imagem: still de A Harmonia Werckmeister (2000), de Béla Tarr & Ágnes Hranitzky
Nossa coluna de Artes Visuais retorna com Marlon Anjos discutindo questões de crueldade animal, hipocrisia, e da soberba do Humano, auto-divinizado, frente ao resto do reino animal.
“Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! e não salvarás?”
Habacuque 1:2
Dar a Deus a face humana revela nossa tentativa em barganhar o direito de vida e morte sob qualquer outra espécie animal. A alegoria de um Deus à imagem e semelhança do homem garantiu, a um só tempo, status humano apartado das demais formas de vida. Essa cisão aprovou o domínio de máquinas autônomas, como René Descartes definiu os animais, sendo seres privados de alma que nada poderiam reivindicar pelo sofrimento infligido, seus gemidos apenas reconhecidos como o ranger de peças quebradas. Não sendo a dor refratária, o sensível é rasgado, dando espaço para que o poder seja exercido sem escrúpulos: de bestas de carga a protagonistas de espetáculos, eles nos ajudaram a construir o mundo tal como o conhecemos; em suas vísceras encontramos o nosso futuro, eles também possibilitaram imaginar; com o seu sangue criamos códigos, em condolência, a face animal sugeriu signos e símbolos, de modo que ainda eles guardaram a feição do salvador cristão. Os laços com os animais são profundos pois a cumplicidade que temos com o matadouro não produz cheiro.
Em O crime do professor de matemática, Clarice Lispector nos apresenta o remorso e a culpa de um crime sem punição: o abandono de um cão. José, o nome dado ao cão que lhe confere face e alma, em nada serve para reprimir o abandono. Não há castigo inventado para a traição disfarçada. Desejar o castigo ao professor que se livrou de um cão, não seria pensado nem mesmo pelo mais beato cidadão da pequena cidade que nasce aos pés da igreja. O comportamento animal reflete também a impunidade do abandono: ao abanar rabo e, contente, lamber o rosto do professor, o cão lhe daria a outra face. É na cova rasa que o corpo do cão ocupa que o professor encontra a sua fraqueza e a sua condição. E na culpa, “ao encarar de olhos vazios o sol”, encontrou redenção ao reconhecer que todos seriam seus cúmplices por não enxergar ali crime algum. O professor, durante todo o conto, insistentemente limpa as lentes dos óculos. Esse gesto peculiar talvez simbolize a tentativa de enxergar o mundo de uma outra forma, como se pudesse, com esse gesto, trocar as lentes que apresentam a realidade.
Distante da realidade de Clarice, o abandono e os maus-tratos a animais hoje encontram punibilidade. O conto, entretanto, encontra eco e é atemporal pois a relação com os demais animais transcende a literatura e permeia a vida, a religião e a arte.
Em 2007, o porto-riquenho Habacuc (חבק: abraçar) montou a “Exposição N ° 1” na Galeria Códice, em Manágua, Nicarágua. A sua obra consistia no hino sandinista (tocado ao contrário), um incensário onde queimava 175 pedras de craque e 11 tabletes de cannabis, um cachorro chamado Natividad e uma frase escrita com ração: eres lo que lees. O quinto elemento, como definido pelo artista, era a mídia. Não demorou muito tempo para que circulassem na internet petições contra a obra, alegando maus-tratos aos animais e exposição da fome. Mas vale lembrar, como registrado pela galeria, que o público presente durante a exibição não ousou alimentar o animal, nem mesmo procuraram a autoridades, tampouco socorreram o cão amarrado às paredes. Em entrevista para o jornal El Tiempo, Habacuc informou que se inspirou no assassinato de Natividad Canda, viciada morta por dois rottweilers na província de Catargo, enquanto era filmada pela mídia, na presença de policiais, bombeiros e seguranças. Para o autor, a sua obra é sobre a hipocrisia e a mensagem que fica exposta nas palavras feitas com ração talvez seja: ainda não somos o reflexo do que lemos ou vemos no mundo, pois a omissão é mais palatável que o altruísmo.
