imagem: Theodor Pištěk – Retrato de Família (1976)
Um texto sobre a possibilidade do texto, sobre o não-dito, e, possivelmente, sobre o não-escrito. Julia Raiz retorna, autêntica e profunda, para a Literatura da R.Nott Magazine.
“Ele precisa saber o que as pessoas não dizem sobre a tristeza de perceber que a essa hora já não se vai a lugar nenhum, todos os transportes cancelados, aquelas estradas interrompidas.”
Ele tinha firmado o compromisso de escutar a perspectiva dos nauseados, dos que vieram de barco, dos que se assustaram com as freiras e caíram, dos que tropeçaram nos brinquedos dos filhos e caíram, dos que enfrentaram a batalha e caíram. Ninguém garante a solidez da ponte: uma escrita sobre a vertigem, com certeza, ninguém garante. E tinham escolhido Ele como testemunha da cidade.
Neste relato, Ele poderia escrever sobre um homem que desperta com uma visita inesperada, poderia escrever sobre o rio pestilento que circunda a casa de uma família estranha que precisa pescar à noite, ou sobre alguém que, em breve, passará muito mal no avião e segurará as têmporas como se pudesse se salvar. Poderia escrever sobre um dentista não confiável numa cidade alagada ou sobre uma espiã que lê a bíblia enquanto janta. Antes e além de tudo, Ele diz para si mesmo, é preciso escutar o que essas pessoas não dizem. Por que ficam todas, num momento ou outro do dia, à beira da janela com as pernas derretendo, imaginando como se derrubam os bebês, como se perdem os bebês, como se rolam por cima dos bebês na cama.
Sua matéria é a náusea & a vertigem da guerra civil. A certeza de que já se lançou um pacote lá de cima, que se observou a si mesmo caindo, um empurrão desproposital e a moça que se ensaboou de propósito para caber na janela gradeada. Ele precisa saber o que as pessoas não dizem sobre a tristeza de perceber que a essa hora já não se vai a lugar nenhum, todos os transportes cancelados, aquelas estradas interrompidas. As caretas exatas da fome daqueles que mordem e o julgar estando com a barriga cheia daqueles que testemunham: essa é a prova de que não sobra muita coisa em termos de regra a Ele, além de evitar expressões como “clareira do silêncio”.
Deveríamos todos parar, Ele gostaria de começar assim, neste momento de mexer com as máquinas, de olear as peças e lustrar os carros. Deveriam todos parar de produzir armamento para a sala de jantar e ouvir. Os que já sabem, podem contar o que não dizem os que perambulam, os que escaparam da tentação de se lançar, de subir em escadas tortas ou trocar lâmpadas. Os que sabem podem começar a contar o que não se diz sobre a diferença entre as sobreviventes da batalha e a menina na garupa da moto que caiu e quebrou o pescoço ao virar a esquina antes de chegar em casa. Ele queria escrever e dar um grito pela aleatoriedade, escrever e gritar pela diferença, pela certeza de acordar um dia e saber-se vítima de nenhum trauma em específico.