imagem: Gjon Mili – Lindy Hop (Life Magazine, 1943)
Mauricio Cardozo, nosso ilustre convidado para o Ruído desse mês, fala – nada mais nada menos – a respeito do Fazer. Fazer a Revista.
Isto posto, segue um grande texto.
“revista é o desejo, o desafio e o desbarate da comunidade.”
revista é coisa dos muitos sentidos. é coisa dos tantos sentidos técnicos, na austeridade de suas conformações particulares, como Zeitschrift, magazine, revue, review etc., e na generosidade de sua expressão mais geral e genérica, como revista. é coisa dos vários sentidos filosóficos, religiosos, científicos, na conformidade das premissas e dos preceitos, na extensão dos seus horizontes, e às vezes além. é coisa, enfim, dos mais diversos sentidos estéticos, políticos e históricos, mas, no mesmo gesto, é ainda a coisa das estéticas, das políticas e das histórias dos sentidos. revista é isso e o mais.
revista é coisa de pegar pra ler, de se ter nas mãos ou de se ter diante de nós numa tela de celular, tablet ou computador, num dia de chuva ou de sol, na praia e na montanha, no ônibus, no barco e no avião, aqui, aí e no mais extraordinário dos ondes, nos quandos mais imprevistos e nos quandos de sempre. revista é ofício e fetiche, atenção e diversão, novidade e obviedade, compromisso e comichão. tem a revista que é de mostrar pros outros, tem a revista de esconder, tem a revista de colecionar, tem a revista de se ter quando não se tem mais nada com que se ocupar. tem a revista que faz rir, tem a revista que faz pensar, tem a revista que nos faz fazer e tem aquelas todas que só nos fazem querer o que não se pode alcançar.
revista é coisa que pega pra valer, que vira objeto de referência e de reverência, de cultura e de contracultura, de moda e de resistência aos modismos. mas tem sempre a revista que não pega, que não vira nada além de mais uma outra revista, o que só confirma e reafirma a hipótese de que não pegar também é coisa de revista, diz da revista, faz a revista. pois pegando ou não, revista é coisa que nos pega, e nos pega pelos olhos, pelo coração, pela boca, pela razão. tem as poucas revistas que lemos, e as revistas todas que não lemos, e por mais estranho que pareça, tanto vale ser leitor de uma revista quanto não-leitor de certas revistas – com jeito ou de jeito, as revistas nos pegam de qualquer jeito.
revista é objeto e, em sua unidade de objeto, a revista é objeto composto, compósito. revista é coisa feita de coisas, de outros objetos, de outros textos, gravuras, ilustrações, fotografias etc. a pluralidade funda a singularidade da revista como objeto. mas esta é uma pluralidade sempre orquestrada, arquitetada, temperada – dizemos editada –, é o produto de um olhar, de uma ideia, de um afeto e muito muito muito trabalho. revista é um objeto, mas é também a poiesis da pluralidade que o compõe, é um modo de recortar o mundo, de criar um mundo pelo corte – diremos pela crise, pela crítica –, de criar um mundo pela ruptura com a massa informe e indistinta da vida, o que é apenas um outro modo de fazer mundo: o mundo dos objetos que compõem a revista como objeto.
tem a revista que é do lugar, tem a revista que é de muitos lugares e aquelas que não são de lugar algum. mas pra que ela mesma seja um lugar, a revista tem de dar lugar, tem de fazer a lição do ouriço, abrindo-se ao se fechar. pra que ela mesma seja um lugar, a revista tem de acolher sem sequestrar, reunir sem confundir, mobilizar sem atropelar, flagrando a alteridade nos cúmulos do indistinto, dando-lhe forma e, assim, resistindo ao império sem fundo e à sanha mouca das transitividades. e quando dá lugar (se dá lugar), a revista tem lugar, funda o espaço de um acontecimento, acontece como espaço, espaceja e espacializa o seu corte de mundo, então um mundo, o seu mundo. revista é o desejo, o desafio e o desbarate da comunidade.
tem revista que se quer do seu tempo, tem revista que resiste ao tempo, tem revista que é de outros tempos. mas é sempre coisa de revista ser de tempos em tempos. e dada essa sua vocação periódica, mais do que se inscrever no tempo, tem revista que marca o tempo, dita o tempo, dá o tempo. em tempo, tem revista que inventa os seus próprios tempos. e nesses tempos em que, às vezes, tudo e todos de repente nos parecem surucar no sumidouro do mais indistinto dos regimes, na condição de meros objetos em revista, nada mais urgente que fazer, nada mais urgente que cortar e apartar, nada mais urgente que se abrir em cada impulso de se fechar: e que se faça a revista!