelho. Logo após uma sessão de fotos na qual Jesse se posta como que um manequim de plástico ensanguentado e de roupas que lembram néon, Ruby se apresenta. Desde então Ruby se coloca em um lugar de protetora da novata. Eventualmente, após uma tentativa de ataque por parte do dono do motel onde morava desde a chegada em Los Angeles, Jesse se refugia em uma mansão guardada por Ruby. A maquiadora tenta seduzir Jesse, é rejeitada e, em destempero, tenta estuprá-la. Ruby termina atirada ao chão. No dia seguinte Ruby se masturba em cima de um cadáver que deveria maquiar, enquanto fantasia com Jesse.

Já Gigi e Sarah conhecem a protagonista em uma festa. Após alguns elogios por parte de Gigi e Ruby, Sarah mostra desdém e, se referindo à Jesse na terceira pessoa, porém a encarando, diz: “Uma linda novata aparece e todos querem saber com quem ela transa? E quão alto ela pode chegar, mais alto que eu?” A juventude que um dia ela possuiu, e não possui mais, agora aparece na rival. O medo de Sarah se revela quando Jesse é escolhida em seu lugar como modelo central de um grande desfile. Após a seleção Sarah, ao olhar para si mesma no espelho, atira uma lata de lixo e o quebra. Quando Jesse vai em seu socorro se corta com um caco de vidro, Sarah agarra a sua mão e tenta chupar seu sangue, deixando sua boca com a cor do batom kubrickiano: Redrum.

Para falar de Gigi voltemos à cena do banheiro. Gigi faz elogios à Jesse, dizendo coisas como “gostaria de ter seu cabelo” e “esse é seu nariz de verdade?”, para logo depois contar que todo ano faz plásticas, e que seu cirurgião a apelidou de mulher biônica. O reencontro entre elas se dá nos bastidores que precedem o grande desfile, no qual, observando Jesse, e se observando no espelho, a mulher biônica continua a relatar suas plásticas, mas dessa vez confirmando seu pouco gosto pela própria aparência. Essa sensação é confirmada após o desfile quando o estilista menospreza a “beleza fabricada” de Gigi diante da “verdadeira beleza” de Jesse.

A trama do filme confirma a ideia segundo a qual nós juntamos demônios na frente do espelho2. O demônio das três comensais é Jesse, um ideal puro de beleza. A palavra demônio, daemon, encontra em Platão a sua reflexão que marca o pensamento ocidental. O daemon platônico é uma espécie de duplo de nós mesmos. A nossa imagem que nos liga aos deuses. É a partir do daemon que os deuses atribuem a medida de nossa virtude e nosso vício, ou, traduzindo em uma ideia moderna, nosso caráter. Em seu O banquete (diálogo cujo título não deixa de chamar atenção ao lado do filme de Refn) o daemon é uma imagem do amor. Um ideal de como amar e de como se deve ser para ser amado. O daemon platônico, Jesse. Como ela mesma afirma, as mulheres: “rezam para parecer com uma segunda versão minha.”

No século XX a relação do indivíduo com o seu daemon ganhou o nome de narcisismo. Para Freud o narcisismo, diferentemente da tosca sinonímia com vaidade atribuída por alguns, é uma espécie de medidor psíquico da relação que um indivíduo tem com o seu Ideal de Eu – isto é, com a imagem que seu inconsciente faz de si mesmo, com o daemon, que Freud chamou de Eu ideal: os atributos que o inconsciente acredita serem necessários possuir para ser amado. O que significa que, no inconsciente o Eu ama uma imagem ideal, e quanto mais ele se aproxima dessa imagem, mais ele se gratifica; por outro lado, quanto mais ele se afasta dessa imagem, mais ele se pune, ou pune algo que possa encarnar essa imagem. Isto é o narcisismo. Em Demônio de neon isso se dá como uma teoria do tempo. Temos Sarah, que ama em Jesse aquilo que um dia ela foi e não é mais: jovem; Temos Gigi, que ama em Jesse aquilo que ela um dia gostaria de ser, se submetendo à intervenções cirúrgicas: a beleza. E temos Ruby que ama em Jesse aquilo que ela acredita ser: objeto de desejo. Para Guy Debord é justamente uma ideia de felicidade falsa, e, portanto, impossível, que seria o articulador de uma sociedade cujos indivíduos desejam sem saber o que desejar. O objeto de desejo impossível ele chamou de espetáculo; um objeto que é mera representação, que não é nada de fato; e a articulação social em seu entorno, a sociedade do espetáculo. Para Maria Rita Kehl, é a conexão entre desejo impossível no inconsciente e espetáculo que fundam a necessidade das clínicas de saúde mental na modernidade. E diante da beleza impossível que Jesse representa, o amor se torna ódio para as três comensais: Sarah não pode voltar a ser jovem, Gigi jamais terá a beleza inata e Ruby não é o objeto de desejo que pensava ser. O ódio que as comensais narcisistas nutrem é inevitável, afinal, estão diante de um daemon impossível. Para Freud, quando sujeitos se identificam através de um objeto de ódio forma-se o narcisismo das pequenas diferenças: a união em torno da rivalidade. O objeto de rivalidade une as melancólicas espetaculares em torno do desejo de destruí seu objeto de amor, de ódio3.