Em 2013, Habacuc iniciou outra obra na galeria Heredia, Costa Rica. Informou que publicaria em um blog uma foto por dia do cão Axioma até o fim das eleições do país em 2014. As suas fotos mostravam os efeitos do tempo e da fome em um cão que estava sob sua tutela. Tais publicações eram alternadas com imagens do mito de fundação da sociedade costarriquense. Mais uma vez houve comoção social e pedidos para que autoridades lhe impedissem. Pelas autoridades cabíveis, seu site foi retirado do ar, acusado de expor à fome um animal indefeso, bem como recebeu em sua casa visita do Serviço Nacional de Saúde Animal que encontrou, além de Axioma, vários outros cães e gatos em ótimo estado. O que em realidade foi exposto em seu blog foi a cura de um animal encontrado em situação de abandono em 2010. Habacuc cuidou de registrar todo o processo de resgate e recuperação de Axioma e, em seu blog, publicou a ordem inversa das fotografias, de modo tal que enganou o público de que havia pegado um animal sadio e o tornado decrépito e doente. Habacuc descreveu a reação ao seu trabalho como “típica de um mundo em que as pessoas formam opiniões sem serem informadas”. Sua obra é um estudo das interpretações limitadas e do poder de persuasão que os dados e as informações carregam, mas também nos diz respeito ao desejo e às investidas de pessoas em acreditar no fantástico, seja no fato de um artista torturar um animal como parte de sua obra, ou nos mitos pudicos fundadores de uma sociedade. Talvez sua obra guarde uma verdade carregada com ainda mais ignomínia: em vez de eres lo que lees, somos lo que leemos.
Conhecer o mundo que vemos pode e deve proporcionar a ruptura com a cisão descortinada pelo mecanicismo. A obra de Rodrigo Braga indica a empatia como caminho para a reconciliação. Ela aborda o antropozoomorfismo que possui a sua própria genealogia, pois a sua ergonometria é evidente. As partes animalescas sempre foram encaixadas em humanos, mas a novidade apresentada pelo artista em Fantasia da compensação (2004) é simular o transplante da face de um cão em seu próprio rosto. Trata-se de uma ficção, mas reflete a identificação que o artista sentiu, quando criança, ao encontrar um cão doente na rua. Na redução dos traços humanos, a repulsa é mero detalhe quando a afinidade se materializa.
Vestir-se de animal pode ser apenas um símbolo diante da possibilidade de que sempre haverá o interior de um touro para nos redimir enquanto as brasas ardem. Na intenção de purgar o mal causado, devemos reconhecer que a face humana emprestada a Deus não nos redime perante a responsabilidade e a ética. As vicissitudes da arte contemporânea se propõem como antídoto à face monstruosa que justifica a violência.
Essa violência não raras vezes é vista como sinônimo de progresso. Em nosso país a expansão agropecuária tem relações estreitas com o desmatamento e com o conservadorismo. Essa associação, além de predatória, produz pobreza e risco ambiental. Segundo dados do IBGE, em 2018, para consumo, o Brasil celebrou a morte de mais de 5,77 bilhões de animais em matadouros legais, número celebrado, pois a morte de bovinos, suínos e frangos indica índices de progresso. No entanto, num país que possui 209,3 milhões de pessoas, segundo indicadores do SIS, a pobreza continua a crescer geometricamente. Metade da população brasileira (104 milhões) vive com meio salário-mínimo por mês, e mais de 13 milhões de brasileiros sobrevivem com menos de 150 reais por mês. Esse número é maior que a população inteira da Grécia ou de Portugal. Mato Grosso do Sul, estado que concentra o maior índice de morte de animais para o consumo, possui também o maior índice de desmatamento. A conclusão é óbvia: o país que se orgulha da matança coloca em risco o meio ambiente, e a produção de carne para consumo não corresponde ao progresso, nem tampouco como medida para erradicar a pobreza. Cita-se ainda, segundo relatório realizado por pesquisadores da ICMBIO, no Brasil, que em dez anos o número de animais em extinção cresceu em 178%, num total de 716 espécies a mais que em 2018.
Semelhante a Narciso, nos afogamos olhando embevecidos com a ideia de progresso. A Constituição Brasileira de 1988 é clara em indicar, em seu artigo 225, inciso VII, que são vedadas “as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. Infelizmente, a validade dessas palavras depende da feitura de leis repressoras que, por conseguinte, dependem da vontade de parlamentares, que por sua vez, e não raro, possuem interesses econômicos particulares nessas atividades.
A emergência de uma atitude se põe diante de nossos olhos; não é necessário limpar as lentes para enxergar uma outra realidade, pois os cactos de Bandeira, que guardam os gestos constrangedores das serpentes que envolvem Laocoonte, já organizaram a sua revolução. Até no fundo de aquários já identificamos os gestos, como a lagosta que invade a fase de Brancusi que sustentou o modernismo, em recordações de Pierre Huyghe (2011), revelando a imagem prometeica vencida.
Nietzsche, ao contrário do que muitos apregoam, não abraçou a loucura ao proteger um cavalo de chicotadas com o seu corpo. Para Kundera, em leitura esclarecedora, ele encontrou a sanidade ao reconhecer que o erro foi dar a Deus a face humana, e assim proclamar o humano como rei. Ele encontrou a loucura nas feições humanas, na face que foi concedida a Deus.