Muito antes de formular o conceito de narcisismo Freud já havia atinado pra ambiguidade entre amor e ódio em torno de um mesmo objeto naquilo que chamou de fase oral. Na observação de crianças recém-nascidas o psicanalista notou a necessidade do bebê de não se diferenciar de seu objeto de amor primário: a figura materna. A criança tem, no seio de sua mãe uma forma plena de primeira satisfação, e começa a conhecer a dor quando essa satisfação se ausenta. Daí a ideia de que o prazer tem a ver com a devoração do objeto de amor, e, por isso, a voracidade da criança: a de impedir que a mãe se ausente. Justamente por ser a mãe objeto de amor na presença, e ódio na ausência, a devoração se torna uma ação de amor e ódio. Quando da formação do inconsciente, amor e ódio não podem conviver na consciência, ficando uma delas relegada no inconsciente, mas pronta pra aflorar. Uma espécie de regressão à fase oral. O narcisismo comensal leva Ruby, Gigi e Sarah a matar o seu objeto de amor impossível e, em regressão oral, devorar sua carne. Esse banquete platônico-freudiano é a tentativa de tornar a si mesmo, por meio do ódio, um objeto de amor irremediavelmente separado. A beleza impossível do daemon neon foi devorada; e uma promessa de felicidade se anuncia. Será?

Por fim deixo aqui algumas questões acerca do desfecho digestivo das canibais como forma de convite para quem quiser pensar o filme no limite do que eu fui incapaz: após a devoração Ruby se prostra nua e, com expressão de satisfação expele pela vagina um líquido vistoso. Algo como um parto sem criança. Poderíamos seguir uma trilha freudiana de interpretação com, por exemplo, a ideia da consumação de um amor narcísico? Também podemos nos questionar acerca de Sarah e Gigi. Em sua última aparição, durante uma sessão de fotos, Gigi passa mal, corre para longe, vomita um olho e se mata – ato contínuo, Sarah junta o olho do chão, engole e volta ao ensaio. Para Freud, a insistência na fase oral de Sarah remete a duas possibilidades, psicose e sociedade de massas – afinal – a sociedade de massas é sustentada por um delírio no qual os indivíduos são incapazes de diferenciar imaginação de realidade, objeto de desejo presente e objeto de desejo ausente. Assim como a psicose é a herança da negação da criança em aceitar a ausência do seio da mãe, a sociedade de massas é a negação da realidade social em troca de uma sociedade inventada. Por outro, seria possível imaginar Gigi como o representante do mal-estar na cultura? Na cultura, o mecanismo da culpa leva o indivíduo a abrir mão da satisfação excessiva em nome da associação entre pares: ou seja, em nome da sociedade. É possível pensar o vômito de Gigi como a incapacidade de conviver com o excesso de satisfação?

1 Durante o ensaio a história inteirinha do filme O Demônio de Néon será contada. Se você não viu o filme, mas sabe que arte é uma experiência, o texto está aí para você ler se te interessar; caso você seja da geração spoiler, clique em https://www.instagram.com/p/B8mmYXGDMAN/ .

2 Cf. HARRIS, S. (Org.) Uma questão de vida ou morte.

3 Cf. BELL, A; CLARKE, V. Coral.

Gustavo Jugend
"eu sou como eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes / nesta hora" - Torquato Neto

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